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N.º 9

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1970 

Antologia Aveirense

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Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso

Por Roberto Vaz de Oliveira

Presidente da Comissão de Vigilância pela

Guarda e Conservação do CASTELO DA FEIRA

No catálogo dos homens ilustres da Feira, destaca-se, em lugar de merecido relevo, o nome do Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso, uma das mais prestigiosas figuras da Feira, a quem se ajusta a conhecida frase: «um grande homem em qualquer terra grande».

Nasceu em 14 de Abril de 1862, na Casa do Montinho, desta Vila, sita no largo que hoje tem o seu nome.

Era filho de Silvestre de Aguiar Bizarro e de sua mulher, D. Maria Albertina de Sousa Cardoso, por cuja cabeça aquela casa veio à posse da família, neto paterno de Marçal Alves e de sua mulher Maria Máxima e materno do tenente-coronel João Nunes Cardoso e de sua mulher D. Maria Albertina da Gama e Sousa.

Seu pai foi o memorável Mestre da Capela de S. Silvestre, por si fundada, na cidade do Porto, da qual foi director-proprietário.

Seu avô materno veio para a Vila da Feira com o batalhão de caçadores 11, que aqui esteve aquartelado muitos anos: fez toda a guerra peninsular, onde conquistou, pelos seus actos de bravura, a cruz n.º 3 da mesma guerra e as cruzes de distinção pela Campanha da Andaluzia e batalha de Vitória em 1813 e bloqueios de Pamplona e Baiona em 1814, o que lhe mereceu, também, honrosas distinções.

Foi um dos 7500 do Mindelo: como capitão graduado de caçadores 12 alcançou o grau de cavaleiro da Torre de Espada, depois de gravemente ferido nas Antas, durante o cerco do Porto, aquando das lutas liberais, merecendo o oficialato daquela mercê pelo seu comportamento na batalha de Almoster.

Recebeu, ainda, as mercês de cavaleiro da ordem militar de Avis e de Nossa Senhora da Conceição de / 30 / Vila Viçosa, a cruz de S. Fernando de 1.ª classe, de Espanha e o título do Conselho de S. Majestade, pela Junta do Porto em 1847.

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Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso    

 

HINO DO CAMINHO-DE-FERRO DO VALE DO VOUGA

 

                     I

Desde a beira-mar à Serra,

Galgando vales e montes

E rios por lindas pontes,

Correndo de terra em terra,

Sem descanso noite e dia,

Espalhas por toda a parte

Indústria, comércio, arte,

Vida, fortuna, alegria.

 

                     II

Gentil caminho-de-ferro

Do Vale do Vouga famoso

Caminho sempre frondoso

Onde canta o cuco e o melro,

Nós te cantamos também

Um hino de gratidão

Dos povos da região,

Reconhecendo seu bem.

 

                     III

Que uma aventura ideal

Doire a vida desta Empresa

Tão bela, tão portuguesa,

Por honra de Portugal!

E a família ferroviária

Do Vale do Vouga mantenha

A união como senha,

Com seus chefes solidária.


O Dr. Aguiar Cardoso cursou, com brilho, o seminário de Santarém, completando os estudos secundários no Porto, findos os quais se matriculou no Primeiro ano da faculdade de Matemática, em Coimbra.

Falecendo seu pai, em 1882, abandonou esta cidade para ocupar o lugar que aquele exercia de director da referida Capela de S. Silvestre, acumulando com o de empresário do teatro, de ópera lírica, de S. João, da mesma cidade do Porto, revelando assim, desde muito novo, a sua vocação para a música, arte que cultivou toda a sua vida, evidenciando-se como compositor e grande músico.

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Casa do Montinho, na Vila da Feira, onde nasceu e morreu o Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso.

Entretanto frequentou o curso de medicina, que completou em 1892 com altas distinções e classificações, uma das maiores do seu curso, sendo aprovado com louvor no acto final e distinguido com o prémio Macedo Pinto pela sua dissertação inaugural «Contribuição para o estudo da anatomia patológica das ovarites», tendo conseguido tudo sem abandonar as suas actividades musicais.

Recusou a cátedra, facto que o ilustre médico deste concelho Dr. Crispim Teixeira Borges de Castro comentou, com espírito, em artigo de homenagem publicado no «Correio da Feira», de 9 de Abril de 1932 – «S. Ex.ª deveria há muitos anos ter sido coagido por utilidade Pública, já que voluntariamente não cedeu, a reger uma cadeira d'ensino superior, onde não seria apenas professor distinto, mas dos mais ilustres, seguramente, em qualquer das Universidades Portuguesas».

Tirou, ainda, o curso de farmácia. 

O Dr. Aguiar Cardoso nasceu sob o signo da força, coragem e da arte, que recebeu do sangue dos seus maiores. / 31 /

Possuidor de uma vigorosa inteligência, ao serviço de uma sólida erudição, habituado à dureza de um trabalho perseverante e portador de um temperamento austero, conseguiu realizar uma obra notável, o que D. Fernando Tavares de Távora consubstanciou, em justa apreciação – «Para tudo lhe chega o tempo e tudo aquilo de que se encarrega executa com perfeição».

Amável e carinhoso, sobretudo no exercício da sua profissão e no convívio social, que cultivava com elegância de atitudes e de maneiras, tanto se entregava nos braços arrebatadores das suas devoções artísticas, como poeta sonhador que era, como procurava a mais perfeita realização das suas múltiplas actividades, o que conseguia com mestria e notável disciplina mental.

O grande homem de letras – aveirense nato – Dr. Jaime de Magalhães Lima focou este traço fundamental da personalidade do Dr. Aguiar Cardoso, em termos bem expressivos, no número de homenagem que «O Jornal de Estarreja» lhe dedicou «...é assim que o poeta nos obriga imediatamente e sem hesitação a atribuir-lhe aquela excepcional categoria de – poeta prático – na qual Waldez Crane reuniu o carácter fundamental do espírito e da arte de um dos grandes génios artísticos do seu tempo».

Felizmente, há já alguma literatura que auxilia o estudo deste ilustre feirense, entre o qual se destaca o lúcido artigo que lhe ofereceu em homenagem, o que foi distinto médico na cidade do Porto, Dr. António Caetano Ferreira de Castro, publicado no «Jornal Médico», da mesma cidade, n.º 56 de 15 de Maio de 1943, que foi distribuído em separata, sendo um dos mais completos que conheço sobre a vida e a obra do Dr. Aguiar Cardoso.

Também me foi possível colher muitas informações, ainda inéditas, no seu arquivo, que me foi gentilmente facultado.

Começo o estudo das actividades deste ilustre feirense, embora sucintamente e com difícil limitação pela síntese que a natureza deste artigo obriga, pela referência à sua profissão de médico, eixo da sua vida pública, à volta do qual se desdobraram todas as demais actividades, profissão que constituiu, pela nobreza do seu carácter, a sua constante preocupação, na qual confundia o cumprimento do seu dever com a devoção.

Depois de concluído o seu brilhante curso na Escola Médico-Cirúrgico do Porto e de renunciar ao magistério superior, para o que, aliás, estava talhado magnificamente, veio exercer a medicina para a Vila da Feira onde, pela sua competência e muito zelo, conquistou um grande nome.

Em 1893 foi nomeado subdelegado de saúde e médico municipal, nesta vila, cargos que exerceu até à sua aposentação por limite de idade: pertenceu à Associação Médica Portuguesa de Lisboa e à Associação Médica Lusitana, do Parto.

Iluminado por altas qualidades profissionais, culto, trabalhador, racionalmente destemido, solícito e muito humano, alcançou um lugar de destaque, em toda esta região, quer entre os seus colegas, quer no meio da sua numerosa clientela e a consideração e respeito de sumidades médicas e de altas personalidades pelas suas situações sociais e seus méritos.

Apesar das variadas e inúmeras preocupações que o assediavam, sempre se manteve actualizado, como bom mestre de medicina, em todas as novidades médico-farmacêuticas, com as quais fácil e rapidamente se familiarizava: as suas conversas sobre medicina eram lições.

Colaborou assiduamente em diversos jornais e revistas da especialidade, como «Posto Médico», «Medicina Moderna» e «União Médica» e interveio em jornadas que se tornaram de perdurável memória, como seja o Congresso dos Médicos Municipaes (Lisboa 1911), promovido pela Associação dos Médicos Portugueses, no qual se destacou ao relatar a tese sobre a situação dos partidos ou vencimentos dos facultativos e honorários de pulso livre e pulso cativo, encargo que desempenhou de forma a merecer, do Dr. Ricardo Jorge, palavras de grande elogio, quando afirmou que ele revelara um estendal de misérias, de vexames e de imoralidades, tendo feito a «Anatomia Normal e Patológica dos partidos».

Do mesmo modo se evidenciou no 1.º Congresso Nacional de Deontologia Médica e Interesses Profissionais, que se realizou no Porto, no ano seguinte, como relator da tese «Medicina pública no meio rural», focando, com invulgar vigor e desassombro, «o que era, em Portugal, a assistência pública, a higiene pública, a medicina judiciária e o funcionalismo médico, editando notas elucidativas às suas conclusões» (citada abra do Dr. Ferreira de Castro).

Desta vez mereceu, do professor Dr. Tiago de Almeida, grande louvor: «Notável relatório que é mais uma afirmação da sua bela inteligência e do seu apurado critério científico».

Notabilizou-se, de modo muito particular, como médico legista, sobretudo no campo da psiquiatria, pelo brilho dos seus exames, relatórios e de outros trabalhos da especialidade que mereceram os maiores e mais distinguidos elogios por parte dos seus superiores, de sumidades deste ramo da medicina e dos tribunais (designadamente dos superiores).

Era citado pelo sábio professar Doutor Elísio de Moura, nas suas aulas, reputando-o um dos melhores médicos de medicina rural.

Como subdelegado de saúde e médico municipal, desenvolveu grande e proveitosa actividade e intensas campanhas, como aconteceu no tocante ao cumprimento / 32 / da lei reguladora do exercício das tabernas e à extinção da mendicidade na vila, sendo notáveis os seus pareceres para a Direcção Geral de Saúde.

Meticuloso no que dissesse respeito às suas obrigações profissionais, olhava atentamente para tudo que pudesse interessar à saúde e salubridade pública em todo o concelho com solícita e oportuna intervenção.

No campo da assistência, além do já referido, o Dr. Aguiar Cardoso evidenciou-se em valorosas e justas campanhas, como adiante se anotará, interessando-se pela construção de um Asilo da Infância, junto do edifício da Igreja da Misericórdia, desta Vila, onde o Dr. Domingos Caetano de Sousa, seu ilustre sucessor na provedoria, fundou o «Abrigo dos Pequeninos», modelar instituição de assistência, que já funciona desde 1940.

Merece também justa referência a acção que ele desenvolveu – como director da comissão administrativa do Hospital – Asilo de Nossa Senhora da Saúde, de Oleiros e como provedor da Santa Casa da Misericórdia desta vila, em defesa da qual se lançou numa grande e penosa luta para acabar com injustiças que atingiram os que, no país, se apresentavam mais pobres e sem recursos para alcançar os seus fins.

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Música do Dr. Augusto de Aguiar Cardoso.

Enamorado, apaixonadamente, pela sua terra natal, deu-lhe o melhor da sua vida em esforço e dedicação, oferecendo-lhe os inesgotáveis recursos da sua inteligência e trabalho para a nobilitar e engrandecer e o vigor da sua pena e a persuasão da sua palavra para a defender, esforço que foi sintetizado, em gosto requintado, pelo Dr. António Ferreira Soares, grande escritor feirense, natural da freguesia de Nogueira da Regedoura, no formoso artigo de brilho literário inexcedível, com que homenageou o Dr. Aguiar Cardoso, no referido «Correio da Feira» de 1932, aquando da sua aposentação.

«...É mais que um homem de paixão por uma causa: isto é um condenado a trabalhos forçados por toda a vida, condenado pelo infinito amor à sua terra... e ao reparar no desabalado amor que ele dá às causas da sua Terra, a gente tem a impressão de que aquela alma descarregou sobre a terra natal o doce e formidável amor que os pais aguentam por um filho.»

Bateu-se na imprensa local pela integridade do concelho e da comarca da Feira, a ponto de repudiar amizades antigas, pelos problemas da administração local e melhor aproveitamento dos seus réditos: como disse o já mencionado Dr. Crispim Borges de Castro – no citado artigo de homenagem «Dir-se-ia que o seu penacho altivo de cavaleiro indomável percorre e vigia desafiante a orla sagrada do nosso território».

Este seu amor bairrista foi a mola propulsora, que o tornou uma figura destacada entre os cultores da história regional.

Dedicando-se, especialmente, ao estudo das Terras de Santa Maria e do Castelo da Feira, espalhou, por jornais e revistas, trabalhos que, pela sua erudição, elevado critério de investigação, com elegante forma literária, o consagraram como notável investigador histórico.

Sabendo que a sua terra era bela em história, quis na sua propensão catedrática, estudá-Ia para bem a poder glorificar, ensinando com verdade.

Para enumerarmos alguns dos seus principais trabalhos, lembramos: em jornais da vila – Memórias do Concelho da Feira (79 artigos), Migalhas de História do Concelho da Feira (54 artigos), A Nossa Terra da Feira na literatura (10 artigos); no «Tripeiro» (três artigos sobre a Terra de Santa Maria – Civitas Sanctae Mariae – Civitas Virginis; no «Portucale»; e ainda, usando uma sua habitual expressão, a «famosa» dissertação histórica – «Terra de Santa Maria – Civitas Sanctae Mariae – Civitas Virginis» (1929), publicada na revista «Instituto», de Coimbra, do qual se fizeram separatas, onde o autor estabeleceu bem a distinção entre a Civitas Virginis – como cidade do Porto e Civitas Sanctae Mariae – designação que reivindica para a Feira, como sede da vasta região que se denominou Terra de Santa Maria.

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O Castelo da Feira antes das obras de restauro. O Dr. Aguiar Cardoso junto à porta norte da Torre de Menagem. O seu coração também estava em ruína.

Outro trabalho, que ainda não foi impresso, diz respeito ao «Brasão de armas do concelho da Feira», que elaborou para satisfazer o pedido que lhe foi feito pela Câmara Municipal, em 1916, para o estudo do novo brasão da vila, que ele ordenou e foi adoptado até 1942, data em que foi substituído pelo actual, já aprovado oficialmente.

Mais uma vez desenvolveu o seu racional bairrismo, dando a merecida autonomia ao brasão da Feira, aliviando-o da velha e injustificada subordinação ao da cidade do Porto.

Os seus artigos e trabalhos encontram-se dispersos pelas referidas revistas e ainda pelos jornais do Porto – «Primeiro de Janeiro» e «Comércio do Porto» e pelas locais – «Correio da Feira», «Democrata Feirense», «Vila da Feira» e «Tradição».

O Dr. Aguiar Cardoso encontrou a sua segunda natureza, já que dedicara a primeira exaustivamente às suas obrigações profissionais, no culto e no exercício da música, como manifestação do seu apurado temperamento artístico.

Atavicamente predisposto para ela, desde jovem já acompanhava a órgão nas solenidades religiosas em Santarém, quando aí frequentava o seminário e teve, depois, como já dissemos, que substituir seu pai na direcção da Capela de S. Silvestre, no Porto, tendo em concorrência com os seus deveres estudantis, tomado o / 33 / encargo de empresário do teatro de ópera lírica, de S. João, naquela cidade, distribuindo muito tempo, que talvez necessitasse para o seu descanso, em organização de festividades religiosas e como organista nos templos da mesma cidade, no que se revelou exímio.

Também o foi como compositor, organista e pianista, sendo-lhe conhecidos: para órgão (canto Sacro, um Madrigal e o Vento de Outono); em música sacra (cinco ladainhas, quatro Ave Marias, três Tantum Ergo, uma Missa, uma Salve Rainha, um Padre Nosso, dois Salutaris, um Te Deum e dois Veni, Sancte Spiritus); para banda (hinos do Caminho de Ferro do Vale do Vouga», com letra sua e de «Arrifana», em justa homenagem a esta freguesia do concelho da Feira, que ele, como bom feirense, tanto estimava, com letra de Saul Eduardo Rebelo Valente).

Compôs ainda a «Canção da Tristeza», com letra sua, sob o pseudónimo «Ermigio Monin».

Organizou, dirigiu e ensaiou a Tuna Orfeão Feirense, fundada em 1912 pelo Dr. António Sampaio Maia.

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O Castelo da Feira em 25 de Maio de 1910. O Dr. Aguiar Cardoso reúne-se comos seus condiscípulos.

Reorganizou-a em 1934, como Orfeão Feirense, que se estreou, sob a regência de outro músico feirense, António Martins.

Este grupo coral exibiu-se, quer nesta vila, quer em muitas outras terras do país, com grande êxito e agrado geral.

O abandono a que foi votado o Castelo da Feira, durante muito tempo, levou-o a um estado de ruína confrangedor, com as suas muralhas a desabar, envolto num matagal selvagem, atestado de uma vergonhosa incúria por parte de quem tinha a obrigação de o conservar e zelar.

Pela fotografia que se publica, onde se vê o Dr. Aguiar Cardoso junto à porta de acesso à torre de menagem, lado norte, pode fazer-se uma ideia do estado em que ele estava.

Quase nada se fazia para o livrar de tão angustioso situação.

No século passado, a Câmara Municipal da Feira deu-lhe uma assistência esporádica, sempre insuficiente e o Estado raras vezes se lembrava dele. Porém, no princípio deste século, os feirenses começaram a tomar a verdadeira consciência das suas responsabilidades e obrigações para com o monumento, desiludidos das medidas que reclamavam e esperavam, em vão, dos poderes públicos.

Em 1905, alguns bairristas, entre os quais se destacou Afonso Couto, deram a arrancada, iniciando uma intensa campanha de protecção, para o ressurgimento do nosso Castelo.

Entre essa plêiade de homens, surgiu a personalidade do Dr. Aguiar Cardoso, que pelo seu prestígio, encabeçou, com o escol dos feirenses, um movimento contínuo e acelerado de defesa daquela jóia arquitectónica, do que resultou, pela sua acção arrojada e dinâmica, a criação, em 1909, da «Comissão de Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo da Feira», / 34 / «verdadeira ala de namorados que ali se organizou então e que, sem os propósitos aguerridos daquela que tão celebrada foi na Batalha de Aljubarrota, desempenhou deveras, como ela, a mais honrosa e profícua missão» (Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais – o Castelo da Feira, págs. 19). Nela reservou, para si, o lugar de secretário (que pelo que se viu, nesse tempo já não era uma posição modesta), dando a presidência ao benemérito feirense Fortunato da Fonseca Meneres; mas de facto, ele foi, até ao seu falecimento, a cabeça pensante, o mentor e o principal obreiro da comissão, sempre aberto a receber todas as sugestões e pareceres que lhe eram feitos.

A partir daí, graças ao trabalho do Dr. Aguiar Cardoso, o Castelo renasceu em toda a sua beleza, graciosidade e valor, como belo monumento militar e preciosa obra de arte que é: viu desvastada a vegetação que o danificava e impedia a sua visita e acesso conveniente, consolidadas as suas muralhas e detalhes, completada a sua vedação, restaurado o edifício da sua capela, enfim cicatrizadas muitas das suas feridas, que ele soube, generosamente, tratar e curar.

Salvo da ruína, pôde aguardar que o Estado, em 1935, por intermédio da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, iniciasse a sua reconstituição e completasse o seu restauro.

Mas o certo é que, sem o seu esforço, o Estado chegaria muito tarde e teria que levantar, em grande parte, um novo Castelo com as pedras que aí se encontrariam amontoadas e envolvidas na mais degradante flora.

Razão tinha, quando proclamava, na circular dirigida aos feirenses, para a constituição da comissão: «esperar do Estado providências eficazes é dum platonismo escarninho e irrisório».

Foi esta uma das mais belas jóias conquistadas pelo Dr. Aguiar Cardoso para a sua coroa de glória.

Franqueado o Castelo aos turistas, já em condições de ser visitado, publicou, em 1935, um interessante e útil folheto – «Castelo da Feira – guia do visitante» que, mais tarde, foi revisto pelo Dr. Vaz Ferreira e ainda hoje se distribui.

O seu temperamento vibrante, indomável e firme, servido por uma vasta cultura, com fácil poder de expressão, quer por uma fluente e atraente dicção, quer por uma escrita clara e de brilhante recorte literário, dava-lhe uma supremacia que o tornava, ao mesmo tempo, temido e respeitado nas polémicas. Esgrimia com dedução lógica, erudição e poder de convicção, muitas / 35 / vezes duramente, até atingir os limites da intransigência e, por vezes, com perca da serenidade desejada.

Assim acontecia, geralmente, quando se julgava atingido pela impertinência ou inconveniência do seu contraditor, menospreza a sua personalidade e o seu esforço de investigador, ou via contestadas princípios que reputava basilares e a que, em seu entender de historiador sério, se devia obediência.

Não era, porém, um obstinado, reconhecendo, honestamente, os seus erros.

Independente como era, a sua consciência não admitia, aos outros, natureza diversa, contrariando-se muita quando estes não respeitavam a razão que ele criava em largos e profundos estudos e prolongada reflexão – «a sua razão» – e não a alheia, embora de facto, por vezes, não fosse essa a perfeita e preferível.

A têmpera do grande polemista inquebrantável não permitia que se entregasse a situações fáceis ou duvidosas: não tinha duplicidade nem nos seus pensamentos, nem nas suas acções.

Estava habituado a viver certezas, firmando-se no ponto central do círculo das suas razões, em vez de se colocar, como tantos, no vértice comum de muitos ângulos, para poderem alcançar as melhores saídas de conveniência.

As suas principais polémicas originaram-se na defesa do prestígio e dos interesses relacionados com a profissão e cargos que exerceu, com suas implicações sociais, das instituições que representava e dos interesses históricos, morais e materiais da sua terra natal.

Entre elas nomeamos: as que sustentou, nas referidas revistas médicas e, no «Democrata Feirense», com o padre Augusto de Oliveira Pinto que, no jornal da Feira, «Tradição» e sob o pseudónimo «Políbio», contestava ter sido a Feira a sede da Terra de Santa Maria; como membro da comissão permanente da inspecção e fiscalização aos estabelecimentos de venda de bebidas, para que se cumprisse a lei que, no concelho da Feira, estava a ser desrespeitada pelo administrador do concelho no tocante ao funcionamento das tabernas; como director da comissão administrativa do já referido Hospital-Asilo de Nossa Senhora da Saúde de Oleiros e provedor da Santa Casa da Misericórdia da Feira, acusando a Direcção-Geral de Saúde da prática de injustiças e arbitrariedades na distribuição de subsídios às Misericórdias, do que resultavam grandes prejuízos para as instituições mais necessitadas, entre as quais se incluíam as que ele representava, campanha que teve o seu epílogo no 3.º Congresso das Misericórdias realizado em Setúbal, em Abril de 1922, onde defendeu, ardorosamente, a sua tese.

Dela resultou a publicação de um opúsculo, por ele feito, denominado – «A distribuição de subsídios aos institutos de caridade no último triénio de 1928 a 1930, Porto 1931».

Como secretário da «Comissão de Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo da Feira», comparticipou num movimento para impedir, o que conseguiu, a construção de um palacete muita perto das muralhas do monumento, campanha que muito apaixonou a opinião pública, quer dos feirenses, quer de outros sectores do país.

O Dr. Aguiar Cardoso nunca teve motivo para se arrepender da abnegada dedicação à terra natal e ao Castelo: dado o seu Prestígio, era homenageado quotidianamente pelos seus concidadãos que muito o acarinhavam com provas inequívocas de consideração e de respeito, assim como hoje veneram a sua memória, lembrando-a com muita saudade.

Recebeu muitas homenagens, entre as quais podemos destacar a que lhe foi prestada, aquando da sua aposentação, pelo jornal local – «Correio da Feira», «O Jornal de Estarreja» e «Jornal de Cambra», em artigos firmados por altas individualidades, por meio de festas artísticas como aconteceu, nesta vila, em 1924, pela Câmara Municipal da Feira, em 1929, dando o seu / 36 / nome ao largo fronteiro à casa onde nasceu, pela colocação da sua fotografia na Biblioteca – Museu Municipal, no compartimento reservado àquela «Comissão de Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo»; e, ainda, pela colocação de uma lápide, na barbacã do Castelo da Feira, em Junho de 1940, lembrando quanto esta Comissão ficou a dever, ao seu fundador, durante os 27 anos da sua gerência.

Em 1921 foi nomeado vogal correspondente do Conselho de Arte e Arqueologia da 2.ª Circunscrição com sede em Coimbra e sócio correspondente da Associação Arqueológica Portuguesa de Lisboa.

A sua vida, obra, memória e a projecção do seu nome através dos tempos, exigem, à actual geração, que amortize, na diminuta parte que lhe é possível, a dívida de gratidão que para com ele contraiu, promovendo a publicação, em volume, dos seus escritos históricos e demais que se julgar conveniente (o que de resto se deve estender aos trabalhos, ainda não reunidos em volume, doutros grandes feirenses), perpetuando-o em bronze, em lugar público da vila e conferindo-lhe, a título póstumo, a alta distinção com que, à Câmara Municipal, é dado galardoar os altos méritos municipais.

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Castelo da Feira - Barbacã.
Lápide de homenagem ao Dr. António
Augusto de Aguiar Cardoso.

Lembramos que esta, na sessão plenária de 22 de Novembro de 1921, aprovou a proposta de Saul Eduardo Rebelo Valente para que fosse recomendado, à respectiva Comissão Executiva, incluir no seu orçamento suplementar a verba suficiente para fazer face à despesa com a publicação dos trabalhos do Dr. Aguiar Cardoso – mas o certo é que nunca se fez tal publicação.

A cabeça do Dr. Aguiar Cardoso mantinha-se, sempre, em plena e saudável elaboração: mas, nem assim, a sua alma se perturbava ou se confundia.

Descansava no sossego do seu lar, assistido carinhosamente por sua mulher, a senhora D. Maria do Carmo Mota de Aguiar Cardoso, protectora dos pobres, que tanto conforto distribuía pelos que sofriam, completando, pela caridade e piedade, a missão humanitária de seu marido.

Suavisava a sua alma e a tormenta dos seus labores, com o encanto das flores do seu jardim, que cultivava com esmero, jeito e perfeição de um bom jardineiro.

A memória do Dr. Aguiar Cardoso não precisa de ser amparada – para sobressair: floresce, sempre, na alma de todos os que o conheceram e o vão conhecendo.

Cada ano que decorre depois da sua morte imprime mais uma pincelada de cor e de luz sobre o quadro da sua vida, que ele próprio pintou e legou à posteridade como guia e para exemplo.

Faleceu na sua casa do Montinho no dia 2 de Março de 1937, deixando à sua terra, em testamento espiritual, uma seara madura, plena de fruto.

No dia seguinte, foi a enterrar no cemitério local e a partir daí:

«Começou, então, o gigante do concelho, a dormir no cemitério da Vila o sono eterno, à eterna sombra desse outro gigante – o Castelo da Feira (Dr. Ferreira de Castro – cit. obra»).

E ainda desta vez – não ficou completamente dito quem foi o Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso.

Vila da Feira – Casa das Ribas

Abril de 1970.

 

páginas 29 e 36

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