Celeste Costa, A Magia da Floresta, Vol. III, pp. 246-248.

MAGIA DA FLORESTA

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«o sol começava a cair numa apoteose de fogo para as bandas do mar, mas ainda o ar era cálido e abafado. Houve a tentação de procurar a frescura das árvores e da água.

Vamos?
Pois vamos. Aonde? Buçaco ?

Pois sim.

O motor em movimento, deliciados com a aragem provocada pela carreira do auto, começamos a sentir-nos alegres a saborear a paisagem.

Por entre os pinheiros, via-se ao longe a fogueira rubra do fim do dia.

− Lindo! dizíamos em coro.

Do outro lado da estrada, os montes sem vegetação, sobrepostos à serra arborizada, por efeitos de luz crepuscular tinham o curioso aspecto duma coberta de retalhos variados, desde o tom lilás-rosa ao roxo doloroso.

D. CELESTE COSTA

Estrada deserta! Só o carro, obediente, conduzindo as nossas sensibilidades bem vivas e sôfregas. Curvas graciosas, rectas tranquilas, uma pequena aldeia transposta num segundo, juntas de bois suados e melancólicos regressando do trabalho.

Depois subimos, subimos, e entramos no labirinto sonhado das árvores e das fontes.

O silêncio da tarde preparou a minha alma para esta noite magnífica!

/ 247 /

Sinto-me repassar de tranquilidade e paz benditas. Conversam. Eu afasto-me, fico a ouvir a água e entendo-a como nunca em minha vida.

Os regatos e as fontes falam mansamente e contam-me baladas deliciosas nos versos das suas palavras, cantadas pela conversa sonora da corrente.

E a água diz-me coisas... E vão surgindo sombras...

Passam hábitos de monges doutras eras; passam almas arrastadas a penitências longas e jejuns intermináveis; passam teorias de religiões severas; passam cilícios martirizando as carnes; passam dedos erguidos numa súplica; faces pálidas e cavadas pela tortura de íntimos sofrimentos...

Um frade moço, de mãos finas, escava a terra e planta uma árvore, murmurando: Árvore, crescerás! Subirás, elevando os teus ramos para o céu a pedir o meu perdão! Regar-te-ei com lágrimas e, assim, a tua seiva será um pouco do meu sangue.

Outro, velhinho e cansado, abraça-se a um tronco e reza: Avé Maria... E repete: Maria!... recordação da sua mocidade distante, da qual ficou apenas essa imagem viva...

 

Pelo meio dos regatos, as pedras vão cortando o sonho brando da água, fazendo-a gritar o direito de correr sempre sem destino, por sina, por fatalismo!

As rochas altivas, por entre o emaranhado dos troncos e trepadeiras, parecem afirmar que sentem força e valor, que são o sustentáculo da serra e que lhe dão majestade.

Árvores solenes, carinhosas, sugam a terra profundamente e, à superfície, dão-nos verdura e aromas de resinas.

As folhas dos grandes fetos curvam-se a beijar a húmus lenta. E as hortênsias são tantas e tão lindas, que nos assalta a tentação de rolar indefinidamente os dedos pela massa azul das suas formas graciosas.

Quedo-me a olhar; ao fundo, o que os ramos altíssimos me apontam: a lua, em crescente nítido, suspende no azul a ameaça dum golpe de alfanje. O lago silenciosamente, brilha.

Noite magnífica de sonho, de misterioso encantamento!

.. E a água repete aos meus ouvidos a sua história antiga...

Pergunto-lhe pelos beijos dos noivos que mergulham as mãos na frescura da Fonte Fria. A água ri uma gargalhada mais alta e continua a reza das suas recordações velhinhas...

Tenho sede. Nas minhas mãos levo à boca a oração daquela água, que parece trazer mistérios das entranhas da serra.

O ar, parado, dá-nos a impressão de estarmos dentro duma catedral sem fim, de arcarias caprichosas, cobertas por damascos antigos. Os ramos abraçam-se no alto; mal se escuta a carícia das suas mãos de verdura. Heras humildes sobem, sobem, na conquista das alturas.

Os pirilampos matizam os musgos de fogos, lembrando pedras preciosas do pano de oiro de rico pluvial ou tiara pontifícia.

/ 248 /

Quase é preciso arrancarmo-nos ao domínio e magia da floresta! Ainda ao regressar, noite alta, através do silêncio perfeito e solene que tudo parece envolver,

«Num êxtase, eu escuto pelos montes

O coração das pedras a bater...»


(Trecho do livro Lume Novo, de D. Celeste Costa, natural da Arrancada, concelho de Águeda, cuja publicação no Arquivo foi gentilmente autorizada pela autora.)

 

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