A. G. Soares de Azevedo, Preciosa escultura encontrada em S. Miguel do Mato (Arouca), Vol. III, pp. 133-135.

PRECIOSA ESCULTURA

ENCONTRADA EM S. MIGUEL DO MATO (AROUCA)

A freguesia de S. Miguel da Mata, fértil e bem situada, possui uma inesquecível página na sua história antiga, riquíssima em vetustas preciosidades.

Em épocas remotas, foi intensamente povoada; e pelas relíquias iconográficas e arqueológicas que de tempos a tempos se vão descobrindo, pode-se afirmar que esta terra abençoada é um tesouro inesgotável de curiosas velharias.

Definir categoricamente a sua origem e linhagem sem pergaminhos, será andar em mar revolto, sem remo nem leme, à mercê dos ventos e das ondas... Há dois ou três anos, procedendo-se à reconstrução da igreja matriz, sob a orientação dos conjugados esforços do pároco rev. Manuel de Oliveira, desencantou-se, a dois metros aproximadamente de profundidade, esta formosa imagem da capela-mor, presumível a do seu orago S. Miguel.

Pela fotografia vê-se que é digna da melhor conservação, sendo objecto de museu.

No meu humilde entender, a imagem é uma escultura da transição do gótico para o manuelino; portanto, dos fins do século quinze, ou princípios do século dezasseis (1480 a 1520). Em Portugal o gótico transitou para o manuelino. Caracteriza-a a cruz do escudo, que não é a cruz dos Pereiras, Condes da Feira, donatários, mas a cruz manuelina, floreada, distinguindo-se sobretudo pela prega, isto é, pelo centro, que, sendo aberto, só é usado no estilo manuelino.

Quanto ao traje guerreiro, é o representado pelas esculturas da época.

Mas, para melhor história desta veneranda relíquia, vamos ouvir o parecer que oportunamente me enviou, em 15 de Setembro, o eminente sábio e distintíssimo arqueólogo Abade de Baçal.

Ouçamo-lo:   / 134 /

«A estátua é interessantíssima e de boa escola. Porque a enterraram?

Não sei, mas lanço a seguinte conjectura: as leis canónicas e litúrgicas mandam enterrar ou queimar os Santos e alfaias sagradas inutilizadas para o culto ou impróprias, por inestéticas ou outro motivo, para ele.

«É certo que na fotografia nada vejo neste sentido, mas bem podia ser que algum purista, destes que querem ser mais papistas que o papa, visse na estátua apenas um guerreiro com todos os aprestes e indumentária impróprios de um anjo (S. Miguel) que, por fim, como tal deve ser manso, embora os textos o apresentem como batalhador, e... terra com ele.

«Na verdade, tirando-lhe a cruz da extremidade da clava que, a julgar pela fotografia, me parece aditamento, pois não guarda rigoroso prolongamento, antes fica torta e desequilibrada e a outra cruz do escudo, que rigorosamente não é a dos Pereiras, e também podia ser aberta depois, fica-nos uma estátua de guerreiro puro, pois a asa, tanto pode ser de anjo S. Miguel (no presente caso), como de génio romano ou assírio, que também assim as usavam, bem como o capacete.

«Seja porém o que for, é certo que mais parece guerreiro façanhudo do que anjo inculcado de piedade cristã e, nestes termos, bem pôde algum devocionário dos preciosismos adocicados, substituir uma coisa do real valor por algum pechisbeque bonitinho, amaneiradinho efectivado noutro S. Miguel.
/ 135 /
«A estátua tem valor e deve ser estimada, ainda que não seja senão uma documentação indumentária mavórtica, e não admira que lho desconhecessem, enterrando-a, porque todos os dias a cultura moderna está descobrindo verdadeiras preciosidades arquitectónicas mascaradas com cataplasmas de preciosismos bonitinhos
Santa Cruz de Coimbra, Tomar, Cête, Lourosa, etc.»

Esta escultura legítima de pedra de Ançã, com altura aproximada de metro e meio, encontra-se, presentemente, na mesma igreja, exposta à piedade dos fieis, encerrando uma admirável lição para a história desta localidade e para os que estudam com amor as coisas do passado.

Consagrando este breve artigo, já muito antecipadamente, às «Memórias do ex-concelho de Fermedo» que há muito tempo ando a organizar, não o quero terminar sem manifestar o meu profundo e perdurável agradecimento ao Sr. Abade de Baçal, por todas as atenções que sempre me tem dispensado.

Vila de Cabeçais, Janeiro de 1937.

A. G. SOARES DE AZEVEDO

 

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