Padre R. Vieira, Pessoas e cousas velhas ou doutro tempo II, Vol. II, pp. 279-284.

PESSOAS E COUSAS VELHAS

OU DOUTRO TEMPO II

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ABRIU-SE, neste Arquivo, inopinadamente, o rol das Pessoas e cousas velhas, ou doutro tempo, com o nome e breves tópicos do professor de latim e latinidade do nosso liceu, Sr. Abílio César Henriques de Aguiar; mas, de certo, se notou a pobreza do informe biográfico, e demais deficiências. Além disso não se fez prévia apresentação da personagem.

É que o assunto vinha já emmarado das efemérides do Arquivo: obedeceu-se ao impulso adquirido, mais nada.

Nesta idade, não se pode contar, só, com as próprias forças; tem de aceitar-se, aproveitar-se os adminículos supervenientes, enquanto Deus quer, e é servido.

 

Sem outra apresentação, pois, dada a respectiva vénia, vamos a suprir algumas falhas, ou a encher certas lacunas, mais acento menos acento, como dizia o outro, no seio da representação parlamentar.

Como arribara a Aveiro o professor Aguiar, sendo aqui inteiramente desconhecido, não tendo cá relações oficiais ou de parentesco?

Parece que se pode reconstruir assim a simples história:

Falecido o professor efectivo de língua latina, de quem depois se falará, que deixara fama de grande latinista como eram esses antigos catedráticos, recorreu-se a uma ou mais interinidades de eclesiásticos, pois leigos idóneos não havia; mas em breve se reconheceu que o expediente não satisfazia, e lamentava-se a falta, ou dispersão, da cultura clássica, na localidade e seus contornos. / 280 /

Nessa época, havia já então, aqui, certa efervescência político-social, precursora doutras efervescências mais solertes ou adventícias.

Ao eterno movimento das correntes, conjuga-se o movimento constante das ideias, e das conveniências. Foi sempre assim. Nunca se fecha inteiramente a porta às mudanças: plus ça change...; chassez le naturel, il revient au galop.. a legenda da Piscina de Silvoé vigora ainda.

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Como geralmente se sabe, depois da morte do terceiro e último Bispo de Aveiro, o cargo ficou vago, Sede Vacante, e a vara da regência entregue ao Vigário Geral e Governador do Bispado; e, conforme as praxes litúrgicas, no regímen concordatário, assim se foi praticando pelos anos adiante.

Nesse lugar, pois, mais ou menos provisório, e precário, serviram varões assinalados, doutos e estimáveis; lembro-me dos seguintes:

O Padre Mestre Passante, reverendo João José Marques da Silva Valente, graduado franciscano da sua Ordem; Leitor e Mestre de Lógica e Retórica, nas grades do convento; e que legou fama de muito hábil, sabedor, e argumentador terrível, a exceder muito as raias de Genuense e da Arte do Padre Pereira.

Era um homem forte, perfeito, nutrido, corado, bem posto na sua indumentária talar; de óculos azulados, e andar rítmico; de frade pausado, no século; cantochanista insigne, voz sonora e cheia; de regência segura, à estante.

O apelido de Passante vinha-lhe das funções burocráticas da secretaria conventual, e de «Padre Mestre dos Casos».

Foi também prior da freguesia da Vera-Cruz; e professor de Ciências Eclesiásticas, do Curso Teológico, curso que se manteve, com leves alterações, durante todo o tempo da Sede Vacante, até ser decretada oficialmente a extinção do Bispado, e até à sua real partilha pelas dioceses de Coimbra, Porto e Viseu.

O Padre Mestre Passante era pessoa muito sociável, conversador, gracioso e discreto; muito culto; e orador sagrado característico, no púlpito.

Lembro-me também do Dr. José Joaquim Coelho de Sequeira, literato e publicista, muito piedoso e caritativo, varão apostólico, de carácter integérrimo, que determinou um incidente de certa gravidade com o poder civil, e se recusou a continuar no cargo, antes de lho darem por expiado.

Lembro-me do Dr. Romão, teólogo e professor, de quem, / 281 / todavia, não sei mais pormenores, mas a cujas referências simpáticas me reporto.

Lembro-me do Dr. Damásio Jacinto Fragoso, antigo e laureado aluno da Casa Pia, de Évora, que, depois, se doutorou em Teologia e Direito Canónico, e foi figura preponderante na Faculdade e na Universidade de Coimbra; professor de altos recursos intelectuais e morais, afirmados no magistério, e na convivência social, apaixonado cultor das línguas clássicas, e que se dignou oferecer-me uma tradução primorosa das Odes de HORÁCIO.

Lembro-me do virtuoso, do santo, do Dr. José António Pereira Bilhano, de Ílhavo, prior de S. Salvador da Vila, depois elevado a Arcebispo de Évora; que não só conheci mas que me tratou afectuosamente desde que, em 1848, organizou a paróquia de Santo António da Oliveirinha, onde foi o 1.º pároco; exercendo o magistério voluntário de Humanidades e deixando venerandas e saudosas recordações.

Lembro-me do Reverendo Dr. Sousa Janeiro, professor do Seminário e Prior da freguesia da Glória, que proferiu o elogio fúnebre de José Estêvão, nas exéquias que se celebraram na Igreja da Misericórdia, e era das relações da «gente da Praça» e amigo íntimo do ilustre aveirense Agostinho Duarte Pinheiro e Silva.

Lembro-me do Reverendo José Cândido Gomes de Oliveira Vidal, de Ílhavo, que acompanhou o virtuoso e santo Dr. José António Pereira Bilhano, quando elevado a Arcebispo de Évora: que foi secretário da Cúria e Câmara Eclesiástica daquela sede metropolita; e mais tarde, de regresso, foi pároco da freguesia da Glória e Reitor do Liceu Nacional de Aveiro.

Lembro-me do Dr. Manuel Augusto de Sousa Pires de Lima, Cónego prebendado da Sé de Évora, deputado às Cortes, e grande orador parlamentar que morreu tragicamente num dos cemitérios de Lisboa. Teve este um conflito grave, de jurisdição eclesiástico-civil, com o pároco colado de Cacia, Francisco Luís de Seabra, filho do sábio Visconde de Seabra; tradutor de várias obras de instrução moral, muito vulgarizadas e conhecidas.

O referido pároco levou recurso à Coroa da determinação do vigário geral, e o prelado deu resposta pública ao recurso, em termos hábeis, provocando, depois, uma réplica incisiva e contundente, que me foi dado ver e ler em casa do prior de Esgueira, Reverendo João Francisco das Neves, que acompanhava a causa do prior de Cacia.

Esses incidentes foram então muito conhecidos, e comentados, / 282 / não deixando de notar-se, por eles, as afinidades políticas dos contendores.

Lembro-me ainda, e bem, do dr. Manuel Baptista da Cunha, Bacharel em Direito, e em Teologia, de Paradela (Águeda), advogado de gabinete, eminente, que foi meu professor de Hermenêutica, no Curso Eclesiástico, depois Vigário Geral do Patriarcado e Arcebispo de Mitilene, e em seguida elevado a Arcebispo-Metropolitano de Braga.

Posso citar ainda o Dr. José Alves de Maris, professor do Seminário, depois Bispo de Bragança.

Estas nomeações, mais ou menos fortuitas ou ocasionais, conforme os costumes da época, flutuavam com a feição dos governos, sem prejuízo decerto, ou ofensa dos interesses religiosos e sociais; mas punham sempre certa contensão nos espíritos...

Liga-se a esse modus vivendi também a apresentação, pelo Governo, do Dr. Aires de Gouveia, Lente de Direito da Universidade de Coimbra, para Bispo do Algarve, e que a Santa Sé não confirmou nunca, estando o caso empatado catorze anos.

Numa destas emergências ou abertas, e como que para distrair, foi nomeado Vigário Geral e Governador do Bispado de Aveiro, o Dr. António Mendes Belo, bacharel em Direito e Teologia, que era já Cónego da Sé do Funchal, e fora Vigário Geral de Pinhel, pessoa muito considerada desde os bancos da Universidade, de reconhecida e louvada autoridade e ortodoxia, que muito se salientara em Coimbra em polémicas com o Dr. Júlio de Vilhena, e sua entourage, antes deste tomar ascendente na política Fontista.

Do Dr. Mendes Belo foi condiscípulo, e era amigo, o Dr. João Eduardo Nogueira e Melo, de Alquerubim, que se afirmou uma das primeiras figuras da sua terra e concelho; deste concelho de Aveiro, e deste distrito; e que deixou da sua individualidade gratos monumentos e recordações.

O Dr. J. E. Nogueira e Melo, condiscípulo e companheiro de casa, em Coimbra, do Dr. Mendes Belo, certamente não foi estranho ao despacho deste para Vigário Geral e Governador do Bispado de Aveiro, ainda Sede Vacante; e até ao seu nome, e nessas relações se conjugam várias hipóteses de reforma administrativa e civil, e inclusive a da restauração da diocese, aliás malograda.

Foi como que a última nota, esvaída, do canto do cisne.

Deus super omnia!

O Dr. Mendes Belo era natural de Gouveia. Foi académico distinto, bacharel em Direito e Teologia da Universidade, pessoa / 283 / multo considerada no meio académico, e na sua província; muito relacionado nas altas regiões governamentais, e indigitado para elevados cargos da hierarquia eclesiástica, a que sem demora ascendeu.

Não admira, pois, que por esses motivos, e pela sua amizade com o Dr. Nogueira MeLo, e nas graças e entendimentos dos influentes da mesma feição, sob seu nome, e sua égide, se chegasse a pensar e a falar na restauração do Bispado.

Nestas condições e nas mais de Direito é que apareceu Aguiar nomeado professor do liceu, e logo veio tomar posse.

Não sei se...

Aguiar era da mesma região do Dr. Mendes Belo, natural do lugar de Sobreira, estudioso e assíduo a acompanhar os estudos mais ou menos regulares das escolas e professores da região.

Naturalmente, o Dr. Nogueira Melo, encontrava-se em casa do Dr. Mendes Belo, com Aguiar, e daí ocorreram ou se estreitaram as relações amistosas do grupo, de harmonia com outras influências da política geral e da localidade e do tempo.

Eis como se deu, sem mais retaliações, a nomeação e a vinda de Aguiar para Aveiro.

Sem intuito reservado de qualquer espécie, apenas por homenagem à verdade, e gratidão a quem a devo, seja-me lícito acrescentar o seguinte:

O Dr. José Pereira de Carvalho e Costa, de Eixo, escrivão ou secretário da Câmara Eclesiástica de Aveiro, e advogado de grande séquito e influência, parente e íntimo amigo de meu pai José Rodrigues Madahil, indicou-me espontaneamente para secretário, ao Vigário Geral, Mendes Belo; e, com efeito, entrei logo na prática de serviços que visavam a estatística e a reforma de disciplina.

Assim, assíduo e meticuloso nesses trabalhos, e na convivência selecta da casa, facilitaram-se as minhas relações com essas, e com outras personagens mais graduadas. Assim fui animado, e afoitado a prosseguir na carreira do ensino secundário particular, que já exercia desde os tempos, e sob as vistas, do saudoso e admirável professor do liceu Dr. Bernardo Xavier de Magalhães, modelo exemplar de professor culto, bondoso e solícito.

Entretanto, dava-se a extinção formal da diocese de Aveiro, e a sua partilha pela de Coimbra, Porto e Viseu. Mendes Belo era nomeado Vigário Geral do Patriarcado, e Arcebispo de Mitilene; pouco depois Bispo do Algarve, sanando-se definitivamente o conflito da nomeação do Dr. Aires de Gouveia. Na reforma que empreendeu e realizou esse ilustre Prelado, S. E. chamou-me para o serviço do Seminário algarvio; e fui apresentado e nomeado oficialmente professor, sendo Ministro dos / 284 / Negócios Eclesiásticos e de Justiça, o Dr. Manuel de Assunção, diploma que ainda conservo, em homenagem a Pessoas velhas e a cousas de outros tempos.

Depois de alguns anos, abriram-se concursos por provas públicas para professores dos Liceus, nas sedes das três circunscrições escolares, Lisboa, Coimbra e Porto. Concorri à de
Coimbra, ao 3.º grupo, Geografia, História e Filosofia; sendo aprovado em todas as provas, escritas e orais, com os Drs. Francisco dos Prazeres, da Guarda; Francisco David Caldas, de Lamego; e João António Correia Mateus, de Leiria; desejando cada um desses concorrentes ser provido no Liceu da sua localidade, nenhum embaraço tive em ser despachado para Aveiro, sendo ministro da Instrução Pública, o Dr. João Marcelino Arroio.

Tratando-se de pessoas velhas, e de cousas de outro tempo, não será inteiramente de estranhar que assim mesmo, de passagem, a mim mesmo me refira, pois velho sou também; e de todos aqueles de quem falo já nenhum existe nesta terra dos vivos.

RODRIGUES VIEIRA

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