Alberto Souto, Geologia do distrito de Aveiro, Vol. 2, pp. 136-149.

GEOLOGIA DO DISTRITO DE AVEIRO

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III

A MESETA ibérica atinge o distrito de Aveiro tocando o mar nas alturas da Granja e contactando a orla de terrenos sedimentares do ocidente desde Esmoriz até ao Buçaco. Os terrenos da meseta nesta região apresentam Da carta geológica de NERY DELGADO e PAUL CHOFFAT de 1899, que convém ter sempre presente, três grandes manchas de colorações diferentes, que correspondiam, na classificação da época e no critério daqueles ilustres geólogos, aos terrenos precâmbricos e arcaicos, aos câmbricos e aos granitos post-câmbricos. O precâmbrico e arcaico tinha a notação Z; o câmbrico, de cor castanha, dividia-se em inferior com Cb1 e superior com Cb2.

O distrito de Aveiro vinha colorido com a cor castanha e a notação Cb1, apenas em duas manchas: uma ao norte e nordeste, estendendo-se desde o Douro nas proximidades de Crestuma até Arouca e sudeste desta vila, com uma largura que quase tocava Castelo de Paiva, e outra, dividida em duas fracções triangulares, com os vértices no sentido de noroeste: uma de Arada de Ovar à foz do Caima e sul de Albergaria-a-Velha, e outra, de Ribeira de Fráguas a leste do Caima inferior, até ao Buçaco e vertentes ocidentais do Caramulo.

A primeira mancha vem já do norte do Douro, de leste de Gondomar, e passando entre Sobrado de Paiva e Arouca segue até ao Gafanhão, Castro Daire e Vila da Igreja, na Beira Alta e Transmontana; a segunda mancha surge em pleno distrito de Aveiro e, depois de interrompida no baixo Caima, segue pelo distrito de Coimbra a formar a grande mancha do Zêzere e do sul deste rio. Ambas se orientam sensivelmente no sentido noroeste-sudeste, mas afastando-se uma da outra como que em leque.

O grupo arcaico e precâmbrico e os granitos são coloridos / 138 / a rosa, mas distinguem-se pela cor mais carregada dos últimos e pela notação.

Entre as duas manchas do pretenso câmbrico fica a grande zona de arcaico e precâmbrico, com uma cunha de granitos vinda do norte do Porto no sentido noroeste-sudeste tendo o vértice terminal ao norte de Fiães da Feira; com a ilha dos granitos de Escariz, Fermedo, Mansores, Carregosa e os que se lhe seguem para o sul no grande afloramento da serra da Freita, de Arada, do Arestal, das Talhadas e Caramulo, granitos que se estendem por toda a Beira, com a notação Y.

O critério da carta de 1899, porém, sofreu profundas modificações neste ponto porque o problema da classificação e divisão dos terrenos entre o arcaico e o silúrico tem sido dos mais debatidos por ser dos mais difíceis de resolver em geologia.

MACFERSON dividira o arcaico peninsular em inferior, médio e superior e o câmbrico em inferior e superior. Os autores da carta geológica, considerando que faltava em Portugal o arcaico inferior, classificaram de arcaico e precâmbrico as fracções correspondentes ao arcaico médio e superior de Macferson.

DELGADO, em 1905, modificou a sua opinião de 1899 e separou o arcaico propriamente dito do precâmbrico, que dividiu em inferior e superior. O câmbrico inferior C b 1 de 1899 passou a ser o precâmbrico superior; e o câmbrico superior Cb2 de 1899 passou, por seu turno, a denominar-se câmbrico inferior.

O Sr. ERNESTO FLEURY, em 1922, considerou arcaico todo o precâmbrico e arcaico da carta de 1899 e classificou de algônquico o câmbrico inferior da carta geológica ou o precâmbrico superior de DELGADO, de 1905, e de câmbrico o câmbrico superior e inferior dos geólogos portugueses.

Em 1931, o Sr. Dr. JOÃO CARRINGTON SIMÕES DA COSTA propôs e defendeu urna classificação que separa o câmbrico incontestável do algônquico e este do arcaico, passando para o câmbrico o georgjano interrogado que o sr. FLEURY ligara ao algônquico.

O câmbrico assim considerado abrangeria os calcários, tufos diabásicos com Helviensia Delgadoi, quartzites, xistos e grauvaques esverdeados, xistos micáceos escuros com Fordilla, Modiolopsis, Hyolittes, Olenopsis, Metadoxides, Hictsia, Microdiscos e Olenellus.

O distinto professor portuense, que é natural da Bairrada e em cuja companhia tenho calcorreado grande parte do nosso distrito na recolha de exemplares petrográficos e fósseis para as colecções dos museus, diz parecer-lhe muito duvidosa a existência do acadiano em Portugal, visto não estar bem provado o aparecimento de Paradoxides e os sedimentos de Vila Boim terem o aspecto georgiano das formações de Sevilha e isto apesar de reconhecer não existir entre nós um só exemplar de Archaecyathus que caracteriza o georgiano.

HAUG e FLEURY classificaram de acadiano as formações em / 139 / que DELGADO encontrara, por 1905, uma fauna com trilobites que se julgou pertencerem ao género Paradoxides. Mas a verdade é que ao geólogo português pareceu essa fauna mais aproximada da fauna da América do Norte na zona de Olenellus, do que da europeia de Paradoxides.

Este facto serviria até de argumento favorável à teoria de  WEGENER ou das translações continentais, e deveras impressionante !...

A verdade é que, no distrito de Aveiro, à face de um critério moderno e rigoroso, o câmbrico não existe. A carta geológica tem de ser corajosamente remodelada, simplificando-se quanto à idade das formações, embora se lhe multipliquem as indicações petrográficas que a poderão tornar assaz complicada sob o ponto de vista litológico.

Quer chamemos arcaicas e pre-câmbricas, quer arcaicas e algânquicas, às formações mencionadas, o certo é que a distinção entre os dois sistemas da era agnostozóica para iniciarmos a era paleozóica com o câmbrico bem nítido é muito difícil.

No distrito de Aveiro essa distinção é quase impossível.

Como disse DELGADO quanto ao complexo, não temos meio de determinar, sequer de um modo geral, a verdadeira sucessão cronológica das camadas. Sofreram com efeito tantas perturbações na sua massa e tantas e tão profundas alterações na sua estrutura interna, que se torna impossível reconhecer a sua ordem original de sucessão.

Houve deslocações que alteraram essa ordem de sucessão e houve metamorfismo que modificou as próprias rochas na sua composição e estrutura.

O Sr. FLEURY é de opinião que o metamorfismo e a falta de fósseis não nos permitem distinguir sedimentos mais recentes que se encontram no substratum, constituídos pelas formações chamadas arcaicas e algânquicas. É de facto bem provável que nem todas as formações azóicas da região sejam agnostozóicas e que existam muitos retalhos intercalados de idade post-algânquica, mas não temos elementos para os descobrir nem podemos comprovar a sua existência.

Por efeito dos dobramentos e deslocações, a mesma camada aparece-nos repetidas vezes e a mesma rocha toma posições diversíssimas.

Ao metamorfismo de profundidade junta-se o metamorfismo de contacto; e, embora VICENTE DE SOUSA BRANDÃO o negue quanto à acção do granito intrusivo sobre o gneiss, xisto cristalino, micaxisto e filite, admitindo apenas a existência da turmalina, devida aos gases do foco eruptivo, certo é que DELGADO observou em Arouca que os xistos finos cinzentos que considerava câmbricos se tornaram cintilantes luzentes e adquiriram um carácter maclífero junto ao granito, mas que iam perdendo esse carácter ao distanciarem-se da rocha eruptiva, conservando / 140 / o aspecto físsil e que, em alguns pontos, os xistos maclíferos tinham uma estrutura maciça, enquanto que os xistos arcaicos mais a poente apresentavam uma estrutura foliácea.

Apesar do metamorfismo, NERY DELGADO julgou possível a distinção dos xistos arcaicos ou precâmbricos dos xistos paleozóicos metamórficos pela uniformidade de caracteres das camadas cambrianas quando o seu aspecto não tenha sido profundamente alterado, e forneceu a seguinte regra: nos sítios onde faltaram os micaxistos em contacto com os granitos, pode dar-se como certo o paleozóico. Pelo contrário, nos pontos em que os micaxistos apareceram fazendo transição por um lado aos gneisses e por outro aos xistos luzentes, pode dizer-se que existe o arcaico.

Confesso que me vi sempre muito embaraçado para aplicar esta regra no campo e que sem falta de respeito pelo grande mestre que foi DELGADO, a considero interessante mas praticamente inútil.

A verdade é que pela impossibilidade de separar os xistos verdadeiramente cristalinos das primitivas rochas xistosas pre-câmbricas de origem sedimentar é que DELGADO reuniu sob a rubrica precâmbrico e arcaico todos os depósitos ante-paleozóicos.

Embora partindo do princípio já posto de que pode haver muitas formações paleozóicas entre os terrenos azóicos do distrito e que o paleozóico conquista cada vez mais campo ao agnostozóico com a descoberta de fósseis e o estudo das afinidades petrográficas, sou hoje de opinião que não devemos chamar paleozóico à totalidade da parte da meseta compreendida no distrito de Aveiro, mas sim arcaico e precâmbrico ou algônquico, isto é, em resumo, ante-câmbrico, o que não exclui a classificação paleozóica dos retalhos que indiscutivelmente como tal forem reconhecidos, como, por exemplo, os diminutos domínios do silúrico ou do antracolítico.

Por isso sou o primeiro a rectificar o mapa geológico que publiquei nas Origens da Ria de Aveiro onde a designação de paleozóico só será admissível como referência a uma grande época de emersão do continente antigo em oposição à idade da formação dos terrenos sedimentares da orla mezo-cenozóica.

Porque, temos de confessar: faltam em absoluto os restos orgânicos que nos autorizem a chamar paleozóico aos terrenos do distrito de Aveiro considerados câmbricos na carta de 1899, tanto mais que, como diz o Sr. Dr. CARRINGTON, formações incontestavelmente câmbricas apenas se encontram em Portugal na região alentejana de Vila Boim.

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Toda a parte do distrito de Aveiro situada a nascente de uma linha que vai, grosseiramente, do Buçaco a Águeda e Albergaria e de Angeja a Ovar, Espinho e Granja para nascente, é, pois, formada por terrenos do arcaico e do algônquico, com granitos de idade paleozóica, possivelmente post-devónicos ou mesmo carbónicos.

Na opinião do Sr. FLEURY, que estudou brilhantemente os enrugamentos hercínicos em Portugal, a ossatura da meseta portuguesa é já reconhecível no começo do neodevónico, depois da fase caledónica, sendo obra dos movimentos hercínicos a sua emersão e a aparição do regímen continental consequente. Ao Sr. Dr. CARRINGTON, parece, antes, que a emersão da meseta se iniciou durante o devónico e foi originada pelos movimentos caledónicos, tendo-se concluído em virtude dos movimentos hercínicos.

Temos assim uma luz para nos alumiar na misteriosa noite da história da terra acidentada e montanhosa do nosso distrito, história cheia de dúvidas pela dificuldade de se passar uma certidão de idade à grande porção de terrenos xisto-cristalinos compreendidos na divisão acima e que interessam os concelhos de Paiva, Arouca, Cambra, ,Espinho, Feira, Azeméis, Ovar, Estarreja, Sever, Albergaria, Águeda e Anadia.

Os enrugamentos hercínicos produziram dobras orientadas no sentido noroeste-sudeste. Ora, considerando aquelas duas faixas coloridas a castanho da carta geológica não como câmbricas, mas, segundo a opinião, hoje bem aceite, de VICENTE DE SOUSA BRANDÃO, como as bandas simétricas dos argiloxistos filitóides exteriores à grande dobra do anticlinal que afectou o arcaico e precâmbrico do distrito e cujo eixo se encontra a meio das duas possantes assentadas de quartzite que se notam nos concelhos da Feira, Cambra e Azeméis aflorando no sentido noroeste-sudeste, podemos dizer que, pelo estado actual dos nossos conhecimentos geológicos, toda a disposição do ante-câmbrico de distrito obedece a um enrugamento hercínico que vindo do Oceano pelo Porto alargou as suas plissuras entre o actual baixo segmento do Vouga e o Buçaco e a massa granítica da Beira-Transmontana.

Esclarecido, pela introdução deste importante elemento tectónicp que é o enrugamento herciniense, o problema da grande sela ou prega anticlinal a que se referiu o malogrado e ilustre petrógrafo VICENTE DE SOUSA BRANDÃO no seu estudo sobre A Faixa Ocidental das Filites Porfiroblásticas do Distrito de Aveiro, nós podemos compreender hoje perfeitamente como os terrenos chamados câmbricos na carta geológica se dispõem / 142 / lateralmente e simetricamente aos terrenos arcaicos e precâmbricos que se vêem entre Azeméis e Vila da Feira e se estendem numa pernada ao sul da mancha granítica de Arouca, pela serra da Arada até perto de S. Pedro do Sul, Viseu e Vila da Igreja e em outra pernada até à foz do Caima, Sever do Vouga, serra das Talhadas e do Caramulo, sempre seguidos de perto pelas bandas pseudo-câmbricas, a que chamaremos algônquicas.

No centro desta extensa dobra anticlinal surgiu o granito, bem provavelmente numa intrusão contemporânea do acidente tectónico que se devia ter operado nos fins do paleozóico.

Devemos distinguir, portanto, a idade das formações da época dos deslocamentos. Os terrenos são ante-câmbricos; o enrugamento é post-câmbrico, talvez mesmo post-devónico, isto é, carbónico; sendo certo ter havido movimentos precâmbricos e caledónicos, ante-devónicos e, posteriormente, movimentos vários até aos princípios do quaternário. Por isso as nossas serras apresentam orientações diversas: umas, no sentido noroeste-sudeste; outras, perpendiculares a estas, vêem-se ainda hoje no sentido nordeste-sudoeste, havendo zonas montanhosas, como nos contrafortes ocidentais do Caramulo e na serra do Arestal, Freita e Arada, em que parece ter-se dado um movimento de torção espiralóide.

A complicação produzida pelos diversos e sucessivos pregueamentos é enorme. Mas se não tivesse havido um rejuvenescimento do relevo numa época geologicamente não muito remota, como admite HERNÁNDEZ PACHECO, a erosão, que tem sido activíssima, teria aplanado quase todos os vestígios dos velhos enrugamentos. Talvez por motivo deste rejuvenescimento de relevo é que as ribeiras serranas afluentes dos nossos rios têm um perfil tão atormentado e lutam tenazmente com desníveis abruptos que as tornam temerosas e cheias de pitoresco nas suas numerosas cascatas; mostrando o leito abandonado pela erosão remontante centenares de belíssimas marmitas de gigantes.

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Continuando o nosso estudo do arcaico e do algônquico do distrito sobre a carta de 1896, não podemos deixar de notar uma zona tracejada com a rubrica Z cortado, que de Valadares, ao sul do Porto, vêm, pela Vila da Feira e Azeméis até ao vale do Caima, terminar em Vale-Maior, de Albergaria-a-Velha.

Por este tracejado oblíquo quiseram os autores da Carta Geológica assinalar uma zona de intenso metamorfismo, o que não tem razão de ser, como eles mesmo reconheceram mais tarde / 143 / por concordarem em que a erupção dos granitos se operou quando os gneisses já estavam formados.

SOUSA BRANDÃO, que estudou detalhadamente o precâmbrico do distrito de Aveiro, considerou a mancha C b, a que já nos referimos, de Ovar a Albergaria e o do tracejado oblíquo como uma continuação bem patente dos terrenos precâmbricos cristalinos de Leste e como um mero desenvolvimento das mesmas filites que ao aproximarem-se da orla sedimentar perdem o carácter cristalino e tomam o aspecto de argiloxistos filitoides
que desaparecem por vezes sob o manto plioceno, como ao norte e sul de Estarreja, no planalto e ao sul de Albergaria.

Vejamos, já agora, exemplificativamente, a mancha de Estarreja, a que NERY DELGADO se referiu no estudo de 1905 e cujos materiais eu tive ocasião de observar no rebordo oeste quando da abertura da nova avenida. O xisto é ali muito fino e macio, de grande possança e de cores variadas entre o cinzento escuro, o avermelhado roxo e esbranquiçado, sem mica visível. Estes xistos são os mesmos que ocorrem em Angeja, perto de Albergaria, proximidades de Águeda, Belazaima e Boialvo onde tomam colorações muito curiosas, e nas faldas do Buçaco, passando por vezes a verdadeiras massas argilosas, sem estratificação definida, mas geralmente físseis, dividindo-se em lajes planas ou ligeiramente onduladas.

DELGADO, pelo facto de aparecerem subordinados a estes xistos, finos e untuosos, alguns extractos de aspecto luzente e factura conchóide irregular, mas sem quartzo intercalado, pensou em os classificar na base do câmbrico e estabelecer com eles a transição para o precâmbrico, como fez com as da Ponte d'Arda, mas pôs de parte a ideia por achar duvidosa a correspondência.

Foi na Ponte de Arda que viu um pseudo-conglomerado quartzoso que ali afIora e que julgou poder marcar o início do paleozóico. Essa rocha é a mesma que acompanha, de um e outro lado, a fita silúrica que vem dos lados de Valongo através do rio Douro e passa a leste de Arouca pelo meio da mancha C b I a que já me referi.

Passada a zona lateral dos argiloxistos filitóides, os xistos tornam-se luzentes, compactos, de grande resistência, fornecendo lajes duras com que na serra do Caramulo e no planalto de Albergaria das Cabras se cobrem as casas e fazem vedações.

A prega anticlinal da formação tem o eixo no sentido N 32º O, determinado por SOUSA BRANDÃO como média de 52 observações.

Tive o cuidado de fazer sempre essa observação com a bússola em todas as minhas excursões pelas montanhas do distrito e mesmo fora dele onde segui o complexo do Buçaco a Santa Comba, na serra do Caramulo, Boialvo a Belazaima, margens do Agadão e Alfusqueiro, a leste de Valongo do Vouga, / 144 / serra das Talhadas, cercanias da serra do Arestal, serra da Arada, etc., e só raras vezes, por efeito de torções locais, encontrei rumos desviados do NO.

Carta esquemática da Península mostrando o horst da meseta ibérica.

LEGENDA: 1 - Orla meso-cenozóica; 2 - Depressão basca e fossa tectónica aragonesa; 3 - Serra Morena e depressão andalusa.

As folhas dos xistos encontram-se geralmente aprumadas e comprimidas, com afastamentos vários da vertical, como admiravelmente se verifica passando pela estrada ou linha do Vale do Vouga, desde Vale Maior ou Carvoeiro até próximo de Pessegueiro.

No meio das duas grandes folhas da dobra anticlínica do complexo vêem-se os gneisses com quartzites, micaxistos e anfibolites. A ordem, segundo SOUSA BRANDÃO, seria a seguinte, se não tivesse sido alterada pelos acidentes tectónicos: gneiss (inferior); filites (média); argiloxistos (superior).

/ 145 / [Vol. II - N.º 6 - 1936]
DELGADO, num corte de poente para nascente no paralelo da Vila da Feira, mostra-nos a seguinte sucessão:

Xistos muito finos e macios, físseis;

2º Argiloxisto fino, cinzento escuro, de superfície largamente ondulada e com fractura conchoidal em muitos extractos, dividindo-se em fragmentos de forma lenticular, encerrando muito quartzo em massas lenticulares interestratificadas e concordantes com a xistosidade e formando por vezes veios e filões;

3º Micaxisto encerrando muito quartzo e com abundantíssimos cristais de granadas nalguns leitos;

4º Gneiss xistóide micáceo com duas micas, moscovite e biotite, com predomínio da segunda.

5º Gneiss xistóide de grão mais grosso em que predomina a moscovite em grandes escamas com nódulos de quartzo;

6º Gneiss granitóide grosseiro, muito feldspático, com moscovite abundante;

7º Micaxisto ou xisto luzente, ondulado, encerrando quartzo em massas lenticulares;

8º Gneiss xistóide semelhante ao n.º 5;

9º Micaxistos e xistos luzentes, tendo subordinada uma assentada de filite quartzítica ou quartzite branca;

10º Gneiss granitóide grosseiro de duas micas, com predominância da moscovite.

Os gneisses são frequentemente interrompidos pelas injecções graníticas quer de mica branca, quer ele mica preta, muito especialmente ao norte da Feira, fenómeno que se repete em Rocas, Cedrim e serra das Talhadas.

SOUSA BRANDÃO considerou os afloramentos graníticos como outros tantos prolongamentos ou cabeços salientes de um grande batolito que deve ter solidificado a uma profundidade de 10 a 25 quilómetros e que se introduziram pelo meio dos gneisses e das matérias xistosas.

Esta disposição de intrudimento de pequenas massas graníticas sob pressão pelo meio dos xistos em deslocamento, observa-se nitidamente nas serras do Arestal e das Talhadas.

O suporte granítico tende para uma desnudação pelo desaparecimento gradual dos xistos que o recobrem e que têm sido consideravelmente reduzidos através dos tempos geológicos.

Numerosíssimos afloramentos deste granito, existentes na zona do arcaico e do algônquico, não podem ser mencionados na carta geológica.

Também esta não faz referência aos afloramentos de quartzites que são um dos traços tectónicos mais importantes do precâmbrico regional e que não podem ser esquecidos. Assinaladas já em 1856 por CARLOS RIBEIRO e depois por NERY DELGADO e SOUSA BRANDÃO, devem ter constituído primitivamente uma só / 146 / assentada que depois foi dobrada, partida e separada pelo movimento que produziu o grande anticlinal do nosso precâmbrico, cujo eixo lhes passa pelo meio. A de Leste vê-se nas Caldas de S. Jorge, serra de Romariz, mamoa de Milheirós de Poiares, Cesár, Pindelo, e na Senhora da Saúde de Janarde.

A assentada de Oeste passa em Souto Redondo, S. João da Madeira e Nogueira do Cravo, atravessando a estrada de Azeméis à Farrapa perto do Bustelo, faltando o seu reconhecimento daí para o sul.

Estas duas assentadas têm uma grande importância mineralógica. Estão-lhe inteiramente ligados os filões minerais de todo esse extenso vale tectónico: as águas das Caldas de S. Jorge, as minas de arsénico do Pintor em Nogueira do Cravo, minas de Telhadela, Palhal, Carvalhal, Vale-Maior, Malhada, Braçal, Coval da Mó e Talhadas.

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Mas não haverá de facto formações paleozóicas dignas de menção na área do distrito?

A resposta à pergunta envolve a necessidade do complemento do estudo das questões do ante-câmbrico com uma sumarização de observações sobre os retalhos do ante-mesozóico.

Vimos já que admiti a possibilidade da existência de formações paleozóicas entre os terrenos azóicos e que o facto de não achar correcto que se domine paleozóica a totalidade da parte da meseta ibérica abrangida pelos limites distritais, não exclui a classificação dos terrenos inegavelmente primários, como são os retalhos do silúrico e do antracolítico.

Nada sabemos de positivo sobre a idade das quartzites já referidas. Do silúrico menciona a carta de CHOFFAT e DELGADO, de 1899, um afloramento no Carvoeiro, margem direita do Vouga, entre Albergaria-a-Velha e Sever.

Forma uma crista montanhosa correndo no sentido norte-sul com leve desvio para noroeste e desaparece no Vouga, fornecendo quartzite carregada de minério que pela sua dureza tem tido um largo emprego na reconstrução das estradas, em substituição da brita de quartzo de calhau rolado e de gneiss e granito.

A mesma quartzite reaparece perto de Valongo do Vouga e Arrancada, ao sul do rio, formando um cerro curiosíssimo de estranho relevo na paisagem ambiente pela resistência da rocha aos fenómenos de degradação. Foram inúteis até hoje as minhas pesquisas de fósseis nos dois afloramentos, tendo-se-me desfeito a ilusão que cheguei a ter do achado de bilobites.

Silúrico incontestável temo-lo no Buçaco. Geologicamente, o Buçaco é um extenso sinclinal que se estende do Luso para  / 147 / sudeste, passando por Penacova para, o sul do Mondego na direcção de Góis. No eixo deste dobramento estreito e longo, está o gothlandiano em discordância com as camadas subjacentes.

O Sr. Dr. JOÃO CARRINGTON critica o método adoptado por NERY DELGADO no estudo do silúrico e diz que a divisão lógica do silúrico do Buçaco em vez do S I dos grauvaques vermelhos inferiores, S II das quartzites com scolithus e do S III das quartzites com bilobites, deve ser logicamente: I assentada de conglomerados e grauvaques verdes da base sem fósseis; II quartzites e grés com bilobites, scolithus e vexillun; III quartzites com bivalves, Calimeni Tristani e Anthrapticus Harlani, além dos fósseis do anterior.

Petrograficamente é difícil e lenta a diferenciação dos sedimentos. O lanvirniano é formado pelos xistos com Lidymograptus Murchisoni, abundando para o cimo Orthis Ribeiroi até ao ordoviciano superior.

O landeiliano é xistoso com nódulos siliciosos e contém trilobites, bivalves e graptolitos.

Seguem-se em ordem ascendente os depósitos de grés, grauvaques e xistos ainda fossilíferos, mas diminutamente, sendo o caradociano indicado por Trinucleus Bureaui, aparecendo na parte superior Dalmania Dujardini.

Como se vê, o silúrico do Buçaco apresenta numerosas nuances, dizendo o Sr. Dr. CARRINGTON que se encontram ali representadas todas as suas divisões.

É notável, e bem saliente na estrada de Penacova, a formação diabásica devida a uma forte erupção vulcânica que deve ter tido lugar no caradociano, acompanhada de fenómenos termo-minerais que metamorfosearam algumas rochas circunstantes.

Os xistos diabásicos são muito ricos em gasterópodes, braquiópodes, briozoários e equinodermes. Supõe o Dr. Dr. CARRINGTON que este curioso fenómeno de se encontrarem depósitos fossilíferos na proximidade da rocha eruptiva se deve ao facto de se ter dado subitamente um paralisação da vida e uma impregnação de materiais capazes de impedirem a corrupção dos organismos por efeito dos próprios fenómenos eruptivos, o que é de todo o ponto aceitável.

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No antracolítico dos geólogos modernos incluem-se os antigos carbónico e pérmico. A carta designa o carbónico comas notações H1 e H2 e o pérmico com H3 e coloração castanho escuro.

O pérmico surge no distrito de Aveiro no rebordo da meseta, / 148 / estabelecendo o contacto com a orla mesozóica e particularmente com o triássico.

A mancha de Águeda parece fazer excepção a esta regra porque se encontra entre o algônquico e o plioceno. O triássico, porém, está a dois passos.

O pérmico, embora interrompido, estende-se, assim, desde a confluência do Alfusqueiro até ao Buçaco e ao Luso; a poente da serra, até nascente de Botão e Souselas. Os afloramentos têm uma configuração alongada nesta última zona, indicando um alinhamento de deslocações, e são formados por conglomerados vermelhos que por vezes se confundem com os grés triássicos.

Estes afloramentos de antracolítico superior terminam por grés grosseiros com calhaus arredondados, fornecendo carvão de pedra cuja exploração tem sido tentada sem resultados económicos compensadores.

O sr. FLEURY supõe que a formação se prolonga por sob as bacias do Vouga e do Liz e nota que na região do Buçaco o pérmico é sempre discordante com o triássico, que às vezes o recobre, e com o silúrico, o precâmbrico e o arcaico.

PAUL CHOFFAT admitiu a possibilidade de andar ligado ao antracolítico superior o petróleo assinalado na orla mesozóica.

Como vimos e o Sr. Dr. CARRlNGTON anota, as rochas dominantes são de natureza detrítica: conglomerados grosseiros quartzozos, grés, margas, quase sempre de tons vermelhos, roxos e violáceos.

No afloramento de Águeda foz do Alfusqueiro, onde com o Sr. Dr. CARRINGTON fiz uma colheita de fósseis vegetais, acentua-se a xistosidade de algumas camadas. Foi mesmo só na camada xistosa, de grande dureza, que encontrámos alguns exemplares da flora típica.

VENCESLAU DE LIMA estudou a paleontologia da série, tendo classificado um só animal: Eurypterus Douvillei.

Entre os vegetais contam-se Eallipteris conferta, Walchia Piniformis, Pecpteris e Schizopteris, no autuniano, e Recopteris cyathea, arborescens e Plukneti, Schenopteris cristata, Annularia stelata e sphenaphylloides, Alethopteris Grandini e Dicranophyllum gallicum, no esteIaniano, espécies que são comuns à parte do antracolítico do Buçaco e às regiões de Valongo e Moinho da Ordem.

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Levar-nos-ia muito longe o estudo detalhado de todo o complexo ante-câmbrico e ante-mesozóico do distrito de Aveiro, bem como a discussão ou mera enunciação de todos os problemas e questões que a seu respeito podem levantar-se.

Evidentemente, o presente estudo confina-se em generalidades.

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As questões de detalhe, quer sobre a litologia, quer sobre a estratigrafia, quer sobre a tectónica, devem ser versadas em monografias ou artigos de especialidade, sendo certo que à índole desta publicação convém mais o trabalho de síntese aqui esboçado.

Actualizando e sumarizando tanto quanto possível os conhecimentos existentes, fornecem-se elementos de estudo a muitas pessoas que sem necessidade de aprofundarem os problemas geológicos desejam compreender a terra em que vivem e precisam, por vezes, de fazer referências aos aspectos da geologia da região.

Creio, dentro desta finalidade, ter dado uma ideia, resumida, embora, do ante-mesozóico da parte da meseta ibérica abrangida pelos limites da circunscrição administrativa que tem Aveiro por capital.

ALBERTO SOUTO

 

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