Francisco Ferreira Neves, Origem e etimologia de Aveiro, Vol. II, pp. 81-98.

ORIGEM E ETIMOLOGIA DE AVEIRO

A PREOCUPAÇÃO dos escritores e historiadores de celebrizarem Aveiro por uma remota antiguidade e nobre ascendência, levou-os a interpretar erradamente os textos latinos e gregos, e a fantasiar factos que pudessem corroborar as suas opiniões.

Foi a partir do século XVI que os autores começaram a escrever que Aveiro descendia da célebre cidade luso-romana Talábriga: MENDES DE VASCONCELOS, primeiro, sem contudo indicar os seus fundadores; depois, BERNARDO DE BRITO, que lhe deu como fundadores os celtas e turdetanos; a seguir, FARIA E SOUSA, que dá Aveiro como representante de Talábriga, mas atribuindo a fundação desta aos gregos. Todavia, o que estes autores disseram não é mais do que fantasia sua, estabelecida sobre factos fabulosos ou falsas e erradas interpretações de textos clássicos.

A tendência de se identificarem as localidades com velhas povoações romanas, gregas ou de outra origem muito antiga, é já anterior ao século XVI, como se prova, por exemplo, com a mudança, no século XIII, do nome de Átrio, povoação na foz do Lima, para Viana, por determinação régia, naturalmente por o poeta latino RUFUS AVIENUS, ao descrever fabulosas fundações dos gregos nas costas ocidentais da Ibéria, nelas incluir Viana, que depois os atrienses e outros identificaram com Átrio.

Assim se lê no foral de Viana (1258-1262):

«uolo facere populum in loco qui dicitur atrium in foce Limie cui popule de nouo impono nomen Viana(1).

Este atrium era na freguesia de São Salvador, e Viana era  / 82 / a povoação a que se referem os seguintes passos do poeta citado:

«Extinta Troia, Diomedes appulit oris
Lethes, erexit urbem cognomine Calpe
Postque Viannam sic dixere Coloni»


«In ripa Lethes Diomedes condidit urbem
Nomine Calpem, nunc pulchra Vianna tenet:
Tyde hinc; atque Argua Calpe...»


Lethes era o rio Lima, o rio do esquecimento.

Aveiro foi identificada com Talábriga, mas nada há de comum entre estas duas povoações. O autor que mais desenvolvidamente tratou da origem e etimologia de Aveiro foi o padre CARVALHO DA COSTA, na sua Corografia Portuguesa, escrita no fim do século XVII e publicada no princípio do século XVIII. Ele repete, porém, o que já havia dito frei BERNARDO
 DE BRITO e outros, mas excedendo-os a todos muito em fantasia.

Diverge, entretanto, na fundação de Talábriga, que atribui ao rei Brigo e aos túrdulos no ano de 1906 antes de Cristo, admitindo só que os celtas e os turdetanos a tenham povoado e ampliado, mas não fundado, como escrevera BERNARDO DE BRITO.

O rei Brigo era o quarto sucessor do patriarca e rei Tubal, primeiro rei de Espanha e neto de Noé(2).

Diz o autor da Corografia Portuguesa:

«Prova-se a menor de ser Talabriga a mesma, que hoje he Aveyro, pela concorde affirmação de todos os bons Historiadores, & Geografos, assim Latinos, como Lusitanos: pois como, depois de allegar a muitos, affirma com Vasconcellos Frey Bernardo de Brito (part. I. 1. 2. c. 10) havemos de concluir que a Cidade de Talabriga esteve antigamente donde agora he a Villa de Aveyro: resuscitada, como se póde crer, das cinzas de Talabriga».

E referindo-se à grandeza de Talábriga:

«A tanta opulencia succedeo brevemente lastimoso estrago: porque imperando o sabio Marco Aurelio, pelos annos do Senhor de 162(3), vierão os Mauritanos em poderosas Armadas, & saltando na Costa da Lusitania, assolárão com roubos, mortes & incendios, tudo o que fica do Promontorio Sacra até o Douro. Então diz Laimundo, que foy abrazada Lávara: e crê-se que / 83 / Talabriga tão visinha pela mesma costa, ficou também por elles reduzida a cinzas: & por isso repartindo depois as Dioceses o Catholico, & grande Emperador Constantino, & aumentando-se o numero dos Bispados, coube a Eminio ou Agueda, Lugar hoje do termo de Aveyro, a Sé, que fora de Talabriga, se durára a esse tempo.

Não he criveI porém passasse muito, sem que os Turdulos, já unidos com os Romanos, tornassem a povoar aquelle solar antigo: tendo, de mais do agradavel de patria, o util de marítima, & fecunda.

Renovárão pois sobre as ruinas de Talabriga huma povoação de muito menor grandeza; & achando-a indigna os Turdulos daquelle celebre nome, penoso incentivo das suas saudades, derão lugar aos Romanos, que conforme a seu costume jactancioso, se acreditassem com a novidade do appeIlido: o que elles fizerão, dando á povoação o de Aviarium (pelas muitas aves que se acolhem a seu rio) o qual depois se disse Averium, & agora Aveyro: como dizemos viveiro de vivarium.

Este nome, que na terminação, & significação sem duvida he latino, se prova bem, que foy imposto pelos Romanos: porque a não ser delles, ou havia de ser dos Septentrionaes, ou dos Mouros, ou do idioma, que agora temos.

Deste não he; porque seculos antes, que se usasse em Portugal, com a entrada do Conde Dom Henrique, já Averium, como diremos, se chamava assim. E não sendo tambem Gothico, nem Arabigo, segue-se que lho derão os Romanos: pois com tal propriedade he Latino, que apenas se achará nome mais accomodado ao lugar, nem lugar a que este nome se accomode melhor: porque Aviarium, rigorosamente interpretado, quer dizer, lugar cheyo de tanques, ou lagoas, em que se recolhem as Anates, ou aves que nadão; que são as adens, de que neste rio ha tanta copia, como se conhece, & dissemos assima: Nantium volucrum (distingue Columela l. 8. c. I) qua stagnis, Piscinisque laetantur, apellamus Aviaria.

Desta sorte Aviarium ou Averium, dissimulado humildemente nas ruinas de Talabriga, em quanto se lhe dilatava a exaltação futura, escapou ao furor dos Alanos, ao jugo dos Suevos, á oppressão dos Godos; que pouco inclinados á navegação, não se dispozeram a engrandecelo.

Sobreveyo a tantos males a invasão dos Mouros; & destruido Aveyro de sua furia, não ganhou nome com a resistencia; & ou por esta causa, ou pela falta de noticias, que aqueles Barbaros negárão ás historias futuras, passão estas em silencio os successos de Aveyro, por espaço ele mais de 700 annos: como os de outros muito grandes povos. Porém souberam os Averienses deyxar perpetua memoria, de que nesse tempo não desemparàrão a pátria: pois fabricárão então as salinas ou marinhas, que são agora huma de suas grandezas; as quaes precisamente / 84 / farão obra de tal tempo: pois tratando do sal, não falIa Plinio no de Lusitania, tendo tanta noticia de Talabriga; & poucos annos adiante dos 700 de silencio, se acha memoria delIas, como diremos logo».

 

Toda a argumentação, patranhas e conclusões de CARVALHO DA COSTA se baseiam em erros, factos fabulosos e falsas interpretações. Vejamos. Quanto ao povoamento de Espanha pelos descendentes de Japhet, copia BRITO, e este por sua vez repete as tradições bíblicas, e os escritos de BEROSO, caldeu de nascimento que traduziu em grego os anais caldeus, e que viveu no século III antes de Cristo.

A fundação de Talábriga pelo fabuloso Brigo é pura fantasia, servindo este apenas para explicar a existência das povoações cujo nome termina em briga.

Quanto à situação de Talábriga no local onde hoje está Aveiro, o autor da Corografia Portuguesa repete o que os outros já haviam dito erradamente, e fantasia sobre a acção dos celtas e turdetanos. E como aquela cidade ou oppidum nunca existiu à beira-mar, como geralmente se julga, mas sim no interior, ela nenhuma relação tem com Aveiro, nem a teriam podido destruir os mauritanos em 162, como de facto não destruíram. Talábriga ainda existia no século III ou IV, com este mesmo nome.

Note-se que CARVALHO DA COSTA dá como hipotético o incêndio de Talábriga, mas pouco depois, considera a redução desta a cinzas como um facto verdadeiro. Ora, a referida destruição, e subsequente reedificação de Talábriga pelos túrdulos e romanos são factos absolutamente falsos, mas a destruição desta era necessária a CARVALHO DA COSTA para explicar aos seus leitores a substituição do nome Talábriga pelo de Aveiro, o que não podia fazer satisfatoriamente de outra forma.

Com este fim, utilizou a palavra latina aviarium, a que dá a significação de lugar cheio de tanques ou lagoas em que se recolhem as aves que nadam, que são as adens, para com ela designar a pseudo cidade reedificada, tendo o cuidado de pôr em evidência a concordância da nova designação com o facto de haver grande quantidade de aves marinhas em Aveiro. E, como supunha a palavra Aveiro derivada de ave (pássaro), estabeleceu assim um étimo latino para ela, mas que é falso. Nunca existiu tal Aviarium.

É possível que neste particular se tivesse deixado influenciar pelo que escreveu FERNÃO DE OLIVEIRA na sua Gramática de 1536: «Aveiro, nome de lugar: porque dantes nesta terra morava um caçador de aves ao qual como de alcunha chamavam o aveiro»

De resto também é falso que Averium se tivesse usado alguma vez antes da fundação da monarquia portuguesa.

Por outro lado, de Aviarium não se derivaria Averium, mas sim Avieiro. É certo, porém, que o Aviarium, inventado pelo / 85 / padre CARVALHO DA COSTA se impôs por tal modo, que ainda hoje é quase unanimemente admitido como étimo de Aveiro. Também é sem fundamento bastante a afirmação de que os aveirenses fizeram as suas salinas só depois de findar o domínio romano na Península Ibérica, apenas porque PLÍNIO não fala do sal da Lusitânia; pois é de notar que também não menciona nenhum outro produto natural desta província (Hist. Nat.) liv. IV, cap. 21).

Em compensação, ao descrever a Tarraconense, diz PLÍNIO que na Galiza, que se estendia até o rio Douro, abundavam os metais, ouro, prata, ferro, chumbo e estanho, não citando mais nenhuns produtos naturais (liv. IV, cap. 20).

Não deixa, contudo, de falar sobre o fabrico e existência de sal na Península, como se pode ver no livro 31, cap. 7. Refere-se também ao sal gema de Egelasta, preferido pelos médicos a qualquer outro.

ESTR'ABÃO refere-se ao sal da Lusitânia, comprendendo esta agora a Galiza, dizendo que os lusitanos ou galegos tinham mananciais de sal purpúreo que ficava branco logo que se moía.

Referindo-se à Turdetânia, na Bética, disse que nela havia muito sal fóssil, além do que em grande abundância davam os rios e fontes salgadas, que eram muitas.

Embora o que acabamos de dizer não prove que se fabricasse sal em Aveiro no tempo dos romanos ou anteriormente, mostra contudo que a indústria do sal marinho é muito antiga na Península Ibérica, e que também se consumia muito sal gema. Não há documentos que comprovem o fabrico do sal em Aveiro anteriormente ao século IX, mas há-os deste século e seguintes. É, pois, de crer que se fabricasse sal aqui, já muito antes do século IX.

MARQUES GOMES, investigador e escritor aveirense, tratou das antiguidades da sua terra, mas o que escreveu sobre a origem e etimologia de Aveiro nenhuma originalidade tem, pois se limita a repetir mais ou menos o que disse CARVALHO DA COSTA.

Diz com GASPAR BARREROS (séc. XVI) que Talábriga ficava situada em Cacia, próximo de Aveiro, e que Aveiro não provém de Talábriga, mas sim de Aviarium(4).

Já dissemos que este Aviarium, como localidade, é invenção do corógrafo CARVALHO DA COSTA, a qual MARQUES GOMES considerou como realidade, porque também julgou que Aveiro derivava de ave ou tinha relação com as aves marinhas que na região vivem, tanto mais que CALEPINO, a quem cita, define:


«Aviarium, secretum nemus, quod aves frequentant, vel quod avibus abundat.
/ 86 / Item locus, ubi aves clausae custodiuntur, et nutriuntur, vel quo quaedam aves, ut columbae, et passeres se recepiunt(5)».

Além desta falsa etimologia, outras têm sido propostas, mas absurdas ou ridículas. Assim, num livro muito antigo de memórias da vila de Aveiro, o qual pertenceu aos frades dominicanos do convento de Nossa Senhora da Misericórdia desta vila, lia-se que Aveiro era composto de ave e iró (enguia)! Outros dizem, a palpite, que Aveiro deriva de aviron (remo), e ainda de Aveyron (departamento francês).

Também não é Averium o étimo de Aveiro. Aquela palavra só começou a ser empregada desde o fim do século XV pelos escritores nas suas composições em latim. CATULO SICULO, por exemplo, poeta do fim do século XV, nos seus epigramas dedicados à princesa-infanta Dona Joana, filha de D. Afonso V, mais tarde beatificada, traduz Aveiro por Averium:

      «Averium properat, furcis qui dignus, & igni
Intrepido vultu poseit amore Dei».

      «Et quando Averio ferretur inane cadaver
Ad bustum misero compositum Pheretro
(6)


O grande latinista do século XVIII, padre ANTÓNIO PEREIRA DE FIGUEIREDO, emprega também Averium; tratando da elevação da vila de Aveiro a cidade, por el-rei D. José, diz:

«Postea in Lusitania diversis temporibus & insígnia oppida aliquot civitate donavit, & pagos nonmellos insigniores oppidano jure. Prime generis sunt Pennafidelis, Averium, Castrum Album, Pinhelum (7)

Para se resolver o problema da origem e etimologia de Aveiro, convém conhecer a organização agrícola dos povos ibéricos antes da formação das monarquias neo-godas. O estudo desta organização foi feito com clarividência por ALBERTO SAMPAIO na sua obra As vilas do Norte de Portugal.

Na época romana o regime era, em regra, o da grande propriedade cultivada com servos. Cada uma destas grandes propriedades debaixo do domínio pleno de um senhor ou dominus, chamava-se uma vila (villa).

Nas vilas existiam ainda parcelas cultivadas por agricultores livres, que pagavam imposto ao dominus.

/ 87 / A palavra villa designava primitivamente a vivenda do dominus; mais tarde, ampliou-se a sua significação, passando a designar um prédio rústico, com os seus terrenos cultos e incultos, as habitações do proprietário e dos trabalhadores, os celeiros e os estábulos.

A palavra villa, além do significado de granja, casal, prédio rústico ou herdade, designava também o conjunto de prédios que formavam certo lugar ou aldeia. Às vezes, numa vila existiam várias vilas.

As vilas eram as unidades rurais de maior importância, mas não tinham todas a mesma extensão. Muitas delas chegaram aos séculos X e XI com o regime e limites primitivos.

A denominação de vila persistiu até à formação das monarquias neo-godas e ainda hoje se encontram dela largos vestígios na toponímia, pois que tal denominação faz parte do nome de muitas localidades.

As vilas portuguesas que nos aparecem no princípio da monarquia, e ainda no reino de Leão, são de origem romana, se não anterior. Nos Diplomata et Chartae dos Portugaliae Monumenta Historica estão transcritos muitos títulos de venda, doação ou troca de vilas nos séculos IX, X e XI, com os seus antigos limites per suos terminos antiquos , que são, por certo, os romanos.

Muitas vilas da época romana tomaram o nome do seu fundador ou possuidor, e por isso ainda hoje há localidades com designações derivadas de nomes próprios latinos. A reconquista cristã ou neo-goda fez desaparecer muitas dessas designações, que foram substituídas por nomes dos novos possuidores, ou por nomes de santos. Facto análogo sucedera na Gália a partir do século VII, como nota FUSTEL DE COULANGES (L'alleu et le domaine rural, pág. 227, nota 1.).

Muitas das vilas transformaram-se mais tarde em freguesias. Os povos que submeteram a Espanha depois dos romanos não modificaram sensivelmente o regime da propriedade instituído por estes. Lê-se no Liber judicum dos visigodos, (liv. X, cap. III):

«Antiquos terminos el limites sic stare jubemus, sicut antiquitus videntur esse constructi, nec aliqua patimur comotione divelli

O código visigótico, porém, bastante contribuiu para o desmembramento das vilas romanas, porque, analogamente ao que já faziam os romanos, não só permitia o arrendamento de parcelas de terreno a prazos limitados, mas também arrendamentos perpétuos hereditários que só caducavam se o arrendatário deixasse de pagar o canon ou renda estipulada. Aqui tem a sua origem os emprazamentos feitos a seguir ao domínio das Astúrias / 88 / até à primeira dinastia portuguesa. Os novos senhores do domínio útil apenas ficavam dependentes do senhorio directo pelas rendas ou foros.

Os árabes conquistaram a Espanha desde 711 a 714, mas quase toda se submeteu por capitulação. Eram muito tolerantes, e deixaram os proprietários na posse das suas terras, obrigando-os apenas ao pagamento de um imposto ao fisco. Somente na zona do sul, que havia resistido, confiscaram uma parte da propriedade.

Recordados estes elementos históricos, vamos mostrar que Aveiro também foi uma vila de organização romana, se não anterior, e que já se encontrava fragmentada no século X.

Faremos a prova disto por meio de documentos dos séculos X e XI, publicados nos Portugaliae Monumenta Historia Diplomata et Chartae.

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O mais antigo documento conhecido em que se menciona Aveiro é o testamento da condessa Mumadona, do ano 959 da era de Cristo, no qual lega os seus bens ao mosteiro de Guimarães. Muitos destes bens são constituídos por villas (povoações), cujos nomes o testamento menciona, incluindo a villa alauario:

«In territorio. Colinbrie villa de alcaroubim quomodo illa obtinuit froya guntesindiz per incartationem de Gondisindo suariz cum omnibus prestationibus suis. terras in alauario et salinas que ibidem comparauimos.» (8)

Onde ficaria situada esta vila Alavarium? Que povoação lhe corresponde hoje? Diz o documento que estava no território de Coimbra, e nela possuía a condessa terras e salinas que tinha adquirido por compra.

No mesmo território (diocese?) estava a villa alcaroubim, hoje Alquerubim, situada na margem direita do baixo Vouga.

É evidente que alavarium, tendo terras de cultura e salinas, estava situada próxima do mar, e só podia estar na zona da laguna chamada hoje ria de Aveiro. E, não havendo nenhuma outra povoação denominada alavario e sendo Aveiro o nome da povoação que maior semelhança tem com aquele, podemos admitir que alavarium seja Aveiro, reforçando esta hipótese o facto de Alquerubim distar de Aveiro poucos quilómetros, / 89 / e de o testamento parecer indicar que alavarium não distava muito de alcaroubim.

Vejamos se podemos confirmar a hipótese acima formulada.

No inventário dos bens do nobre Gonsalvo lbn Egas e de sua mulher Dona Flâmula, do ano de 1050, lê-se que eles possuíam nas margens do Vouga (in ripa de uauga) várias vilas, entre as quais «in ila marina costa sala tercia de alaueiro»(9) quer dizer, possuíam na costa marinha sala e a terça parte de alaueiro.

Ora na costa marinha da região do Vouga, Sala e Allaueiro só podem ser Sá e Aveiro. Esta vila de Sá era limítrofe da de Aveiro, e limitada ao norte pelo vale de Sá, e os casais de Aveiro distavam cerca de um quilómetro dos de Sá. Esta vila encontra-se hoje incorporada na cidade de Aveiro, constituindo o bairro de Sá. Não há, pois, dúvida de que Alavarium é Aveiro.

Este documento menciona outras vilas próximas desta, que ainda hoje subsistem e com o mesmo nome, por exemplo, Seren (Serém), Jafafi (Jafafe) , Cedarim (Cedrim), Paratela (Paradela), Christouanes (Crestovães), Sagatanes (Segadães), Bolfear, Agata (Águeda), Recardanes (Recardães), Spinelle (EspinheI), Abciquinis (Assequins).

Vejamos ainda os outros documentos dos Diplomata et Chartae que fazem referência a Aveiro.

No seu testamento em favor do mosteiro da Vacariça, do ano de 1037-1065, Recemondo lega a parte que tem na vila de alaueiro:

«in ripa uauga in marnel ubi dicent arraualde quantum in meas cartas sonat. Integro in lauri hereditas que fuit de bellide sicut in meas cartas resonat. In anseIa hereditatem que fuit de bellith sicut in mea carta resonat. Et in villa alaueiro meam rationem sicut in meas cartas resonat. et in uilla iliauo quantum in meas cartas resonat. et in ripa de agada in uilla tarouquela quantum in meas cartas continet» (10).

Este alaueiro é sem dúvida alguma Aveiro. A enunciação de iliauo, que é Ílhavo, a seguir a «alaueiro» bem o demonstra.

Noutro inventário de bens de Pelágio Gonsalves, neto do citado Gonsalvo Ibn Egas e de sua mulher Dona Flâmula, do ano de 1077, menciona-se de novo alaueiro, com outras vilas / 90 / nas margens do Vouga, entre as quais sala (Sá), perfeitamente identificada pelas suas salinas e situação:

«ln era Mª Lª Vª si ganaui domno gundisaluo iben egas et domna flamula ereditates in riba de uauga in diebus domno adefonso rex quando sedia in monte maiore de manu de ille rex et diuisi illas tam de auolenga quam etiam de ganantia.

li sunt uillas nominatas de auolenga. sala cum suas salinas que est de insturio in esteira unde non dam ciuadera ad rex. et de ganancia tercia de alaueiro(11).


Outra vez aqui aparecem juntas Sala e Alaveiro, Sá com as suas salinas, e a terça parte de Aveiro. Para melhor identificação, o documento até diz, salvo erro, que Sala está entre a fonte(?) e um esteiro. É possível que este esteiro seja a cale da veia da ria, o qual passa junto a Aveiro e Sá. É de notar que ainda hoje existe um esteiro chamado esteiro de Sá.

Parece que do esteiro mencionado no documento supra não se pagava imposto ao rei, se é que ciuadera tal signifique. Equivalerá esta palavra a cevadeira ou ceveira?

Não há mais documentos nos Dipl. et Ch. em que se mencione alauario ou alaueiro.

Pelos documentos medievais de que fizemos as transcrições precedentes, vemos que Aveiro tem já uma existência de mais de mil anos. O facto de no século X se encontrar fragmentada mais induz à consideração da sua grande antiguidade. Podemos, pois, admitir, sem receio de errar, que a vila de Aveiro o velho Alavarium ou Alaveiro , provém já pelo menos da época romana.

Muitíssimas vilas, desde o Vouga até à Galiza, eram pertencentes ao Mosteiro de Guimarães, em virtude de sucessivos legados em seu favor ou compras.

Sobre este assunto diz Frei LEÃO DE ST.º TOMAZ:

«...em suma que da vila de Ponte Vedra em Galiza até o rio Bouga termo de Coimbra em que ha quase quarenta léguas de distancia, poucas terras e herdades havia que não fossem foreiras, ou pagassem sua pensão ao nosso mosteiro de Guimarães. O que tudo consta do inventário dos bens que pertenciam ao Mosteiro sobredito que mandou fazer el-rei D. Fernando e a rainha D. Sancha que anda no livro de D. Munia (12)».

Esta D. Múnia é a mesma condessa Mumadona ou Dona Muma.

Pena é que a alta antiguidade de Aveiro não possa ser / 91 / testemunhada por elementos arqueológicos, mas nenhum até hoje foi encontrado; nem uma inscrição, moeda, vaso, ou cerâmica da época romana ou anterior. Também das épocas subsequentes nada se tem encontrado. Os vindouros que não se iludam com os milhões de cacos que em nossos dias se estão deitando no vale do Côjo, em aterros, no sítio chamado Ilhote ou Caldeira.

O mais antigo monumento de Aveiro, de que há notícia, é a igreja de S. Miguel, já existente no reinado de D. Afonso Henriques, e de objectos só há notícia do achado de umas moedas do rei D. Fernando. No entanto, o núcleo populacional de Aveiro já devia ser apreciável no século X, pois que a agricultura, a pesca, a salinação e a navegação exigiriam muitos braços. Faltava, porém, um elemento importante para a civilização material: a pedra com que se construíssem as habitações e monumentos.

O solo de Aveiro é formado por areias, e o subsolo por camadas argilosas e calcários senonianos que atingem muitos metros de altura.

A única pedra susceptível de aparelho, que desde tempos remotos até os nossos dias tem sido geralmente usada nos monumentos, é a pedra de Ançã e de Outil, pedra branca de calcário, pouco resistente à acção do tempo.

Durante largos séculos, as habitações populares de Aveiro foram feitas de adobes de terra negra; esta já não se emprega hoje, mas existem ainda aqui velhas habitações feitas com ela.

Em tempos mais modernos as habitações começaram a fazer-se de adobes de argamassa (cal e areia), os quais ainda se usam hoje geralmente, começando em nossos dias a usar-se também o tijolo feito nas fábricas que aqui se criaram, e recentemente o cimento armado.

Mas, se em Aveiro nenhuns elementos arqueológicos se têm encontrado, nas outras povoações ribeirinhas tem sucedido o mesmo. Exceptua-se a povoação de Cacia, onde se encontraram restos de cerâmica antiga, mós manuais, e objectos de metal, em escavações feitas em 1930, no sítio da Torre, já mencionado por GASPAR BARREIROS, na sua Corografia de alguns lugares, de 1561. Estes restos arqueológicos estão guardados no Museu de Aveiro.

Informa-nos o Ex.mo Sr. Conselheiro Manuel Nunes da Silva, natural de Cacia, que há mais de cinquenta anos o antigo prior da freguesia deste nome, Dr. Francisco Luís de Seabra(13), lhe mostrara duas moedas romanas de prata ou de ouro não se lembra da qualidade do metal encontradas lá por um trabalhador nas ruínas da Torre, e que lhas havia dado.

Em Esgueira, povoação vizinha de Aveiro, também foi encontrada numa escavação uma moeda romana de prata, que / 92 / figurou na Exposição Distrital de Aveiro, de 1882, conforme consta do respectivo catálogo (14). Pertencia esta moeda a Basílio Mateus de Lima, natural de Esgueira.

Na mesma exposição estiveram também patentes duas moedas romanas de prata, pertencentes a António Menezes, de Oliveira do Bairro. Seriam estas duas moedas as que foram encontradas em Cacia, e atrás mencionadas?

Podemos, pois, concluir que a vila de Aveiro, hoje cidade, já data da época romana, mas é de crer que existisse já muito anteriormente, como veremos. A origem da povoação de Aveiro devem ter sido casais que no local se instalaram para a cultura dos terrenos, exploração da pesca e fabrico do sal. Os indivíduos que constituíam estes casais originários não eram, por certo, de raças estrangeiras, mas sim de raça ibérica.

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O problema da etimologia de Aveiro não teve até hoje solução satisfatória, mas ele e o da origem estão intimamente ligados.

Qual será o significado da palavra Aveiro?

De que palavra provirá?

Os nomes das povoações provêm ou de nomes de antigos fundadores, de possuidores, ou de qualquer particularidade local. Já vimos que os étimos propostos para Aveiro pelos autores desde o século XVI, são ave (pássaro) e aviarium.

Não é de crer, porém, a derivação de ave com a significação usual; seria: ave+eiro=Aveiro, lugar de aves ou pássaros.

Provirá de nome de pessoa? De nome de acidente topográfico? De alguma particularidade do terreno?

Será Aveiro palavra autóctone, usada de sempre na povoação, ou será derivada de Alavarium? Ou será Alavarium a latinização de Aveiro ou de Alaveiro?

Problema difícil de resolver.

Se Alavarium é a latinização de Aveiro, ou de Alaveiro, interessa-nos o estudo destas palavras. Reciprocamente, se Aveiro ou Alaveiro é que derivam de Alavarium, é esta palavra que devemos estudar.

Vamos ver em primeiro lugar que de Alavarium se pode passar para Alaveiro e Aveiro. As transformações seriam:

Alavarium > Alavario > Alavairo > Alaveiro > Aaveiro > Aveiro.

Poderia ser esta a etimologia de Aveiro.

Destas formas não se conhece escrita a forma alavairo. A queda do I intervocálico e a consequente fusão dos dois aa teria dado origem ao a aberto da palavra Aveiro.

/ 93 / Cronologicamente aparecem estas formas, como já mostrámos: no século X, no documento do ano 959, alauario (alauarium); no século XI, nos documentos de (1037-1065), 1050, e 1077, alaueiro. Mas numa carta de meados do século XIII, dirigida por D. Abril Peres e Dona Aldara (Eldora) Peres aos juízes e concelho de Aveiro lê-se, na parte escrita em português aveiro, e na parte escrita em latim aaveyro.

«...aldra pirez e dom abril pirez rrogarom e encomendararom aos juizes e comçelho da villa daveiro...»

«Domina Eldora petri Et domnus aprilis petri judicibus et concilio de aaveyro. Salutem et mandatum nostrum facere.» (Arquivo Nacional).

No século XV, em documentos escritos em português, escrevia-se aaveiro e também aveiro.

Pode perguntar-se agora: por que é que há mil anos se escrevia em latim Alauarium e não Aviarium, quando nesta altura talvez se conhecesse a verdadeira significação do nome de Aveiro? Naturalmente porque não existia Aviarium, nem consideravam Aveiro derivado de ave com a significação de pássaro.

A forma Alauarium era usada pelos notários, e por certo já era usado nos séculos anteriores ao décimo. Já vimos que Aveiro pode provir de Alavário ou Alaveiro.

Que quererá dizer Alavário ou Alaveiro?

ALBERTO SAMPAlO, ao tratar da indústria do sal na alta idade média, no norte de Portugal, fala de alauario que supõe ser Aveiro, e a que dá a seguinte composição: AI + Avário.

Diz este escritor: «Se «alauario» não obstante ter uma única identificação se pode interpretar por (AI + Avário), a extracção do sal aí, é de crer, remonta também aos tempos romanos(15)».

Não deu, porém, a significação de AI nem de Avário, nem demonstrou a composição que propõe para a palavra.

Nada resolveu, nem adiantou, portanto.

Alavario, à primeira vista, pode parecer uma palavra árabe, pela existência do grupo -aI. Para nos esclarecer sobre este ponto, consultámos o Dr. DR. DAVID LOPES, ilustre professor da Faculdade de Letras de Lisboa e arabista distinto, que nos honrou com a seguinte informação:

«Alavario, apesar de começar por aI, não deve ser árabe, porque tirando aI que seria o artigo árabe, e o elemento ário, que é de origem latina, ficaria av que não é nada em árabe».

Alavarium não é, pois; uma palavra arábica; será latina.

O sr. DR. JOSÉ LEITE DE VASCONCELOS diz que Aveiro talvez seja de origem ibérica, isto é, pré-romana, e manda confrontar / 94 / as palavras alavario e alaveiro registadas por CORTEZÃO, no seu Onomástico com Alava em vasconço, e Albacete no antigo onomástico ibérico (16).

Ora da confrontação com Alava nada se apura. Alava, diz VINSON, é uma província espanhola, em parte vasca, mas este nome, bem como o das restantes vascas, Guipúscoa, Biscaia e Navarra, não aparecem antes do século X ou XI. É desconhecido o significado destes nomes. A explicação de Alava por Alaba, «filha», sob o falso pretexto de que esta província é filha das duas primeiras é inadmissível (17).

Da comparação com Albacete também nada se pode concluir.

Vemos que sumidades nas letras e na arqueologia têm tentado resolver o problema, mas sem resultado. Parece, pois, que nós, sem qualquer autoridade, nada mais teríamos a fazer do que recolhermo-nos a um prudente silêncio. No entanto audaces fortuna juvat , atrevemo-nos a formular umas hipóteses, que nos parecem resolver o problema. Vejamos.

É um facto vulgar antepor-se um a a nomes de povoações. Assim se escrevia frequentemente na idade média alafones por lafones=Lafões. Também amenitello por menitello=Mindelo.

O mesmo fenómeno sucedia com nomes comuns; por exemplo, apresuria por presúria.

Não serão também alavarium e alaveiro o mesmo que lavarium e laveiro, apenas, acrescentadas de um a protético?

Alavarium=(a)lavarium? Ou alaveiro=(a)laveiro?

Muito próximo de Aveiro há um lugar, cujo nome está sujeito ao mesmo fenómeno: é Alumieira. Toda a gente diz e escreve assim, e no entanto deve ser Lumieira, derivada de lume.

Teremos então de saber o que significa lavarium ou laveiro.

Estas palavras têm a raiz lava e relaciona-se com lavare. A raiz lava é de origem céltica, e tem um significado relativo a água ou rio (18).

Lavarium, com as suas formas variantes será, portanto, um lugar por onde corre água, e esta designação convém perfeitamente a Aveiro, que é cortada ao meio por um vale, chamado / 95 / hoje vale do Cojo, por onde antigamente passava um curso de água para o mar, e hoje muito pouca.

Não é de estranhar que Aveiro tenha esta significação, porquanto a vizinha povoação de Esgueira (de goleira?) deve tirar o seu nome de motivo idêntico. Esta povoação está na margem esquerda de um vale largo e profundo, cavado no solo por erosão das águas que do interior se escoavam em épocas remotíssimas para o mar.

Consideremos agora Aveiro como a pronúncia milenária dos naturais, tal como é hoje. Seria Alavarium a latinização de Aveiro, feita sob determinadas regras.

Vejamos se a palavra Aveiro pode provir já de eras remotíssimas, e que significado se lhe poderá dar em face dos seus elementos. É manifesto que na palavra entra o sufixo eiro, que designa profissão, quantidade, ajuntamento. Este sufixo deve ser ibérico ou celtibérico correspondente ao latino arium e arius, e gaulês ier.

A palavra primitiva seria, portanto, av ou ave. Mas já vimos que não convinha dar à palavra ave a significação de pássaro, na etimologia de Aveiro. Pode, no entanto, ter outra.

Ave é uma antiquíssima palavra que significa água livre, curso de água, rio.

No antigo slavo, av ou ava significa água.

Em bretão, aren significa rio.

A raiz céltica ar era própria dos rios, e modificava-se foneticamente em av, ava, apa, sava, e possivelmente em lava.

EMMANUEL CELESIA, na sua obra Dell' Antichissimo Idioma de Liguri, impresso em Génova em 1863, diz-nos, a págs. 16, 17 e 18:

«...come aren nel dialetto Bretone significa fiume [rio J. La radice ar, ares, aren, trapela nel verbo arúxentâ deI nostro dialetto e suona lavare, scia equare.

Risolando alta sua primitiva ràaice, ci occorre av ou ava, che nell' antico slavo vale aqua».

«Ar era aqunque la radice dei fiumi [rios]. Talora modificasi foneltcamente in Av, Ava, Apa, Sava».

Diz JUBAINVILLE: «Le nom des Ligures est, suivant nous, indo-européen. On peut le rattacher à la racine rahg ou lagh dont le sens primitif parait être «courir, se hâter(19)».

Aveiro, derivado da raiz av, ou ave, será então formado das palavras Ave + eiro ou Av + eiro, e terá o significado da palavra agueiro, isto é, Aveiro é o local por onde corre água.

/ 96 / O Aveiro seria o vale que divide a cidade em duas partes, uma na margem direita, outra na margem esquerda.

A etimologia que acabamos de expor para Aveiro está muito longe da que tem sido proposta desde séculos: Aveiro = lugar de aves, ou como queria FERNÃO DE OLIVEIRA: Aveiro − caçador de aves.

As armas do brasão de Aveiro, cuja peça principal é uma ave, tem por base a falsa etimologia de Aveiro, como local com aves marinhas.

Supomos que a etimologia que apresentamos é a verdadeira, e nesta hipótese, o nome Aveiro é de origem pré-romana, portanto, céltica ou ibérica. Alavarium será, pois, a latinização de Aveiro.

A origem grega ou fenícia da povoação Aveiro não é mais do que uma fantasia literária de alguns escritores. E não resta dúvida de que foi o local que deu o nome à povoação, sendo esta por certo fundada em época pré-romana, mas incerta.

Para reforçar a nossa hipótese da existência da raiz av (água) em Aveiro, notaremos que em Portugal há o rio Ave, que os romanos já assim chamavam (Avo em Pompónio Mella) com o seu afluente Vizela, cujo nome é uma forma sincopada de Avezela ou Avizela, diminutivo de Ave.

Que a palavra ave significa rio, mostra-o claramente o seguinte passo do testamento da condessa Mumadona, do ano 959:

Concedimos etiam huic monasterio secundum superius memoramur pro filio meo Nuno pro anime eius remedio inter ambas Aves villa nesperaria...(20).

A locução inter ambas aves, significa entre ambos os rios, e refere-se aos rios Ave e Avizela.

Note-se que aves tem o género feminino. Àquela locução correspondemnoutros documentos: «inter duas arrogios(21)», «inter duas amnes(22)», «inter duas flumes(23

Existem também as povoações de Aves, no Concelho de Santo Tirso; São Miguel das Aves, no concelho de Gondomar; Riba d'Ave, no de Famalicão; Ferreira de Aves, no de Sátão. Em Espanha há uma povoação chamada Riba d'Avia.

Em todas estas designações há a raiz av, água.

E em Vez, afluente do rio Lima, vessada, devesa, veiro, e outras, não entrará a mesma raiz? E em Avanca, e Aveiras?

É possível que a raiz av entre no nome do rio hoje chamado Cávado, mas cuja grafia e pronúncia exacta parecem ser / 97 / [Vol. ll - N.º 6 - 1936] Cádavo, como se vê nos documentos dos Portugaliae Monumenta historica. E porque não em Cadaval, que parece derivar de Cádavo?

Finalmente, ainda aduziremos uma outra palavra em cuja etimologia parece entrar a raiz avo é ílhavo, nome de uma vila próxima de Aveiro. A palavra latinizada, como se encontra nos Port. Mon. hist. é llliabum, llliavo, lliauo, llabum e llauum.

O agrupamento li traduz o lh da pronúncia. Seria Iliavum = lli+avum. Sendo avo o rio, a corrente de água, e se ili significar sítio, lugar, povoação, a significação de Ílhavo seria: sítio ou povoação do rio, ou da corrente.

A significação de Ílhavo seria, portanto, análoga à de Aveiro, e a topografia do lugar idêntica à de Aveiro, justifica-a.

JUBAINVILLE dá-nos o significado de ili, como villa, talvez: «Un des éléments les plus caractéristiques de l'onomastique géographique dans l'Ibérie d'Europe est le terme iri, ili ou eli qui parait signifier «ville» et qui a fourni la première syllabe, ou les deux premières syllabes, de quarante-six noms de lieux soit d'Espagne, soit de la Gaule méridionale»(24).

Não nos devemos admirar da possível antiguidade céltica ou ibérica de Aveiro, porque ainda hoje há muitas povoações e cursos de água com nomes compostos de raízes célticas ou ibéricas. Em céltico, bem como em hebreu, as palavras ur, our, significam água corrente, fonte, ribeiro, etc.(25).

«Um outro elemento muito frequente no topomomástico da Ibéria da Europa, diz JUBAINVILLE, é ur ou uria. Este termo parece significar «água»».

Também significavam água as palavras dur e dour, correspondentes a ura no basco(26).

No distrito de Aveiro há um rio chamado Ul, começo do rio Antuã, uma povoação UI, junto a este rio, e outra povoação chamada Santiago de Riba UI, não longe do mesmo. Este UI só por si já significa rio. É o rio Ur, mencionado nos Port. Mon. Hist.

Na ria de Aveiro há dois canais chamados: um, Cale do ouro (cale douro?) e outro chamado esteiro do ourô (esteiro dourô?). Cale é abreviatura de canal, e ouro e ourô parece não significarem outra coisa senão correntes de água. Estas duas palavras serão vestígios da 'língua céltica ou ibérica em Aveiro e imediações. Será ouro = ourô = douro.

A palavra Douro, nome de um rio da península ibérica, quer dizer rio, por certo, e, portanto, é uma palavra céltica ou ibérica, / 98 / que os romanos alatinaram para Durius, como alatinaram Vouga para Vacua, na idade média Vauga e Vauca.

A palavra Sala, donde Saa e Sá, é também céltica e significa saída. Como já dissemos, foi o nome de uma villa junto à de Aveiro, e situada na margem esquerda de um pequeno vale que dava escoante a águas para a ria ou mar.

São, pois, mais frequentes do que se julga as povoações de origem céltica ou ibérica, bem como nomes das respectivas línguas, que foram amalgamadas depois com a latina.

Do que expusemos, conclui-se em resumo:

A vila de Aveiro, hoje cidade, tirou o seu nome do local que é o extremo oeste do vale em cujas margens se fundou a povoação. Neste local existia no século XVI um esteiro chamado esteiro das Azenhas, passando através de uma lagoa chamada caldeira. Este esteiro ainda existe hoje, e a caldeira está aterrada em grande parte. O Côjo fazia parte desta caldeira.
2.º
A povoação data de tempos pré-romanos; e é de origem céltica ou ibérica, mas ignora-se a época exacta ou aproximada da sua fundação.

3.º A palavra Aveiro deriva da antiga raiz av, ave ou ava, que significa água. Por isso, Aveiro=Ave+eiro significa lugar com um curso de água.

Aveiro, 8 de Fevereiro de 1936.

FRANCISCO FERREIRA NEVES

 
_________________________________________
(1) −  Port. Mon. Hist. Leges et Consuetudines, l, pág. 690.     

(2) − A. HERCULANO, por lapso, diz que Tubalé filho de Noé. Hist. de Port. vol. I, 3.ª ed. pág. 12 e voI. I, 8.ª ed. pág. 40. Os filhos de Noé foram Sem, Cão e Jafeth. Tubal era filho de Jafeth. (Bíblia, Génesis, cap. X).  

(3) Brito, na Monarchia Lusitana, diz 182.    

(4) − MARQUES GOMES (João Augusto), Subsídios para a história de Aveiro. Aveiro, 1899, pág. 252 e 253.   

(5) − Dicionário. Veneza, 1778.   

(6) Provas da Hist. Geneal. da Casa Real Portuguesa, t. VI, pág. 534 e. 537.    

(7) Elogios dos Reis de Portugal, págs. 252 e 254.    

(8) − Port. Mon. Hist. Diplomata et Chartae, Doc. 76, pág. 46.   

(9) P. M. H. Dipl. et Chart. Doc. 378, pág. 231.    

(10) P. M. H. Dipl. et Ch. Doc. 448, pág. 279, lição do segundo exemplar indicado.    

(11) Dipl. et Ch. Doc. 549, pág. 334.  

(12) Benedictina Lusitana. Tomo lI, Tratado I, Cap. 5, pág. 3. 1650.    

(13) Filho primogénito do Visconde de Seabra.    

(14) Impresso em 1883, na Imprensa Comercial, do Porto.    

(15) Estudos Históricos e Económicos, vol. I, pág. 270, Porto, 1923.     

(16) −  Lições de Filologia portuguesa, 1ª ed. pág. 159.

(17) −  JULIEN VINSON. Les basques et le pays basque, pág. 13 e 39. Paris, 1882.
NOTA
Não é exacto o que diz VINSON sobre a época em que apareceu Alava e Biscaia, pois que esta povoação é já citada por SEBASTIÃO, bispo de Salamanca, na sua Crónica, do séc. IX, referindo-se à acção do rei Afonso, o Católico, no séc. VIII: «Eo tempore populantur Primorias, Levana, Transmera, Supporta, Carranca, Burgis, que nunc appellatur Castela, & pars marítima Galliciae: Alaua namque Vizcaia, Araone, & Ordunia, a suis incolis reparantur, semper esse possesse reperiuntur». In «Historias» de Sandova!, pág. 48, Ano 1634.

(18) A. DIAS PINHEIRO, Celtas e os povos com eles relacionados, pág. 293,  Guimarães, 1928.    

(19) H. D'ARBOIS DE JUBAINVILLE, Les premiers habitants de l'Europe, pág. 223, Paris, 1877.    

(20) P. M. H Dipl. et Ch., pág. 46.

(21) Ibidem, pág. 62, doc. 99. 

(22) Ibidem, pág..201, doc. 330.   

(23) Ibidem, pág. 218, doc. 357   

(24) H. D'ARBOIS DE JUBAINVILLE, Ob. cit., pág. 305.  

(25) Pierre J. J. Bacon-Tacon. Recherches, sur les origines celtiques  principalement sur celles du Bugey considéré comme berceau du delta celtique. Tome premier, pág. 183. A Paris. An VI.

(26) −  A. DIAS PINHEIRO, Ob. cit., pág. 301. 

 

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