Francisco Ferreira Neves, Breve histórias da barra de Aveiro, Vol. 1, pp. 219-239.

BREVE HISTÓRIA

DA BARRA DE AVEIRO

A ria de Aveiro é uma lagoa que se estende desde Ovar a Mira, com um comprimento aproximado de 45 quilómetros e com uma largura variável que chega a atingir 9 quilómetros. Fica compreendida entre a terra firme e um cordão de areia que a separa do oceano, e nela desagua o rio Vouga e outros cursos de água de menor importância.

A ria ocupa depressões e reentrâncias produzidas pela erosão marítima no continente. As suas águas cobrem permanentemente cerca de 6000 hectares, havendo ainda cerca de 3000 que ora ficam alagados ora ficam descobertos, conforme há preia-mar ou baixa-mar.

Pouco se sabe das causas que determinaram a formação da ria de Aveiro, e muito menos da época em que se formou ou se começou a formar. Por certo, intervieram as correntes marítimas e fluviais, as vagas, os ventos, e o próprio levantamento do solo. O ilustre geólogo CARLOS RIBEIRO diz-nos o seguinte:

«Os grandes mouchões do Tejo, a murraceira na desembocadura do vale do Mondego, parte das areias das costas de S. Jacinto e Torreira, nas vizinhanças de Aveiro, e tantos outros exemplares semelhantes, estão muito longe de poderem considerar-se deltas em via de progresso; ao contrário, são depósitos que devem a sua existência, não tanto ao trabalho actual da natureza, como aos últimos movimentos de oscilação do nosso litoral.»

(Jornal de Ciências Matemáticas, Físicas e Naturais, n.º 7 e 8)


Não nos deteremos neste artigo a estudar a época e modo de formação do cordão litoral, nem a situação da foz da ria de Aveiro, anteriormente ao século XV. Por agora, limitar-nos-emos a dizer que o cordão litoral deve ter sido todo formado anteriormente ao século X. Tomaremos como expressões sinónimas foz da ria de Aveiro e barra de Aveiro.

A barra de Aveiro não ocupou sempre o mesmo local. / 220 /

É provável que em 1407 a foz estivesse a alguns quilómetros ao norte do local onde se encontra hoje, como se depreende de um passo da escritura de doação da ilha da Testada feita por D. João I a frei Álvaro Camelo na era de César de 1445:

«Teemos por bem e damos-lhe que elle tenha e aia de nos em quanto nossa mercee for hua Ilha que pos auemos em termo desgueira a que chamã a Ilha da testada que he no almoxarifado daaveiro a qual parte de hua parte com a uea de uouga e da outra parte com a uea que uay pera o ual cabanões e da outra parte cõ a uea que uem pelIa passagem de caçia e uay pera o mar.»

(Chancelaria de D. João I, Liv. 3, fI. 99. in Arquivo Histórico Português; voI. lI, pág. 6I)

Barra de Aveiro, aberta em 1808 por Luís Gomes de Carvalho, segundo o plano de Reinaldo Oudinot. Na margem esquerda está o molhe ou paredão, sucessivamente reconstruído. A torre que se vê é o farol, construído em 1885. A porção de costa a oeste do farol tem sido destruída nos últimos anos pela acção do mar. No dia 12 de Agosto de 1835, o mar arruinou a ronca que é a construção que se vê a oeste do farol. Fotografia tirada de avião em 1922.


Não há dúvida de que a barra já existia, porém ao sul da capela da Senhora das Areias muito antes de 1553, pois nesta data já a capela precisava de reparos (não era a capela actual), e em 1549 lhe foram dados alguns trastes por Fernão Barbosa (Livro da Provedoria de Esgueira, pág. 273). Diz o P.
e CARVALHO DA COSTA, que escreveu pelo ano de 1700, que a referida capela
/ 221 / pela tinha sido construída pela vila de Aveiro por «trazerlhe o mar por sua barra huma imagem da sempre Virgem Maria, á qual edificou a Villa Igreja na mesma costa que pelo sitio se intitula das Areas.» E mais diz que era: a tradição antiga que o referia.

Que a barra não era muito distante desta capela, prova-o cabalmente o seguinte passo do foral de Aveiro, de 1515:


«Item ha no termo da dicta Villa [Aveiro] a Ilha que chamam a testada que tem Joham do Porto per prazo por dous mill e quinhentos rreaes=E outra Ilha contra a foz a que chamam monte farinha em que soyam damdar egoas do Senhorio que he coutada que nam emtra ninguem nella Salvo por licemça e avemça do almoxariffe.»


A ilha do Monte Farinha estava pois contra a foz em 1515; portanto, a barra estava perto da ilha e da capela de Nossa Senhora das Areias, e a poucas centenas de metros para o sul. Ignoramos se esta barra tinha a protegê-la qualquer construção, mas supomos que não tinha. Presume-se, no entanto, que satisfazia bem às necessidades da navegação, atento o grande número de navios que tinha o porto de Aveiro no século XVI, e o grande movimento comercial desta vila.

Deve notar-se que no princípio do XVII já se encontrava o comércio marítimo de Aveiro completamente arruinado, não somente por se terem tornado más as condições de acesso ao porto, mas principalmente por ter o comércio marítimo de Portugal passado na sua quase totalidade para as mãos dos estrangeiros. A própria pesca do bacalhau passou para os ingleses que se tornaram senhores da Terra Nova.

Mas a barra não se manteve próximo da capela da Senhora das Areias muito tempo depois desta época. Causas desconhecidas fizeram-na deslocar para o sul. Em 1584 a barra estava já situada a 3 quilómetros ao sul da actual, isto é, estava um pouco ao sul da praia da Costa Nova do Prado, segundo afirma o Sr. comandante Silvério da Rocha e Cunha.

O contínuo deslocamento da barra para o sul trouxe desastrosas consequências para Aveiro e região ribeirinha. Com efeito, a barra foi perdendo profundidade ao passo que se foi afastando para o sul, e o próprio canal da barra, situado entre duas faixas de areia, se obstruía com esta. Mas pior do que isto era a dificuldade do escoamento das águas das cheias, que não só impediam o cultivo de muitos milhares de hectares de terreno, e o fabrico do sal, mas também causavam o paludismo que vitimava impiedosamente as populações.

Era forçoso, portanto, mudar de novo a barra mais para o norte, de modo a fazer desaparecer os males que estavam a arruinar a economia da região e a sua salubridade.

À barra de Aveiro estavam e estão ligados os mais variados / 222 / e importantes problemas e interesses, comerciais, industriais, agrícolas, de pesca e de higiene.

É uma questão nacional a sua manutenção e defesa.

A espessura do cordão litoral não tem sido sempre a mesma, parecendo que actualmente tem maior largura; diz CARVALHO DA COSTA, na sua Corografia Portuguesa que a faixa de areia exterior se adelgaça tanto em certas partes que, se o mar se embravece, lança escumas no rio.

Sabe-se que em 1643 a barra estava em Vagueira, onde foi construído um forte na margem esquerda do canal.

Naturalmente a barra não tinha aqui boas condições de acesso ao porto, por falta de estabilidade e fundo, e por isso se tratou de a consolidar com algumas obras, que não conhecemos, mas de que nos chegaram notícias. Lá se encontrou uma inscrição que dizia: ANO 1643 REI DE PORTUGAL JOÃO 4.º.

Esta barra distava de Aveiro três léguas, ou sejam 18 quilómetros aproximadamente, tomando para valor da légua 6199,6 metros. Em 1656 já era dificultosa a navegação; em 1685 encontrava-se mais um pouco para o sul da Vagueira, no local hoje designado pelo nome de Quinta do Inglês. Diz PINHO QUEIMADO na sua Memória de 1685 que os principais indivíduos de Aveiro e Esgueira mandaram vir dois engenheiros holandeses para estudarem a abertura de uma nova barra, e depois de quatro meses de observações, disseram que as águas da ria não se escoavam com rapidez porque o canal da barra era muito longo, pois a barra estava situada a mais de três léguas para o sul de Aveiro, e nem ela nunca havia de prestar para embarcações de mediano lote, porque estava em má direcção, isto é, ao sudoeste.

Propunham então que se abrisse uma nova barra no local de S. Jacinto, que era o melhor ponto, tapando-se a barra de Mira, mas lembravam que era preciso muito dinheiro e muita gente para fazer tal obra, e mesmo assim ainda não ficavam fiadores dela por ser feita em areia movediça que está sempre à mercê dos ventos, das marés e das enchentes dos rios.

Em face das enormes exigências da obra desejada, nada se fez, a barra continuou piorando, Aveiro decaindo, e as sesões dizimando os povos.

É certo, porém, di-lo o P.e CARVALHO DA COSTA na sua Corografia, que por alturas do ano 1700 a barra estava em boas condições: «como Aveyro está já porto seguro, se espera que brevemente torne a ser rico.» Na barra podiam então entrar três e quatro navios de duzentas toneladas emparelhados, trazendo vento feito. Ignoramos as causas que tornaram a barra boa. Ter-se-iam feito algumas obras? Teria sido a barra situada de novo na Vagueira?

D. LUIZ CAETANO DE LIMA diz na sua Geografia, Tomo II, pág. 103, impresso em 1736, que a barra de Aveiro corre de / 223 / leste a oeste, e fica a três léguas da vila; tem em preia-mar doze a treze palmos de fundo em ocasião de águas mortas e pouco mais de dez em baixa-mar; mas em águas vivas tem crescido em preia-mar a vinte e quatro palmos, não passando antigamente de dezasseis e assim vai cada dia melhorando o porto.

Ao contrário do que se esperava, sucedeu que a barra piorou, e numerosas representações foram entregues ao Governo para este dar remédio a tão deplorável situação.

El-rei D. José atendeu os justos clamores dos aveirenses, e por provisão de 27 de Maio de 1756 criou a Superintendência da Barra, e o imposto do real para ser pago por todas as câmaras da comarca de Esgueira, a fim de se custearem as despesas a fazer com as obras de abertura da nova barra, e encarregou o engenheiro Carlos Mardel neste mesmo ano de as fazer.

Local do Forte Novo em frente da barra. Fotografia tirada de avião em 1922.

A barra encontrava-se então um pouco ao norte de Mira. Mas o engenheiro nada pôde fazer porque uma formidável cheia obstou a isso. As ilhas e salinas da ria, os campos do Vouga, e os bairros baixos de Aveiro ficaram inundados por largo tempo. As águas represadas estavam causando enormes prejuízos.

O capitão-mor de Ílhavo, João de Sousa Ribeiro, natural de Aveiro, representou então ao rei para que lhe fosse consentido / 224 / fazer à sua custa um regueirão na areia, a fim de se escoarem as águas para o mar. Por aviso de 27 de Janeiro de 1757 foi autorizado o dito capitão-mor a abrir o regueirão, e de facto abriu-o no local da Vagueira, onde antigamente tinha estado a barra. Feitas algumas obras, que deviam certamente ser frágeis, e cortado o marachão de areia, começaram as águas da ria a correr violentamente para o mar, tendo-se formado uma barra larga e profunda, que durou alguns anos.

A barra, aberta em areia, tendia de novo a deslocar-se para o sul, e por isso o rei ordenou no ano seguinte, 1758, que Francisco Jacinto Polehet e Francisco Xavier do Rêgo, Sargentos-mores de Infantaria, com exercício de engenheiros, com os seus adjuntos Luiz de Allincourt e o tenente Adão Wenceslau fizessem seus planos de fixação da barra, assistindo o Desembargador do Porto, Manuel Gonçalves de Miranda, e o capitão-mor João de Sousa Ribeiro, como inteligente e conhecedor da região.

Diz ALMElDA COIMBRA nas suas Reflexões Históricas sobre a Barra de Aveiro: «parece que de seus trabalhos rezuItarão algumas obras, logo abaixo da Vagueira; mas sendo ellas insufecientes, a Barra as deixou atraz, correndo de novo para o sul, ficando tudo inutilizado

Em 1759, a barra encontrava-se boa, dando entrada aos navios, como se mostra pelas condições de um contracto de arrendamento e arrematação da massa da vila de Aveiro, exarado no termo da vereação de 14 de Setembro de 1759:

8.ª Com condição o que cazo, que no tempo deste arrendamento se tape, ou impida a Barra em termos, que não possam entrar embarcações de reynos estrangeiros das que costumão trazer Bacalhao, e outros generos cessará este arrendamento, e rematação, e se haverá por findo desde o primeiro de Janeiro desse anno em que a Barra se tapar, ou impedir; fazendo tãobem para a cidade desde esse dito dia, o que desde elle tiver cobrado elle rematante, e promptamente o entregará, e dará contas do que tiver recebido desde esse dito dia, visto largar o contrato; ficando por este modo dezobrigado delle inteiramente; assim elle rematante como seo fiador e principal pagador, desde o dito dia: da capacidade, ou incapacidade da Barra, se decidirá por louvados.

10.º Com condição, que dos ditos duzentos sincoenta mil reys se mandarão pôr os tres paos, como dantes havia na Barra pela parte do sul para diviza da mesma Barra; e os marcos, que havia no rio, para bem da navegação; e se pagarão os ordenados annuaes dos Pilotos da mesma Barra: e se mandará fazer a barca, ou barcas precisas, ancorotes, e viradores necessários para segurar, e facilitar a entrada, e sahida das embarcações por ser assim necessário para o comercio: e o rendimento da dita Barca ou Barcas, ancorotes, e viradores, se aplicará para a capella de S. Sebastião desta cidade, para se telhar, e concertar da ruina em que está.

/ 225 /  [Vol. l - N.º 3 - 1935]  
O movimento de navios era, no entanto, insignificante.

Em 1 de Janeiro de 1764, novamente se fez o arrendamento e arremataçãó da massa da vila, como se lê no termo da vereação deste dia e ano, e por ele se vê que a barra ainda estava boa. A condição 10.ª deste contrato era inteiramente análoga à 8.ª do contrato de 1759.

A condição 11.ª corresponde à condição 10.ª, mas com a redacção um pouco diferente, como se vê:

11.ª Com condição que dos ditos duzentos mil reiz se mandarão por ou concertar os tres páos como de antes havia na barra, pella parte do sul, ou do norte para deviza da mesma barra; e os marcos ou páos que havia no rio para bem da navegação, e se pagarão os ordenados annoais dos Pillotos da mesma Barra, concervando a barca ou catraia, ancorote, e virador que há, para segurar, e facilitar a entrada, e sahida das embarcaçoens, por ser asim necessario para o comercio, e o rendimento da dita barca, ancorote e virador se aplicará para se reedificarem os mesmos, ou para obras publicas ao arbitrio dos vereadores do Senado da Camera.


Parece que entretanto a barra piorou e os serviços de pilotagem não eram bem feitos, pois no contrato de arrendamento da massa de 1768, exarado no termo da vereação de 23 de Abril deste ano se lêem as seguintes condições:

2.º Que o Ilustre Senado da Câmara terá particullar cuidado em nomear Pilotos capazes p.ª asistirem na barra para com mais promptidão, e sem prejuizo possão entrar algumas embarcações, e o mesmo farão na sahida, pois pella sua omição de entradas e sahidas tem a dita barra adquirido fama em tal forma, que será impocivel virem capitães com seos Navios, ou hiates com generos p.ª esta cidade.
3.º Que os Pilotos, que nomearem, ou tenham nomeado serão pagos por este Senado, e querendo ele rematante nomear mais algum, ou manda-lo vir da cidade do Porto lhe pagará a sua propria custa.
11.ª Que sendo caso que a barra se ponha em termos de não poder vir embarcação por ella, não será elle rematante obrigado a satisfazer o computo da sua rematação, e só entregar o que tiver recebido, como tambem se houver guerras, e se deficultar virem generos de outros reynos p.ª utilid.e desta renda.


Os rendimentos da Alfândega tinham-se tornado quase nulos, e pelo termo da vereação de 31 de Dezembro de 1768 vê-se que ninguém quis arrematar a renda da massa para o ano de 1769.

Em 20 de Junho de 1768 o Senado Municipal representou a el-rei sobre a falta de estabilidade e segurança da barra.

As obras da barra em 1769 ainda não tinham começado, pois no termo da vereação de 11 de Janeiro de 1769, lê-se:
...por esta mesma comarca [Esgueira] se achar onerada com hum rial imposto nos vinhos e carnes aplicado p.ª abertura da barra desta cid.e que se achava e toda a sua com.ca em decadencia pelo mesmo
/ 226 / tributo e cobrança de cizas sobnegadas de trinta annos, que S, Mag.de foy servido aplicar p.ª a abertura da mesma barra, que athe o presente se não pode concluir nem ainda principiar por causa da indigencia de mais dinheyros, sendo aquella obra util não só a esta com.ca mas tambem á de Vizeu, e ás mais da Provincia da Beyra, e ainda ao Reyno que igualmente se interessa no comercio maritimo;


Em Maio de 1771, nova representação é feita ao rei por intermédio do Marquês de Pombal, secretário de Estado. E em sessão de 6 de Julho de 1771, o juiz de fora propunha que se a resposta à representação anterior demorasse, novamente se representasse por intermédio da Junta do Comércio.

Esta representação seria moldada nos seguintes termos que transcrevemos da acta da vereação de 6 de Julho de 1771, e que nos mostram claramente como funcionava a barra e o canal ao longo do areal da Gafanha e da Vagueira:

...de inverno quando as correntes de agoa são grandes formão huma Barra, que se pode chamar boa, poes rasgão as areias espalhando as para os lados do canal da mesma Barra, e expedem este, e que de verão se tornam as areias a juntar por falta das chuvas, e ocasião dos ventos exprayando-se as mesmas areias para o meyo do canal ficando asim a Barra menos expedita, e na contingencia de se tapar: a corrente das agoas para o rio velho a fazem enganoza na sahyda, poes quando a maré enche dividem-se as agoas, parte para o rio velho e parte para a Cal grande, logo que a maré se completou devem as agoas principiar a vazar, e como o rio velho tem a distancia de duas legoas e meya, e não tem sahyda, retrocedem as agoas e continuam a fazer enchente para a Cal grande, visto que nesta como de muito maior ambito se espalhão as agoas mais, e ficão mais bayxas, que no
rio velho, do que procede que na dita Cal grande continua a encher a maré quando na Costa, e pela Barra já se acha em quarto de vazante; destes principios nasce ser menos frequente a entrada da Barra desta cidade, poes os capitaës dos Navios receyam a contingencia da mesma Barra vendo já os exemplos de alguns se terem encostado na mesma areya, e outros se terem demorado meses para a sahyda, reconhessendo os comerciantes o bom negocio a que os convida a bella cituação desta cidade, e suas vezinhanças, e por isto vem á mesma Barra com o receyo, porem, daquella dita contingencia, mas animados com maiores fretes de seos Navios; tapado o rio velho, e correndo as agoas só para huma parte se aproveyta a mesma Barra, e sem receyo amparando se toda a areya athe a pancada do mar com estacaria dobrada cintada por fora e dentro com pontaletes de huma para outra, poes tapando-se só o rio velho ê deyxando a areia que forma o canal da Barra desembaraçada dessem [=descem] as agoas da Cal grande, e com a corrente hirão desgastando as areyas da parte do sul e formarão a barra ao longo da areya, ficando destruida e com o risco de se tapar de todo, e ao contrário, fazendo-se a dita estacaria, e depois entulhada por dentro com pedra solta que com o tempo vem a ficar com o musgo que cria, e areya de permeyo como hum rochedo, e tudo com a segurança devida, não há perigo que a barra tome outra direcção senão a que se lhe der na estacaria, que deve ser de modo, que a barra fique Leste e Oeste, porque então podem os Navios entrar com os ventos Norte, Oeste e Sul, e sair com norte, leste e sul; a estacaria deve ter o cumprimento conforme a altura emque se subpoem a barra de modo que sempre fique des palmos cravada para baixo; a mesma
/ 227 / pedra com que se entulha a segura contra a força do mar, e como lhe não bate de chapa muito mais também deve ser levada athe à pancada do mar quanto for pocível afim de se evictar que tão perto se não ajuntem bancos de areya e para as ágoas de inverno não fassam rasgo grande, devesse da parte do norte fazer outra estacaria tambem dobrada e como as aguas não têm para onde se espalhem mostra a razão natural, que oprimidas pelo Canal devem continuamente fazer grande rasgo para o fundo, lançando as areyas para o mar, e se concervará a barra capaz para todas as embarcações, seguindo-se de tudo as importantes e evidentes utilidades do comércio e seguindo-se juntamente huma produção de frutos a mais abundante que se pode conciderar, poes tanto se profundará a Barra, quanto ficarão levantadas as terras prezentemente inundadas para a boa produção dos frutos.


Mostra este passo do termo da vereação que a barra estava em 1771 situada duas léguas e meia ao norte do extremo sul da ria; estava, portanto, de novo próximo da Vagueira.

Por aviso de 27 de Novembro de 1777, foi o coronel inglês Guilherme Elsden encarregado de estudar novamente a questão da barra, juntamente com os engenheiros lsidoro de Paula
Pereira e Manuel de Sousa Ramos.

Numa planta hidrográfica da ria de Aveiro, contendo o projecto para a nova barra e rio Vouga, feita por estes dois últimos engenheiros em Novembro de 1778, e de que existe uma cópia ampliada no Liceu de Aveiro, feita por Carlos Mendes em Maio de 1921, está indicada a construção de um canal conduzindo as águas do Vouga desde Sarrazola, povoação um pouco a leste de Cacia, até a Cale do Espinheiro, e a abertura da barra a leste das marinhas do Forte Novo. Esta barra está segura por um molhe na direcção W. S. W. partindo da extremidade destas marinhas até o Oceano.

Deste projecto nada resultou, apesar de a Câmara em 17 de Outubro de 1778, juntamente com a Nobreza e o Povo ter resolvido encarregar o cidadão José Leandro da Costa Monteiro Rangel de Quadros de ir à Corte solicitar a graça da abertura da barra, e este ter aceitado o encargo.

De como a barra estava má, informa o termo da vereação de 7 de Novembro do ano supra, pois nele se lê que a barra só tinha dois pilotos nomeados pelo contratador da Massa, Jorge Way, com consentimento da Câmara, mas que eram poucos e por isso tinha havido naufrágios na foz e no canal da barra, e encostando algumas embarcações era preciso expô-las à descarga à distância de três léguas da cidade de Aveiro, e havia prejuízo para a Real Fazenda por descaminho de direitos.

Vê-se pois que em 1778 ainda a barra estava aproximadamente na Vagueira.

Chamado o hidráulico italiano João lseppi, começou novas obras na Vagueira em 1780, já no reinado de D. Maria l, mas foram mandadas suspender em 1783, parece que com fundamento na opinião do professor de Matemática da Universidade de / 228 / Coimbra, José Monteiro da Rocha, que entendia dever ser aberta a barra mais ao norte.

Em 24 de Abril de 1784 queixa-se a Câmara de que o comércio está totalmente desvanecido por falta de capacidade da barra.

Em 1788, na sessão da Câmara de 20 de Maio, é lida uma carta do juiz da Alfândega em que dizia que os pilotos da barra não tinham a suficiente experiência do canal e ria desta cidade, e, por ocasião de ocorrência de embarcações, tinham dado em seco algumas, com prejuízo dos seus donos e da Real Fazenda, e pedia que o Senado nomeasse novos pilotos, e mandasse pôr paus e balizas no rio para guia das embarcações.

Forte Novo com a torre de sinais aos navios, e o dique angular que divide a ria em duas zonas. A ponte que se vê foi lançada sobre um corte feito no dique pelo engenheiro Silvério Pereira da Silva para adicionar as águas do canal de Mira às do canal de S. jacinto. (Fotografia tirada de avião em 1922)

 

A barra tinha-se deslocado entretanto muito para o sul, pois já neste ano se encontrava a cinco léguas de Aveiro, ou sejam, mais de 30 quilómetros, e estava obstruída. É o que nos diz o termo da vereação de 27 de Fevereiro de 1788:

...resolveu-se representar a Sua Majestade sobre os prejuízos para Aveiro resultantes das inundações frequentes do bairro baixo, derivadas de a barra estar presentemente à distância de cinco léguas, além de estar entupida.

 

/ 229 / Na vereação de 1 de Março deste mesmo ano tomou parte a Nobreza e o Povo, e nesta sessão se resolveu dar conhecimento a Sua Majestade da proposta apresentada em 27 do mês anterior, para dar providências sobre a barra, acrescentando-se agora que havia receio de alguma epidemia.

Em 18 de Outubro deste mesmo ano de 1788 já a Câmara contava que a Rainha mandasse abrir brevemente a barra, pois já tinha mandado fazer há pouco tempo a planta a hidráulicos e engenheiros.

De facto, o marechal Guilherme Valaré foi mandado continuar os trabalhos da barra, conforme a opinião de Monteiro da Rocha, mas nada fez de apreciável. As obras executadas por este engenheiro, ou por Iseppi para profundar os canais obrigaram ao corte de uma marinha chamada casamenteira, pertencente a José Maria Rangel Mascarenhas de Quadros, e pelo prejuízo requereu este indemnização a S. M., sendo o requerimento apresentado à Câmara em 17 de Janeiro de 1790. Foi aprovado, apesar de a marinha já não fazer sal há 40 anos. As consequências do afastamento da barra e do seu entupimento eram as mais desastrosas e prejudiciais à economia e salubridade da região de Aveiro. Por isso, a Câmara, em sua sessão de 5 de Maio de 1791, resolveu representar a Sua Majestade sobre a grande precisão de um canal ou «desaguadouro», por onde saíssem para o mar as imensas águas que se juntavam na ria e aqui se demoravam.

Atendendo o Governo o pedido, ainda em 1791, e examinado o projecto de Luiz Allincourt pelo hidráulico Padre Estêvão Cabral, abriu-se um «desaguadouro» um pouco ao sul da capela da Senhora das Areias, provavelmente no local da barra do século XVI; mas se o regueirão aberto por João de Sousa Ribeiro deu uma barra boa durante alguns anos, o desaguadouro aberto agora na costa de S. Jacinto em breve foi entupido pelo mar e destruídas as suas fracas defesas. Nesta altura não houve uma cheia idêntica à que favoreceu João de Sousa Ribeiro.

Mas os aveirenses e a sua Câmara não desistiam das suas justas pretensões sobre a abertura de uma barra capaz, e por isso, novamente a Câmara em 16 de Abril de 1794, considerando que as obras da barra se achavam há muito tempo «indeferidas» e atrasadas por causa da pouca diligência que se havia feito a seu respeito, sendo urgente a necessidade de se concluírem, encarregava o doutor Manuel Joaquim Lopes Pereira Negrão de conseguir na Corte providências para a conclusão das referidas obras.

E assim conseguiram que o príncipe regente D. João, por aviso de 2 de Janeiro de 1802 encarregasse os engenheiros coronel Reinaldo Oudinot e capitão Luís Gomes de Carvalho de abrirem a nova barra.

/ 230 / Chegaram estes engenheiros a Aveiro em 22 deste mês, e imediatamente começaram os seus estudos. Em 5 de Março deste mesmo ano era o projecto de Oudinot, já superiormente aprovado, entregue ao superintendente das obras.

As tentativas malogradas de fixar a barra na Vagueira, e mantê-la em bom regime, levaram os engenheiros à conclusão de que era necessário abrir a barra fora do canal de Mira, determinado pela duna da Gafanha e pela duna interior, e abri-la tanto quanto possível próximo do lugar que ocupou no século XVI. Assim já o tinham entendido o matemático Monteiro da Rocha e os engenheiros Isidoro Pereira, Sousa Ramos, e Elsden. Seguiram esta opinião Oudinot e Luís Gomes.

O projecto de Oudinot consistia essencialmente na intercepção do rio por um dique transversal angular que começaria na parte norte da duna da Gafanha, passaria junto e pelo sul do Forte Novo e terminaria no oceano através do cordão de areia. A barra devia ser aberta ao longo deste dique, através da areia.

Este dique seria constituído por duas partes rectilíneas consecutivas, uma com cerca de 1350 metros de comprimento, e outra com 1276 metros, formando entre si um ângulo de 139 graus e 32 minutos, com o vértice no Forte Novo, e voltado para nordeste. A primeira parte ficaria orientada na direcção aproximada de leste-oeste (W. 4º SW.), cortaria o cordão litoral e seguraria depois a barra pelo sul. A segunda teria uma abertura chamada cambeia, de 5,8 m para dar passagem aos barcos para o canal de Mira e vice-versa.

O dique dividia portanto a ria em duas partes, praticamente independentes, ficando a do norte (Ovar, Aveiro, Ílhavo) com a barra do Forte Novo a abrir, e a do sul com a barra de Mira.

Executou-se o plano, e a nova barra foi aberta à distância de 17600 metros do local da barra velha.

As obras começaram em 1802 e continuaram até a barra se abrir no dia 3 de Abril de 1808.

Estando já as obras em andamento, foi mandado Oudinot em Dezembro de 1803 em serviço oficial para a ilha da Madeira, onde faleceu, tendo continuado a dirigir as obras Luís Gomes que alterou um pouco o plano da abertura da barra, do que resultou gastarem-se cinco anos em vez de um. A longa demora provocou descontentamentos e questões que não deixaram fazer as obras com a regularidade e ordem necessárias.

As populações estavam impacientes porque terminassem os males que as afligiam. Os proprietários de salinas, em especial, prejudicados por não poderem fabricar sal, por falta de água do mar, acusavam Luís Gomes e ameaçavam cortar o dique. Para atender as reclamações, Luís Gomes, com autorização do Governo, introduziu no dique do lado da Gafanha umas comportas, (o povo chamava-lhes portas de água), para darem / 231 / passagem às águas da barra de Mira nas enchentes, para se fabricar o sal.

Em 1806, o povo que continuava excitado, tentou abrir a barra à força.

Em 28 de Fevereiro de 1807, segundo apontamento manuscrito que possuo, foi aberta a barra, mas logo na madrugada seguinte se fechou de novo. Em Fevereiro e Março de 1808 houve enormes inundações; as águas não se escoavam para o mar. No bairro baixo da cidade entrava-se pelas janelas para dentro de casa. A excitação popular era terrível; as obras corriam risco iminente de um assalto. Luís Gomes resolveu então acelerar a abertura da barra, e no dia 3 de Abril de 1808, Domingo de Lázaro, às 7 horas da tarde, depois de se ter aberto uma vala através da parte não cortada do marachão, as águas precipitaram-se violentamente para o mar continuando assim durante três dias, ao fim dos quais se conseguiu uma barra com 4,40  a 6,60 m de profundidade e 264 m de largura.

É esta a barra que ainda existe hoje, à custa de muitos esforços e sacrifícios.

Pouco depois da abertura da barra, o mar destruiu o dique numa extensão de 660 metros, e as correntes das vazantes começaram a corroer a praia do canal de S. Jacinto (cale da Senhora das Areias) e a depositar no canal da barra as areias que de lá traziam. Para evitar isto, Luís Gomes mandou construir fora do plano de Oudinot, na orla do areal de S. Jacinto, uma série de grossos pontilhões ou redentes de pedra e fachina para desviarem as correntes para leste. Apesar, porém, de todas as obras realizadas, umas na boca da barra, outras no interior da ria e no próprio Vouga, a barra voltou a piorar, estando umas vezes boa, outras má. No entanto tinha-se restaurado a salubridade da região, tornado boas as condições agrícolas e as do fabrico do sal.

No ano de 18r8 começou Luís Gomes a construir um dique na margem norte, a 300 metros de distância do molhe sul. Este dique, porém, em breve foi destruído em virtude da sua fraca consistência.

Em 1820 estava a barra em más circunstâncias e os diques arruinados.

Em 1823 surgiu a questão política, que juntamente com descontentamentos por motivos de ordem técnica, fizeram afastar Luís Gomes da direcção das obras da barra, pelos seguintes motivos que constam da acta da sessão da Câmara, nobreza, clero e povo, de 23 de Julho de 1823:


1) Ter mais simpatia pelo regime constitucional do que pelo absoluto.
2) Não ter continuado os trabalhos da abertura da barra conforme o «insigne» plano de Oudinot, estando já as obras em adiantamento e vencida a maior dificuldade que era a tapagem do rio Cale da Senhora,
/ 232 / donde resultou a demora de alguns anos até completa abertura da barra, com grandíssimos prejuízos para a saúde pública e economia da região, por estar quase fechado o rio velho.
3) Ter estragado o canal da barra com grossos dentes de pedra e fachina que mandou construir nas areias do norte, os quais tinham provocado a ruína do paredão da barra, e impediam que as águas rasgassem uma barra natural e duradoura em que se viessem a estabelecer correntes na direcção aproximada de leste-oeste.
4) Não ter cuidado convenientemente do paredão da barra.
5) Fazer obras dispendiosas e inúteis.
6) Tratar escandalosamente o povo de Aveiro.

 

Barra de Aveiro, vendo-se à esquerda do Forte Novo as duas motas que haviam de limitar o canal do Espinheiro, projectado por Silvério Pereira da Silva, mas que não chegou a ser construído. (Fotografia tirada de avião em 1922)

 

Em 1837 sucedeu um facto interessante, mas de consequências desastrosas: foi que tendo-se tapado por si a barra de Mira, depois de aberta a barra do Forte Novo, neste ano, o inverno fez rasgar a duna litoral na Vagueira à distância de 9 quilómetros da nova barra e abriu uma barreta, que provocou o assoreamento do canal da barra do Forte Novo, a destruição de uma parte do dique junto à Gafanha e a inundação de muitos terrenos baixos. Passados cerca de 30 anos conseguiu-se que a barreta voltasse a fechar-se por si.

Desde 1823 a 1858 não se fizeram mais obras novas na barra; apenas se foi restaurando o dique dos rombos enormes / 233 / que o mar lhe causava e os redentes de S. Jacinto. Mesmo assim em 1843 o paredão encontrava-se destruído do lado do mar, numa extensão de 748 metros.

Em 1849 a barra encontrava-se em estado deterioradíssimo, conforme se lê no relatório da Junta Geral do Distrito de 21 de Maio deste ano.

Depois da saída de Luís Gomes, foi nomeado director das obras o capitão-tenente da armada J. P. Celestino Soares que exerceu o lugar de 1834 a 1837. Depois até 1858 sucederam-lhe sete directores.

O engenheiro Agostinho Nunes, consultado em 1854 sobre o que se deveria fazer para melhorar a barra, disse que era opinião de ingleses muito conhecedores das circunstâncias da barra, que todos os meios que concentrassem as correntes para atacarem o fundo de areia seriam bons, mas muito melhores se fossem auxiliados pelo trabalho de uma draga.

Disse também que seria bom aproveitar a bacia da Vagueira, para nela se represarem as águas da maré por duas eclusas para obter correntes de varrer na barra nova; note-se que a barreta da Vagueira continuava aberta.

Já em 1852 este engenheiro havia escrito, em uma memória sobre a Barra de Aveiro, que os melhores resultados para a beneficiação da barra se conseguiam consolidando e fixando a margem norte do canal dando-lhe a direcção que a ciência aconselhasse.

Em 1855 o engenheiro inglês John Rennie foi convidado a visitar a barra de Aveiro, o que fez, e depois apresentou um relatório em que indicava as obras a realizar. Entre outras que propunha, dizia que era preciso: 1.º aumentar, quanto possível, o receptáculo das marés, alargando-se a passagem através do dique de 30 pés a 100 pelo menos.

Esta passagem de 30 pés tinha sido já de 24.

2.º Devia alinhar-se o canal da cidade (antiga cale da vila) e construírem-se outros canais que conduzissem defronte da barra as águas do Vouga, de Ovar e de Vagos, reunidas todas em um canal único (base de um futuro projecto de Silvério Pereira da Silva).

Também se deveria construir um dique do lado do norte no canal da barra. Este dique e o do sul seriam convergentes para o lado do mar.

___________________

Em Junho de 1858 assumiu a direcção das obras o engenheiro Silvério Augusto Pereira da Silva, que muito se distinguiu pelos seus esforços e trabalhos para conseguir de uma maneira definitiva uma boa barra.

/ 234 / Do seu relatório de 30 de Dezembro de 1859, sobressaem as seguintes indicações:
a) reconstrução do dique sul; b) construção de um dique norte convergente com o do sul para leste. Começava à distância de 300 m do do sul e afastava-se no prolongamento para o mar na razão de 1/12 do seu comprimento; c) alargamento das portas da Cambeia, para facilitar a passagem das águas do canal de Mira; d) obras na costa do canal de S. Jacinto para se obter uma melhor direcção das correntes de fluxo e refluxo.

A barra desde 1851 vinha piorando, e encontrava-se em 1859 quase fechada. O engenheiro Silvério em Dezembro deste ano já tinha construído o dique norte, com 295 metros.

É interessante o parecer do Conselho de Obras Públicas de Maio de 1859 sobre uma proposta do eng.º Silvério: assim, quanto ao molhe norte, entendia este Conselho que a direcção do dique norte devia concordar com a da costa de S. Jacinto; quanto às jetées da barra, estabelecia que fosse mais avançada a do lado de onde sopravam os ventos reinantes, portanto a do norte, e que fosse convergente para o sul. A indicação do avanço da jetée norte foi mais tarde aproveitada pelo eng.º Von Hafe; a convergência das duas jetées foi adoptada por uma Missão de engenheiros ingleses em 1930.

Em 16 de Agosto de 1861, o eng.º Silvério apresentava novo relatório em que dava conta dos trabalhos realizados. Reconhecia a má orientação que Oudinot e Luís Gomes tinham dado ao molhe sul através da areia, de que resultavam funestas consequências, e, para as remediar ou atenuar, propunha a construção de umas comportas na cambeia que permitissem às águas da Vagueira juntarem-se às de S. Jacinto para aumentarem a corrente de vazante, aproveitando-se a diferença de horários nas marés nas duas partes da ria.

Com estas comportas que vieram a ser construídas em 1865 calculava conseguir também o tapamento da barreta da Vagueira, o que de facto sucedeu.

ADOLFO LOUREIRO aprecia assim as obras de Oudinot e Luís Gomes:

«Dois foram como já citei, os vícios principais das obras: a má escolha do ponto da costa em que devia ser a barra, e a má situação e disposição do molhe exterior.

Deveria aquela ficar a 2500 metros para o N. para corresponder ao ponto onde convergem as águas da Cale do Ouro, do Espinheiro, e da Vila. O marachão ficou em posição que faz com que a resultante das correntes vá incidir quase perpendicularmente ao molhe S.

Este molhe devia partir, como em 1777 o havia projectado o inglês Elsden, do lado N. do forte na direcção de W. S. W. .
A separação das duas bacias do N. e do S. ficou também muito inconvenientemente feita.

/ 235 /

Projecto do engenheiro Von Hafe das obras a realizar para melhoramento da barra e construção do porto comercial de Aveiro (1927).

Este projecto foi alterado um pouco, na parte relativa à barra, por uma Missão de engenheiros ingleses, em 1930, e é com estas alterações que ele se está executando presentemente nesta parte.

/ 236 / Mas também diz, e com verdade:
«É certo que o projecto justifica-se pela consideração da economia no corte do areal da costa, na extensão do molhe e bem assim na grande importância que se deu ao forte novo para defesa da barra.»

O mar destruindo, no mês de Agosto de 1935, a praia próximo do farol da barra de Aveiro.
Ao centro vê-se a ronca.

 

Em 1873 novamente se obstrui a barra, e em 26 de Fevereiro de 1884 o eng.º Silvério apresenta um projecto geral de melhoramentos da barra e porto de Aveiro. Entre outras obras propunha:

1º Corte oblíquo do dique sul, junto ao Forte, a partir do vértice para oeste, num comprimento de 15O metros, para dar salda às águas do canal de Mira, em substituição das portas da Cambeia. 2.º Abertura de um canal na cale da vila, desde o Espinheiro até o canal da barra, através do banco e ilha da Mó do Meio. Com a corrente deste canal, a de S. Jacinto e a de Mira, todas reunidas em frente da barra, contava obter uma resultante capaz de produzir um profundamento notável no canal da barra e boa direcção deste (projecto de John Rennie).

O corte do dique foi autorizado, sob responsabilidade do eng.º Silvério, e fizeram-se 11 vãos de 14 metros cada um, separados por pilares, sobre os quais se assentou uma ponte de madeira de 169 metros de comprimento, que ainda existe hoje, mas que em breve será substituída por outra de cimento armado.

Quanto ao canal de Espinheiro, devia ser formado por duas matas curvilíneas. A do norte devia ficar com 2.700 metros de comprimento, e a do sul ficaria com 1.560 metros; reconheceu-se depois que esta mota deveria ter 3.450 metros.

/ 237 / Começaram-se as obras das motas em 1879; em 1886 estavam construídos 2.365 metros da margem direita, e 1.824 metros da margem esquerda; em 1903 estavam concluídos 2.499 metros da margem direita; e 2.248 da margem esquerda.

Por falta de verba e de interesse pelas obras, estas pararam e o canal nunca se abriu.

Continuaram as obras da barra a circunscrever-se à reparação e conclusão do dique sul da barra.

Entretanto, a barra ora melhorava, ora piorava.

Em 1927, o engenheiro João Henriques Von Hafe, director das obras da barra de Aveiro, apresentou um projecto de melhoramentos desta, que consistia na construção de um molhe norte paralelo ao molhe do sul, mas prolongado sobre o oceano até 250 metros, e na construção a oeste do Forte Novo (hoje torre de sinais) de dois diques curvilíneos de orientação das correntes de S. Jacinto e de Mira, juntando-as paralelamente na vazante com pouca perda de força viva.

Este projecto foi submetido à apreciação de uma comissão de engenheiros ingleses que veio a Portugal. Esta propôs-lhe as seguintes alterações principais: 1.º O molhe norte devia ser convergente para o mar com o do sul, e prolongar-se em dique até o Centro de Aviação Naval de S. Jacinto; 2.º Não se devia construir o prolongamento do molhe norte dentro do oceano, pelo menos por agora; 3.º O canal que ficava a dar saída às águas de S. Jacinto devia ficar mais largo que o proposto e o de saída das águas de Mira mais estreito.

Este projecto dos engenheiros ingleses tem a data de 12 de / 238 / Agosto de 1930, e foi aprovado por portaria de 6 de Outubro do mesmo ano.

As obras foram inauguradas oficialmente em 16 de Outubro de 1932, e nos fins do mês de Outubro próximo devem estar concluídas. Nelas se depositaram grandes esperanças de um
feliz resultado que trouxesse à cidade de Aveiro e aos sete concelhos Ovar, Murtosa, Estarreja, Aveiro, Ílhavo, Vagos e Mira, que marginam a ria, a prosperidade que almejam e é necessário que atinjam.
Infelizmente as actuais obras parece não conduzirem ainda a todos os resultados que se desejavam, em profundidade e largura da barra, pelo que já foram propostas novas obras complementares.
Para finalizar estas notas e em face do que fica exposto, seja-me permitido fazer as seguintes perguntas:
Não é já tempo de reconhecer que o dique que liga o Forte Novo com o areal da Gafanha perdeu a sua razão de ser por ter findado a função que desempenhava desde a abertura da actual barra até o tapamento da barreta da Vagueira, e que é actualmente prejudicial?
Não será, portanto, conveniente suprimir tanto quanto possível o dique da Gafanha, restituindo assim à laguna a sua feição do século XVI?


Para eu ficar em boa companhia, irei buscar os engenheiros Adolfo Loureiro, Augusto Luciano Simões de Carvalho e Joaquim Pires de Sousa Gomes, que em relatório de 6 de Fevereiro de 1889 propunham ao Governo, entre outras medidas para melhorar a barra e o porto de A veiro, o seguinte:


Proceder a novo estudo sobre o melhor ingresso das águas na ria de Mira, quer para acudir à perda de fundo que acusa esta ria, quer para favorecer, ampliar e uniformizar o jogo das marés nas diversas rias.


As medidas propostas foram consideradas como bem fundamentadas pela Junta Consultiva de Obras Públicas.

Mas nunca foram postas em execução. E porque não o hão de ser?

 

Aveiro, Setembro de 1935

FRANCISCO FERREIRA NEVES

 

BIBLIOGRAFIA

FRANCISCO AUGUSTO DA FONSECA REGALA A ria de Aveiro e as suas indústrias, Lisboa, 1889
ADOLFO LOUREIRO
Porto de Aveiro. Lisboa, 1904

/ 239 /
A. F. DE LENCASTRE SCHWALBACH LUCCI
Estudos geográficos (Alterações litorais A Ria de Aveiro). Lisboa, 1918.

ALBERTO SOUTO Origens da Ria de Aveiro. Aveiro, 1923.

SILVÉRIO DA ROCHA E CUNHA O porto de Aveiro. Lisboa, 1924.

SILVÉRIO DA ROCHA E CUNHA Relance da História Económica de Aveiro. Aveiro, 1930

JOSÉ MARIA DA SILVA O porto de Aveiro e o projecto do engenheiro Von Hafe. Porto, 1930.
JUNTA AUTÓNOMA DA RIA E BARRA DE AVEIRO
Porto de Aveiro Obras de melhoramento da Barra. Gaia, MCMXXXII.
FRANCISCO FERREIRA NEVES
O III Congresso Regional das Beiras. Vila Nova de Famalicão, 1928.
FRANCISCO FERREIRA NEVES
As «Reflexões Históricas sobre a Barra de Aveiro» de Almeida Coimbra e as obras de Luís Gomes. Aveiro, 1933.

 

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