Liturgia Pagã

 

O caloiro e o mestre

 

Baptismo do Senhor (ano A)

1ª leitura: Livro de Isaías, 42, 1-7

2ª leitura: Actos dos Apóstolos, 10, 34-38

Evangelho: S. Mateus, 3, 13-17

 

Mais coisa menos coisa, Jesus foi baptizado aos trinta anos por S. João («o baptista»). Assim realizou o primeiro acto da sua carreira: anunciar o «reino de Deus». Viria a fazê-lo com uma autoridade tão genuína e tamanha que espantou a quantos o ouviram. Como um caloiro, ao entrar no novo campo do seu projecto de vida, submeteu-se a um rito de iniciação: sem passar por este, o novo membro não é aceite nem se reconhece na comunidade em que se pretende inserir.

 

Ao longo da nossa vida, todos nós recebemos um ou mais «baptismos de fogo»: são a prova da nossa coragem e aptidão para levar à frente aquilo para que nos sentimos e fomos chamados, dando prova do nosso livre assentimento. Mas há frequentemente súbitas mudanças de rumo, e de novo temos que nos pôr à prova. Só assim podemos acabar os nossos dias com a consciência de termos feito o nosso melhor para cumprir o projecto, nascido ou não de uma espécie de chamamento transcendente.

 

Porém, a nossa vida está cheia de baptismos menos notáveis, embora não menos verdadeiros: uma nova amizade, uma viagem, um novo amor… e um sem fim de sonhos e aventuras. Todos podem ser adequadamente sentidos como exigindo novas respostas e compromissos.

 

Quando o projecto começa a tomar forma, temos que descer humildemente o ribeiro entre a multidão e submetermo-nos ao rito de iniciação. Se o não fizermos, podemo-nos perder nas miragens dos desertos. Ou ficaremos mais facilmente vulneráveis à tentação de poder e de orgulho, e não saberemos estar com a comunidade que pretendemos servir com a nossa vocação. Sem a «fome e sede de justiça» a implementar no nosso meio, a vida mais esplendorosa e invejada será inútil como a palha que o vento leva e o fogo destrói. O Antigo e Novo Testamento referem muitas vezes a tentação do caminho mais cómodo ou mais afastado do convívio sincero com os outros, e como precisamos da ajuda de «alguém» muito especial.

 

No baptismo de Jesus, o próprio Baptista confessou ser ele quem devia ser baptizado por Jesus. Mas Jesus insistiu em receber «o baptismo de João», que era um acto de arrependimento e de conversão. Entrando nesse esquema, Jesus podia ser facilmente comparado à estranha figura do «servo de Javé»: «Na verdade, ele – o servo de Javé – tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores; aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento, para que a sua vida fosse um sacrifício de reparação; Ele, o justo, justificará a muitos, porque carregou com o crime deles» (Isaías, 53, 4-5). E assim como Deus glorificou este seu «servo», também depois de João derramar a água sobre Jesus, o Espírito de Deus chamou-o de «filho muito amado». Este relato é mais um exemplo de como Mateus recorre ao Antigo Testamento para enaltecer Jesus como «o Cristo»: elaborou a história do baptismo de um modo que só poderia ter sentido depois que as primeiras comunidades cristãs fizeram a experiência de «Jesus para além da morte», descobrindo mas também imaginando o que ficava bem dizer que tinha acontecido a uma pessoa que mereceu o título de «filho de Deus».

 

Quantos grandes empresários, altos dignitários religiosos, políticos, «directores» disto e daquilo... saberão reconhecer, como João Baptista, os dons superiores de alguém que venha ter com eles? Quantos serão capazes de ajudar os outros a multiplicarem os seus talentos, sobretudo quando isso implica ir-se retirando do primeiro plano?

 

Na 1ª leitura, aparece o primeiro dos quatro poemas do «servo de Javé», essa figura misteriosa, difícil de identificar (cfr. a citação de Isaías). De todos os livros do Antigo Testamento, são as passagens mais estudadas, sem se verificar consenso quanto ao seu significado. Provavelmente, esta figura de «servo» retrata o profeta seu autor, ou outra figura religiosa impressionante. Ao certo, só se sabe que o autor destes cantos não é o profeta Isaías (que viveu no séc. VIII antes de Cristo), mas algum seu discípulo espiritual, muito mais recente (do século VI, aproximadamente). Este último é que terá composto os capítulos 40-55 – conhecidos como «O Livro da Consolação», devido ao tema dominante de Deus como salvador). A profundidade e alcance religiosos destes quatro poemas fizeram deles a grande prefiguração de Jesus como «servo perfeito» e «filho muito amado».

 

Na 2ª leitura, S. Pedro, o chefe dos apóstolos, reconhece o erro do preconceito relativamente a cristãos não judeus, pois verifica como Deus se comunica aos seres humanos «sem acepção de pessoas». Foi só depois de ter meditado junto de Deus, que aceita entrar na casa do «pagão» Cornélio, não, porém, sem ter o cuidado de se justificar perante muitos cristãos de vistas estreitas... Não será por acaso que os versículos 36 a 43, do cap. 10 dos Actos dos Apóstolos, logo em estreita ligação com o episódio de Cornélio, formam um primitivo e altamente sugestivo credo cristão.

 

Porém, o tema comum que sobressai de todas as leituras… (valerá ainda a pena falar dele?) – é o tema da justiça!

 

A justiça que «não apaga a torcida que ainda fumega», mas que se procura impor «sem desfalecer nem desistir» (1ª leitura). A justiça que devemos tornar presente  no mundo, se queremos agradar a Deus (2ª leitura). A justiça, enfim, que é o próprio plano de Deus a realizar dentro dos condicionalismos históricos (evangelho), suportando humilhações, quantas vezes, como o «servo de Javé», mas com a coragem de quem colabora com Deus.

 

Nos ritos actuais do Baptismo, sobretudo quando se baptizam crianças, sobressai a importância de o compromisso pela justiça ser conscientemente aceite pelos pais, padrinhos, e toda a comunidade envolvente. O baptismo é um daqueles momentos fortes em que podemos sentir a vontade de Deus em comunicar connosco, como um Pai com os «filhos».

 

É portanto a comunidade que está em jogo. Ao longo da nossa vida, e particularmente nos momentos difíceis, de grande sofrimento, como quando a morte se parece anunciar, é nesta comunidade que deveríamos encontrar o amor que nos faz sentir a força de caminharmos juntos no misterioso projecto da vida, sem desfalecer no caminho da justiça e procurando as estratégias mais engenhosas para a implementar,  deixando assim às novas gerações o testemunho de que «vale a pena viver».

 11-01-2008


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