Liturgia Pagã

 

Deus O «Estraga-Vidas»

3º Domingo da Quaresma (ano B)

1ª leitura: Êxodo, 20, 1-17

2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 1, 22-25

Evangelho: S. João, 12, 13-25

 

Mandou reunir o «povo escolhido» para proclamar as leis a que teriam que se sujeitar – dez mandamentos que assegurassem a ordem social daquele tempo (1ª leitura). Mas esta proclamação estava a ser feita num ambiente de tal modo aterrorizante, que o povo pediu a Moisés que os deixasse longe desse Deus, que só atrapalhava o dia-a-dia dos negócios, dos amores, das lutas e convívios, enfim, o dia-a-dia das complexas relações humanas. A intervenção de Deus na nossa vida parece dar mais confusão do que proveito, mais opressão do que alegria…

            E, séculos mais tarde (evangelho), Jesus, que se apresentou a si próprio como «manso e humilde de coração», não é que surge no templo de Jerusalém a estragar o dia normal dos negociantes? Não contente com agredi-los com palavras, tê-los-á corrido à chicotada enquanto destruía as bancas dos vendedores.

Poucos anos depois, S. Paulo (2ª leitura) confunde as ideias de toda a gente: por um lado, chocando sobretudo os Judeus, anuncia que o Messias é aquele Jesus, arredado das políticas e negócios do templo, de vida humilde e até marginal, e que foi condenado à mais humilhante e cruel morte, própria do mais vil malfeitor; por outro lado, chocando sobretudo o racionalismo helénico, apresenta como modelo do «homem novo» esse mesmo Jesus, que afinal continuava vivo e nos faria partilhar da sua vida eterna. Como encaixar esta mensagem estranha na nossa vida?

Uma coisa é verdade: temos medo do desconhecido. E Deus é muitas vezes referido como «o grande desconhecido» – não porque as pessoas não ouçam falar dele ou não pensem nele ou não o sintam no espanto perante o universo, mas porque é aquela realidade que está para além e por dentro da nossa realidade.

Arriscar no desconhecido, por vezes duramente, é tido como um dos segredos de sucesso. Porém, os piores enganos devem-se ao esquecimento do valor central: o amor da própria Vida, que se exprime na vontade em contribuir para que todos – mas todos – tenham «vida em abundância», seja qual for a sua origem ou ideologia. Se com o nosso crescimento os outros crescem, então é sinal de que estamos no caminho certo.

Na 1ª leitura, o povo sentiu que podia sofrer terríveis castigos, se não se empenhasse em preservar o ambiente saudável para o crescimento, a nível social, higiénico e religioso. Se queremos trabalhar bem, com o entusiasmo de ajudar a humanidade a crescer, temos que saber descansar. Como dizia um verdadeiro psicólogo português, «por amor dos outros, temos que descansar dos outros» (Evaristo de Vasconcelos). Na poética descrição do Livro do Génesis (2,2-3), o próprio Deus descansou da sua obra criada com tanto entusiasmo. O «dia do descanso» é instituído para que as pessoas se lembrem que elas são infinitamente mais do que aquilo que podem realizar exteriormente. E deste modo, lembram-se do verdadeiro motivo da Vida, para que não sejam tentadas pelo «eixo do mal», o eixo da destruição dos outros.

No Evangelho, é de novo a preservação deste ambiente que está em jogo. Por isso, não podemos misturar o «templo do descanso» com o negócio – e pior do que sermos «vendilhões do templo» é sermos «vendilhões de Deus». O radical de tempo e templo é o mesmo – «tem» – que significa separar, cortar. Se não sabemos ter um tempo para descansar, Deus não se diverte connosco nas bodas de Caná. Se não sabemos dar tempo para nos juntarmos ou estar a sós perante Deus, os nossos negócios não serão feitos com justiça e amor da Vida.

Em Jesus, Deus revelou o seu «poder e sabedoria» (2ª leitura) e mostrou-se solidário com o nosso trabalho, o nosso sofrimento, a nossa morte, a nossa alegria. Mostrou que “por dentro da vida é que está a Vida” – mas isto só descobre quem se dá tempo para ir ao templo.

Onde está este templo? As diferentes culturas construíram «espaços separados», especialmente propícios para descobrir que «por dentro das coisas é que as coisas são». Aí podemos sentir que Deus até é o contrário de «estraga-vidas», muito ao contrário da imagem de castrador da nossa vida – como nos é tantas vezes apresentada pelos próprios «sacerdotes do templo». Talvez para fugir a esta imagem triste de Deus, é que Jesus foi bem claro com a Samaritana: dentro de cada qual é que está o verdadeiro templo – basta dar-lhe tempo.

11-03-2012


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