Liturgia Pagã

 

O sorriso de Deus

2º Domingo da Quaresma (ano B)

1ª leitura: Génesis, 22, 1-18

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Romanos, 8, 31-34

Evangelho: S. Marcos, 9, 2-10

 

Alguém pode acreditar num Deus que exige submissão a ordens claramente inaceitáveis, contra a dignidade do ser humano?

O drama da 1ª leitura levanta esta e outras questões: Abraão tem idade avançada, sem filhos de Sara, estéril e agora velha. Porém, Deus teima que é de Sara (e não da escrava dela) que nascerá o futuro pai do «Povo escolhido». Tudo isto é tão rocambolesco que Abraão e Sara «se riem» perante ideia tão absurda (Génesis, 17, 15-19). Mas não é que Sara tem mesmo um filho? Deu-lhe o nome de Isaac (que significa «sorriso de Deus, Deus favorável»), dizendo: «Deus deu-me uma razão para rir, e todos os que souberem o que se passou comigo me darão o seu sorriso» (Gén.21, 6). Porém, ainda Isaac era jovem, que pede Deus a Abraão? – Que mate esse mesmo filho, como quem mata um animal num rito religioso!

Abraão cumpre o que lhe parece uma ordem divina. Levanta o braço para cravar o punhal – e se não fora o próprio Deus a travar-lhe o gesto, logo ali teria acabado a geração dos patriarcas…

Sabemos hoje que, para os historiadores desse tempo, o mais importante era tirar lições das «histórias» (mais ou menos lendárias) que podem formar a «história». Neste caso, importava dar relevo à fé de Abraão, que teve a coragem de deixar o seu ambiente seguro para embarcar numa aventura em que entram batalhas, destruição de cidades, conflitos familiares… e a confiança absoluta em que Deus, embora contra as aparências, só quer o nosso bem.

Paradoxalmente, esta história tão pouco própria da religião judaica também cumpria o objectivo de condenar os costumes religiosos de alguns povos, que achavam ser útil sacrificar a Deus a vida das crianças.

Nenhum homem “de boa fé” poderia obedecer como Abraão. Mas não é verdade que muitas vezes desculpamos as nossas acções, mesmo se pérfidas e cruéis, dizendo que são da vontade de Deus? Que salvação podemos esperar com as guerras e chacinas do passado e presente – sem esquecer as “chacinas soft” causadas por políticas perversas e pelo nosso egoísmo, sob a capa de uma economia mais «saudável» ou de expansão de uma dada religião?

Deus ensinou a Abraão que a vida não pode estar contra a vida. E para isso, é preciso pôr claramente em primeiro lugar a vida: é o sentido de «amar a Deus sobre todas as coisas», isto é, de se orientar pela exigência divina da dignidade humana. Ao mesmo tempo, embora sob forma excessivamente dramática, lembra-nos que o amor exige desprendimento. Não é verdade que, se amamos os filhos, temos que nos saber desprender deles? E de quantas coisas temos nós que nos desprender por amor a uma vida que valha a pena viver?

O cristianismo viu nesta história o prenúncio da história de Jesus Cristo: tão amado por Deus e tão abandonado na cruz.

O episódio da transfiguração, provavelmente, é uma forma imaginosa de exprimir a experiência posterior de Jesus «glorificado» («ressuscitado») por Deus: esse homem cruelmente desprezado e executado surgia vivo de um modo acima da compreensão – que pode ser a nova vida da humanidade inteira.

Todos os elementos da «transfiguração» remetem para antigos símbolos da experiência do divino, em si indescritível: resplendor das vestes, temor, nuvens… Jesus será pois o verdadeiro Profeta (acima de Moisés e Elias), o Messias prometido, que devemos escutar: só ele fala de Deus como um filho pode falar do pai (e o importante é a maneira como um filho fala com os pais...).

Esta cena do evangelho revela também como os apóstolos tiveram consciência da dificuldade em discernir «o sorriso de Deus»!       

Em Jesus Cristo, Deus revelou-se como estando totalmente por nós (2ª leitura). Porque será que usamos (talvez cada vez menos) a expressão «amo-te para sempre»? O amor, como a alegria, requer eternidade, ou não passa de um engano.

Mas já nesta vida breve, precisamos de sorrisos: são os momentos de transfiguração, mesmo quando os outros e o próprio Deus fazem cara de poucos amigos.

 É caso para «arregalar os olhos»: haverá sempre «sorrisos de Deus» no meio dos desconcertos da vida – e temos o poder de «transfigurar» o mundo com a Justiça e a Beleza!

04-03-2012


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