A Família: Grupo perfeito?

Que é um «grupo perfeito»? – Seguindo grandes pensadores, é aquele em que se partilha a experiência de cada qual. É um grupo em que a vida toma voz, toma consciência de si própria e da riquíssima variedade do que é «viver».

Esta "comunhão de vida" será tanto mais rica quanto maior diversidade de experiências houver no grupo. Ora até a mais pequena família nuclear já é exemplo de extraordinária diversidade: de idades, estatutos, funções e obviamente de sexo. Assume deste modo a função do primeiro e fundamental “útero social”: é a continuação imediata do útero materno. Parece tão «natural» que esse grupo funcione bem, que a sociedade quase só presta  atenção ao que é negativo: comportamentos condenáveis, conservadorismo ético e político, fonte do «machismo» e de toda a espécie de autoritarismo.

Valerá a pena «investir» no bom funcionamento desse «grupo»? Não está em jogo apenas o essencial de condições materiais: é a própria importância que a sociedade lhe atribui ou nega; e a capacidade (financeira e psicológica) do «pai» e «mãe» gerirem a situação económica e de relação humana. Considero esta última a principal: gera energia suficiente para superar grandes problemas e permite que novos modelos de «família» cumpram os requisitos do «útero social».

Neste «útero», a criança vai adquirindo a capacidade de assumir a sua própria maneira de ser, como «pessoa» naturalmente diferente dos outros; vai descobrindo que a dignidade humana se manifesta na infinda variedade de seres humanos; e que amar e ser amado é o encanto de mergulhar numa nova «paisagem» que nos atrai como um dom. Não será verdade que amar é dar-se a alguém como se fosse  um «presente»? Dando início a uma troca de carinhos ao correr da vida.

Haverá «sociedade» mais produtiva e digna do que esta? Que aumente de facto as possibilidades e competência de cada qual? Neste singular tipo de «empresa», exercitamos a arte de "prestar atenção"; aumentamos o conhecimento e a prudência para bem discernir entre o melhor e o pior; arquitectamos a coragem para emitir juízos, sem medo de escolher, não deixando fugir aquilo que vale a pena. Precisamos deste «segundo útero» até ao fim da vida – o diversificado e evolutivo «útero social».

Porém, a organização economicista da sociedade só vê no ser humano o valor da sua «produtividade»: uma máquina que se leva para aqui ou acolá – e enquanto a sua «manutenção» der lucro. Depois, deposita-se na «lixeira humana».  Nem sequer é reconhecido quanto esse «lixo»  contribui para o progresso verdadeiramente humano da sociedade. Sintetizando: a família tradicional não tem «utilidade».

Por outro lado, «democracia» e «liberdade» tornam-se conceitos individualistas, dificultando estabelecer relações afectivas profundas, com as características do grupo perfeito. O principal direito é fazer o que apetece e «ninguém pode dar lições de moral».

O nosso recentemente homenageado Bispo, D. António Marcelino, gostava de repetir: temos que educar os nossos «filhos» (e a nós próprios) para as «correntes de ar» e não para salas agradáveis. E apostar nos contributos positivos de grupos que vão substituindo (por necessidade ou pela evolução da cultura) a imagem tradicional de família: que procurem ser «grupos perfeitos», onde os afectos sejam objecto do maior cuidado e sensibilidade. Abusa-se dos afectos? Infelizmente, em qualquer tipo de grupo é muito fácil: basta não haver autêntica comunicação.

 Diz um slogan conhecido: «a minha liberdade acaba onde a liberdade dos outros começa». É porém um slogan infeliz, porque nos apresenta os outros muito dignos de respeito mas causadores da nossa limitação, mesmo de uma certa opressão, e no fim de tudo como "inimigos" da "minha liberdade". Proponho um novo mote: «a minha liberdade aumenta quando amo a liberdade dos outros». A acção de "muitas liberdades" não diminui mas potencia a liberdade de cada qual. Quando sinto a minha liberdade amada, sinto-me mais livre, mesmo quando experimento contrariedades e frustrações: porque essa experiência de situações penosas é partilhada e discutida com "outras liberdades" e, todos juntos, criamos a energia necessária para buscar soluções e sobretudo para aprofundar o sentido da vida.

Num «grupo perfeito», podemos ler tranquilamente, sem angústia (embora por vezes com tristeza) o que é nascer e morrer, as idades da vida, o amor e a solidão, a paz e a guerra... Ler e reflectir como a gente nem consegue compreender o que é o universo, a vida, o ser humano… E que precisamos de continuamente ir tentando soletrar os símbolos do que é que une todas as coisas e nos pode dar sentido, conforto e esperança, mesmo quando o mal está mais presente. É alguém que é o elemento mais forte do «grupo perfeito».

E que nos faz sentir que a «harmonia» é tanto mais rica, quanto maior diversidade de melodias soubermos amar.

Aveiro, 15-05-2019

 

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