Educar a religião?

Noutro artigo, lembrei que «educar» também significa «fazer sair». É isso: é preciso «fazer sair a religião» – que está dentro de nós. Pouca gente culta negará que o ser humano é por natureza religioso: em todas as culturas, dá-se uma predisposição, abertura ou pergunta de índole «religiosa». Contudo, as tentativas para definir «religião» não têm satisfeito os mais esforçados especialistas. As religiões específicas é que podem gerar uma visão fanática que, para além de abomináveis fenómenos de violência, estraga, elimina ou perverte essa natural janela aberta para o grande mistério.

Ao falar de religião, convém ter presente dois aspectos: (a) religião como acto pessoal e (b) religião como facto social. No seu significado genuíno, a religião só tem valor como acto pessoal. Disso dá exemplo Jesus Cristo ao «educar» a samaritana: «Chegou a hora em que não é nas montanhas sagradas nem em Jerusalém que o Pai é adorado: os verdadeiros adoradores adoram o Pai em espírito e na verdade - pois Deus é espírito» (glosa dos versículos 21-24 do cap. 4 do Evangelho segundo S. João).

Cientificamente, porém, compete à sociologia medir e caracterizar a religião enquanto fenómeno social: comportamentos e rituais; símbolos e actores "religiosos"; religião como poder, organização política e económica… A Psicologia ou se fica numa análise comportamentalista ou procura sondar o "desejo religioso", na linha da que foi chamada «Psicologia profunda» e também podendo utilizar toda a panóplia da psicanálise. Jung, à diferença de Freud, não vê a atitude religiosa como jogo de comportamentos neuróticos, redutível à polimorfa força sexual. Pretende antes descobrir as "traves mestras" dessa milenária preocupação humana, penetrando o universo simbólico.           

Consequentemente, só passamos da «religião infantil» para a «religião educada» se desenvolvermos a capacidade racional que nos permite fundamentar e saborear esse valor. E sem medo de «relativizar» os nossos conceitos religiosos: Deus é «absoluto», mas as nossas ideias sobre Deus não são absolutas! São contínuo esforço de «educação»!

         Acontece que o conceito de «racional», como o de "razão", também é objecto de discussão quase três vezes milenar. Mas a definição honesta de "animal racional" tem o mérito de nos situar no mundo em que vivemos, chamando a atenção para o modo como vivemos: Todo o «animal» mostra "humores" e características psicológicas e chega a ser capaz de reagir ao conteúdo significativo de qualquer excitação; como «racional», tem o poder de «pensar» a sua situação, em comunicação com os seus  congéneres. E pensar é não só sentir o «peso» e a força de quanto existe: este sentir é ainda muito próximo  do simples «animal». Pensar permite emitir um juízo inteligível e fundamentável, que se pode comunicar com clareza, ajudando a iluminar as mais profundas preocupações humanas. Sem esquecer que por natureza somos continuamente insatisfeitos!

«Estar satisfeito» pode ser a expressão de um equilíbrio psicológico desejável; e o desejo de alcançar esse equilíbrio é que nos leva a sair para fora do «nosso castelo» onde tudo parece estar arrumado solidamente. A incursão no desconhecido força-nos a repensar e melhorar a solidez do «castelo». O que, por sua vez, nos permite para caminhos desconhecidos. É assim que a Humanidade se vai enriquecendo, descobrindo novos valores e melhorando os antigos.

         E aqui o senhor Descartes parece acertar em cheio: ser racional implica pôr em dúvida, testar a força e o fundamento daquilo que dizemos e fazemos.

A religião é um «fenómeno estranho»: não no sentido de um fenómeno raro mas no sentido de um fenómeno que, na sua totalidade, não cabe (e a própria razão aceita que não pode caber) dentro dos mais avançados esquemas de pensamento. A Humanidade, ao longo dos tempos e em todos os espaços, revela uma sensibilidade orientada para um não se sabe o quê, mas de ordem superior, relativamente a ela própria.

O que interessa ter em conta é que o «sentimento religioso» não se desenvolve sem um acto livre: perante essa fonte de inquietação e de sentido, podemos aderir ou não, aderir condicionalmente ou em absoluto. Por isso, devemos exprimir e viver a dimensão religiosa da maneira mais racional possível. Quem é incapaz de se expor aos perigos e angústias do explorador, muita coisa lhe fica fora do campo visual.

Com base nestas premissas, é racionalmente obrigatório levantar a questão: Quantos «cristãos que abandonam a missa» não estarão a evitar um modo de «viver» a «religião» que não corresponde ao mais profundo desejo humano?

Aveiro, 17-07-2019

 

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