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Acerca do Comércio Quadrazenho

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Aspecto do casario de Quadrazais, vendo-se. ao longe, a serra da Malcata.

O meu avô, Manuel Albino, ferreiro de profissão entre 1920 e 1960, comprava ao Sr. Joaquim Marques da Donfins o ferro com que trabalhava, mas o grosso do carvão, que gastava para pôr o ferro em brasa vinha de Quadrazais em mulas. Na casa dos fregueses, o carvão era medido em cestos. Na sua forja, o meu avô abanava-os na altura de o medir para que coubesse mais algum. Era um tempo difícil em que esta pequena habilidade dava origem a discussões acaloradas. Estes vendedores ambulantes, que andavam sempre muito sujos, faziam muita concorrência aos comerciantes com estabelecimentos fixos. Por isso, estes, em 1948, dirigiram-se à Câmara Municipal da Guarda a pedir providências sobre a venda ambulante de carvão e pó para braseiras em prejuízo dos agremiados, colectados e sujeitos a vários impostos e contribuições. Argumentavam.

O carvão não era feito em Quadrazais. Quem o fabricava eram os malcatenhos a partir do torgo. Em Quadrazais só se fazia o borralho, o pó para braseiras. Era este comércio que fazia andar os quadrazenhos numa animação que ainda agora faz sorrir os mais velhos. Esta faceta dos Quadrazais foi registada numa canção que englobava todas as aldeias do concelho do Sabugal, onde eram conhecidos como os carvoeiros. Nesta actividade comercial usavam uma gíria, conhecida até como dialecto dos quadrazenhos. Eram estes também conhecidos por alcunhas que são bem antigas nas famílias, sendo tanto ou mais importantes como os nomes com que foram registados ao nascer. É o caso da alcunha “Candagco” que deu nome a um café em Quadrazais.

Alguns dos comerciantes dos Quadrazais, como António José Aniceto Júnior, eram sócios do Grémio do Comércio da Guarda. Este, em 1948, apresentou no Grémio os reparos contra preços que considerava excessivos constantes de uma factura da Companhia Cerâmica das Devezas, da Pampilhosa. Foi-lhe então dito que a deixasse para que o assunto fosse esclarecido por intermédio do Grémio, que decidiu enviá-la a esta Companhia, mas pedindo esclarecimentos só de um dos preços[1]. Vendia então louça, calçado e sandálias de borracha; mas não se manteve nesta actividade, pois foi para a Angola, donde regressou após a descolonização. Vive agora no lar de idosos de Quadrazais, já muito alquebrado nos seus 96 anos.

Quadrazais foi uma terra de muito iniciativa. Tinha duas fábricas de sabão e de uma delas nasceu a fábrica de sabão da Lomba, onde foi para aí transferida. Foi este sabão que o meu avô Pedro Diniz e os filhos andaram a contrabandear durante a II Guerra, levando-o para Espanha. Nestas terras de contrabando, os quadrazenhos traziam de Espanha o tecido georgete, que me informam ser uma espécie de lantejoulas e que, no nosso tempo, encontramos notícia nos sites dos vestidos de noivas e gente rica. Mas, nesse tempo de pobreza, os contrabandistas traziam também peitilhos, linho, popelina azul ou branca, pano-cru, quase sempre para camisas, com ou sem colarinho e, curiosamente, muita seda, que abundava por isso na aldeia. Como conta Nuno de Montemor, quando vinham os guardas-fiscais, para a esconder vestiam com ela os Santos das Igrejas e toda a gente da aldeia. Traziam os contrabandistas ainda alpergatas, mel, azeite e pão, chitas, véus e muita roupa. Levavam já o café. As casas eram então feitas de pedra ferrenha, uma espécie de xisto que oxida, que era unida por barro, sendo as divisórias das casas feitas por ripas de madeira ou barro que era mais resistente à chuva intensa que a construção em pedra e cimento. Como curiosidade, havia em Quadrazais uma castanha maravilhosa que comerciavam. Mas, o abandono da terra fê-la desaparecer.

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Uma das antigas tradições da Páscoa, que as novas gerações procuram reactivar e manter.

 

Quadrazais manteve, durante muitos anos, os costumes e tradições sociais. Uma antiga era o pagamento da patente pelos candidatos a noivos que não eram da terra. Umas vezes pagavam o seu peso em pão; outras, com cabrito, pão e vinho. Era assim a sua festa de recepção na aldeia. Viviam-se, desta forma, costumes que o imobilismo, que o Salazarismo manteve como realidade estranhamente atrasada.

Só a emigração dos anos sessenta mudou de facto Quadrazais. Desertificou-a e transformou-a numa aldeia, onde o comércio está só presente em quatro cafés, num restaurante e em três mercearias. Fez-lhe abandonar os campos, como acontece em todas as aldeias, onde os quadrazenhos vendiam tanto o contrabando como os produtos locais. Empobreceu-nos a todos económica, cultural e socialmente. 

Aires Antunes Diniz


[1] Actas da Direcção do Grémio do Comércio do Districto da Guarda, livro 5, págs. 157 a 165.

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