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Diversos


Apresentação de Portugaliae Monumenta Frivola

ou as verdadeiras e as falsas riquezas

de Eugénio Lisboa.

 

 

O escritor, vivendo de palavras, deve a estas uma lealdade
inescapável: não as usar prostituindo-lhes o sentido

Eugénio Lisboa

 

Eu diria, antes de tudo, que esta obra não constitui para nós uma surpresa: em primeiro lugar porque grande parte destes textos foi já publicada em jornais e revistas e em segundo lugar porque a qualidade dos mesmos é uma constante de Eugénio Lisboa a que há muito nos habituou.

E, dito isto, passemos ao que mais interessa.

Logo o título (e o subtítulo) e as epígrafes nos sugerem que a ironia será um dos operadores principais destas peças. Epígrafes que constituem, desde logo, uma afirmação da necessidade de tratar do óbvio (é do óbvio que as pessoas mais têm necessidade que lhes falem, diz Carnegie).

Outras epígrafes remetem para a contenção, qualidade tão bem expressa nesta e nas outras obras de Eugénio Lisboa. O pouco dito depressa se emenda escreveu Cervantes e falar demais inclui erros segundo um provérbio birmanês.

De facto, se há uma qualidade que logo salta à vista na leitura destes textos, é a elegância da escrita, avessa a rodriguinhos e ornamentos; se me fosse permitido, eu diria que esta é uma linguagem que lembra um grande poeta brasileiro, falecido há pouco tempo, João Cabral de Meio Neto, que fazia a apologia de uma linguagem escorreita, seca como seco era o seu nordeste, uma apologia dos desertos, do planalto de Medinaceli, da pintura de Mondrian feita de linhas rectas ou ainda do engenheiro, homem de réguas e compassos.

Realmente, Eugénio Lisboa é engenheiro, isto é, teve uma formação científica, exerceu uma profissão nessa área. Não é, pois, de espantar que a sua escrita se paute pelo rigor, pela clareza da exposição, pelo sentido da divulgação dos estudos literários. Como ele próprio diz (p. 85-86), citando Vauvenargues, a propósito de Orwell: a clareza é a boa fé dos filósofos e logo a seguir: o contorcionismo linguístico é sempre um sinal de doença: a má-fé anicha-se, de preferência, no enredado e no arrendado das palavras.

Acrescentaria uma outra qualidade a este estudioso humilde (humilde no que a humildade significa de consciência lúcida do muito que há para aprender) mas determinado: o amor pelas coisas da arte, da cultura, dos livros. E com esta qualidade, Eugénio afasta-se dos funcionários da cultura, daqueles para quem a cultura é um pretexto apenas para fazer carreira. Basta ler essa declaração de amor, belíssima, que a p. 77 faz da senhora de Rênal a propósito de Le Rouge et le Noir de Stendhal.

Diz E. Lisboa: Porque o meu primeiro amor que ficou foi só um: o meu imperecível amor pela Senhora de Rênal. Eugénio, através deste amor, passa para dentro da obra, funde-se com a obra, o que constitui o grau máximo do amor. Não o dizia já o nosso grande vate: transforma-se o amador na cousa amada? E, mais adiante, diz o autor de M.P.F.:

[...] regressemos à senhora de Rênal. Foi minha. Tem sido minha. Nunca há-de ser de mais ninguém. A história com o Julião foi só para fins convencionais e de consumo. Foi só para inglês ver. Porque, no fim de contas, o Julião nada tem que ver com o verdadeiro amor da Senhora de Rênal — que fui eu. Foi comigo que tudo se passou em profundidade — fui eu que a entendi e apreciei. Como o Julião, ainda pretendi ter tido os meus ocasionais devaneios com a menina de La Mole, mas nada disso teve qualquer significado. A menina de La Mole não interessava nem à vaquinha do presépio. A menina de La Mole é mercadoria para paladares grosseiros – e por isso perdeu o Julião tanto tempo com ela. Mágica, doce, terna, mãe, amante, generosa, dedicada, corajosa (como são as mulheres, bem mais do que os homens), omnipresente, torturada de remorsos mas ainda assim amante, amando os filhos e amando-me igualmente a mim ou ainda mais só a Senhora de Rênal, que, desde então, não sai do meu lado, mesmo depois de ter morrido, beijando os filhos, supostamente por causa do Julião mas, na realidade, agora vo-lo revelo, por causa deste vosso criado.

E com estas três qualidades: ironia, rigor e amor construiu e continua a construir a sua obra, este professor de literatura que por acaso é engenheiro. Com elas tenta compreender a literatura e mais do que isso, ensiná-la.

Este livro está dividido em quatro partes: 1) Considerações breves, 2) Algumas admirações, 3) Desacordos, 4) Eu, me, migo, comigo.

Na primeira parte encontram-se alguns temas que têm gerado larga polémica. Entre eles conta-se a cultura.  Sobre este tema disserta E.L. com a maior pertinência.  A começar  por esta  questão

fundamental Para que serve a cultura?

Vejamos o que a este respeito nos diz (p. 16): Mas, afinal para que serve a cultura? Para que serve, se nos não dá um padrão de conduta elegante, se nos não afina nem o espírito, nem os códigos de comportamento? Repito: Para que serve a cultura? Que faz ela de nós, que nos não torna melhores? Que faz ela que nos não dá o gosto de um estilo, de uma estética das maneiras, que em nós não promove o sentido de uma rigorosa exigência?

Ainda a propósito de cultura, não resisto à tentação de transcrever algumas linhas da p.37 (Ler) onde se estabelece uma diferença entre cultura e saber. Estes conceitos aparecem-nos muitas vezes confundidos até por quem tem obrigação de os não confundir. Citando António Sérgio: Há quem saiba muito e não seja culto; há quem saiba pouco e que o seja muito. Reside a cultura essencialmente na forma, e não na quantidade do conhecer; tão-pouco na novidade do conhecer. Curiosamente, esta citação é feita de novo a ps.l22. Não termina aqui a reflexão de Eugénio Lisboa em torno da cultura. Justamente, num artigo intitulado Revisitar as duas culturas chama-nos a atenção para a incompletude de um indivíduo que apenas sabe de ciência ou apenas sabe de humanidades. Diz ele: Eis, pois, o tema de Snow, ao pôr, ante nós, o problema das duas culturas, isto é, o da necessidade de aproximar, uns dos outros, os cientistas e os humanistas. Porque tão grave pode ser o cientista atómico que nunca teve tempo de ler ou meditar um romance de Dickens, como o professor de literatura inglesa (ou francesa, ou portuguesa) que nunca ouviu falar no segundo princípio da termodinâmica. Ao primeiro, faltar-lhe-á alguma dimensão humana e cultural que pode eventualmente torná-lo anestesiado a zonas fundamentais da vida e da decisão profissional que intersectem fundamentalmente o viver e o sobreviver dos outros; ao segundo faltar-lhe-á para sempre, uma compreensão de outras áreas do conhecimento humano, a qual compreensão (ou sensibilidade para, ou sintonia com) o tornariam menos apto a deixar-se passivamente arrastar para aventuras cuja vocação é o apocalipse. Amputado, um, de um lado essencial do conhecer, o outro, de outro não menos essencial do mesmo conhecer, o diálogo não se escorva, o motor do mútuo entendimento não arranca — e o fosso tende a alargar-se.

Ora, esta discussão é particularmente importante pois que neste momento se fala já de três culturas e qualquer dia serão n. Como se a cultura não fosse uma só, integral, de vocação transversal e profundamente humanística, isto é, sem perder de vista a posição do homem no mundo e no tempo.

Não há, pois, contradição entre falar de cultura e falar de ciência. E por falar de ciência há pelo menos duas vezes em que E.L. aborda esta questão da ciência. Numa delas (p.74.), diz: Na verdadeira ciência não há lugar para o conceito de verdade: há hipóteses que vão morrendo à medida que são substituídas por outras menos incompetentes. E umas linhas adiante, acrescenta: Em suma, a ciência avança tanto mais depressa quanto mais depressa uma hipótese se revelar pouco satisfatória. Fazer ciência é desejar que as sucessivas hipóteses durem o menos possível; fazer religião é desejar que a verdade seja eterna.

Ainda, falando de ciência mas agora nas suas relações com a poesia, diz citando Durrell de passagem (p.133) esta coisa límpida e pertinentíssima: Se, como queria Durrell, “a ciência é a poesia do intelecto e a poesia é a ciência dos afectos do coração” seria, a todos os títulos, recomendável que ciência e poesia melhor se conhecessem e coabitassem, para que o coração se aproprie um pouco mais da ciência e a ciência um pouco mais do coração.

São muitos os temas abordados neste livro, uns de modo directo, outros en passant, e permitam-me que refira o que este crítico diz de alguns outros que se auto-denominam críticos (p.22): [...] o crítico polissémico prefere escrever de costas voltadas para o livro. O livro de que fala é frequentemente de uma franca inoportunidade: está ali para empatar. O crítico polissémico pode perfeitamente passar sem ele. Num limite supremo de acrobacia, esconde o livro ou chega mesmo a não querer ver-lhe o formato. O crítico teoricamente estimulado fala, de preferência, das obras que nunca viu nem cheirou. E, logo a seguir, cáustico como só E.L. sabe ser, atira: Mas há um perigo que espreita no horizonte: o dissidente eventual, o pateta que caiu na asneira de “ir ler o livro”, o chato intrometido, o “rústico”  [...]

Ainda a propósito de críticos não resisto à tentação de citar da p.94: Há críticos e colunistas de aviário, detentores de um poder colossalmente injustificado, que passeiam a sua incultura, a sua imaturidade e a sua leviandade, por áleas linguísticas em que o atrevido disputa primazia ao disparate pimpão. Se, como queria Horácio, o segredo de todo o bom escrever reside num juízo são, o bom escrever parece-nos, por vezes, a mercadoria menos bem distribuída, num certo mundo que, com frequência, visitamos. Dizia Goethe, nas suas pluralmente ricas conversas com Eckermann, que “se uma pessoa deseja escrever com estilo claro, será bom que tenha, antes de mais nada, pensamentos claro”  A receita (diz-nos agora E.L.), digamo-lo desde já é simples mas dispendiosa: há que ter, primeiro, como sugere o autor do Fausto, pensamentos e, ainda por cima, claros. Creio que estas citações nos dão o poder corrosivo que E.L. utiliza quando, com toda a justiça, lhe chega a mostarda ao nariz. Porque é bom que a gente se irrite de vez em quando, não por via da ignorância mas da desfaçatez com que se quer fazer passar gato por lebre.

Ainda fazendo jus ao óbvio, aquilo que é preciso dizer às pessoas porque o não entenderam ou não quiseram entender, não quero deixar de relembrar uma velha discussão (acho que ainda não morreu de todo) sobre a forma e o conteúdo ou a mensagem. Leia-se, a este respeito, o artigo transparente intitulado A arte é arte porque não é natureza. Aí, a p. 109, se pode ler: Não é o optimismo nem as boas intenções da mensagem que tornam vigorosa e estimulante a obre de arte. Sempre achei pouco ou nada deprimente o pessimismo desse supremo escritor que se chamava Schopenhauer: a energia e o esplendor da escrita redimiam o horror anunciado e elevavam-nos a euforias inesquecíveis. Os infernos de Reinaldo Ferreira exaltam-me, do mesmo modo que me deprimem os amanhãs que cantam de tanto poeta medíocre. A mensagem de Craveirinha chegava até nós, perfurando-nos, graças ao vigor e à infinita malícia da sua escrita. Ficávamos um pouco sem saber se era pela mensagem política se pela incontida sensualidade da forma que o poeta nos atingia. Só a consciência do artista nos pode trazer, com eficácia, a consciência da nossa patética condição humana.

Já na página  anterior se podia ler, de resto, uma alusão particularmente pertinente: Porque se não deve nunca confundir a arte – e o processo de produzi-la – com a natureza que lhe serve de referente.

 

Da segunda parte de mais esta obra, permito-me chamar a atenção para o desvelo, em muitos casos a ternura do Eugénio, o esforço com que nos belisca para que não esqueçamos um punhado de bons escritores, uns felizmente ainda vivos e outros que já deixaram a nossa companhia, quais sejam Domingos Monteiro, Glória de Sant’Anna, Vergílio Ferreira, David Mourão-Ferreira, Ângelo de Sousa, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Albano Nogueira, Ernesto Guerra da Cal, Reinaldo Ferreira, Onésimo Teotónio de Almeida, esse impagável Onésimo que já esteve aqui na nossa Universidade.

E ainda Fernando Assis Pacheco, que peço licença para destacar. Fui seu amigo desde os bancos do Liceu e tinha por ele grande amizade e admiração. O E. L. tem sobre o Fernando duas páginas de antologia. Se houvesse uma antologia de textos sobre a amizade eu votaria pela inclusão deste texto. É um texto muito bonito mas ao mesmo tempo tão discreto como se o autor receasse diminuir essa amizade pela contingência das palavras. É um texto comovedor, ou assim o recebi eu como tal. E explica-se o nosso autor: É que o autor da Musa Irregular era isto mesmo, um amigo intransitivo, isto é, não havia complemento directo, na sua amizade, não era amigo com fim nenhum, não havia objectivo à vista, não dava: dava-se, não pedia nada em troca, nem pensava nisso, era amigo porque sim, brotava dele naturalmente.

Aproveito, naturalmente, para referir duas incursões pelo domínio da criação poética, uma a propósito de F. Assis Pacheco ou de como a amizade pode fazer poetas (p. 193): Permites, Fernando, que te envie daqui uma definição [de poeta] ? Aí vai: poeta é o que torna os outros poetas. Meia hora contigo e ficávamos a pensar que a Musa nos tinha também tocado e outra a propósito de Eugénio de Andrade e citando-o (p. 212): [o poeta] é um homem de bruscas iluminações, não tem fórmulas para chegar à poesia; ninguém lhe pode apontar caminhos; chega-se lá como cegos, tacteando [...] mas acrescenta E. L.: Mas é, dizemos nós agora, um tactear de pontaria infalível: no final do percurso ziguezagueante está o vocábulo justo, iluminado e único.

Mas outros escritores mereceram a atenção de Eugénio: José David Rosa, Herman Charles Bosman e, obviamente o Régio. O Régio é uma paixão tão grande, digo eu, como a Senhora de Rênal que nos aparece regularmente em todos os livros, quer na Crónica dos Anos da Peste, quer em O Objecto Celebrado.

Uma terceira parte da obra chama-se, et pour cause, Desacordos. Aí o autor expressa de forma clara os seus pontos de vista em face da problemática dos Estudos Africanos. Com este pretexto, diz-nos a p. 228 e citando Robert Lynd a propósito de Coleridge [que] Na sua forma mais elevada, [a crítica literária] não é a tentativa de um teórico no sentido de impor leis de ferro aos escritores: é uma tentativa de capturar o segredo daquela “luz interior” e daqueles que a possuem – e de o comunicar aos outros. Ainda segundo Lynd, termina E. L.: [a crítica literária] não ensina legalidades mas sim o amor da literatura.

Não falta nesta parte uma discordância (em duas cartas), respeitosa mas firmemente discordante com um dos grandes estudiosos da literatura africana de língua portuguesa: Manuel Ferreira e uma outra com António Barahona (também em duas cartas); esta última, tristíssima e abonando pouco a favor da inteligência do A. Barahona e onde o nosso autor defende, veementemente, tolerância para com o outro.

Azedo, e saudavelmente azedo, é um artigo onde E. L.  se escandaliza com uma tradução de uma vaga antologia de poemas da África lusófona assinada por um tal Don Burness. Para isso lhe servem os seus conhecimentos da língua inglesa mas também os seus conhecimentos de física (força, energia e potência) como o leitor descobrirá e disso tirará proveito (lúdico, quanto mais não seja).

*

A última parte é constituída por duas entrevistas, um artigo e ainda uma resposta à pergunta Quais os melhores 10 romances que leu... De uma das entrevistas e à pergunta Qual a sua opinião sobre a literatura portuguesa no momento? Como a classifica e caracteriza? Retiro estas linhas (p. 290): Alguns dos nossos mais celebrados e mesmo premiados romances são, quanto a mim, de leitura pouco palatável. Não acredito que a literatura tenha sido inventada para nos torturar a alma. Gosto de ser seduzido e a melhor literatura do mundo tem-me sistematicamente seduzido. Creio que o seu objectivo primeiro foi sempre entreter. É um objectivo nobre, embora a nova classe pareça não estar de acordo. Entre nós, como regra, postula-se que o sofrimento do leitor é a medida da qualidade da obra que lhe é dada a ler. Não é verdade. Pode ser que o sofrimento redima o cristão e lhe garanta o céu. Acho, porém, que o sofrimento do leitor precipita o autor no inferno. É mesmo uma das poucas certezas que tenho.

Não quero terminar sem deixar um convite para a leitura de Antigamente, um quarto (p. 281), uma incursão ao tempo da adolescência onde se mistura um quarto com os primeiros livros, com as primeiras leituras. Simplesmente, delicioso.

Com toda esta arenga, eu só quis sensibilizá-los para a leitura desta obra magnífica e convencê-los, através deste aperitivo, de que se a fizerem ficarão mais ricos.

Agora, sim vou terminar, fazendo minhas as palavras de Eugénio Lisboa que no final da p. 48 diz: Os livros não me deram tudo na vida, mas deram-me uma parte importante desse tudo.

Luís Serrano, U. A. - Março 2000

 


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