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Diversos


Os poetas e a natureza

(Conferência realizada no Encontro de Poesia de Tondela,
em Setembro de 1996)

Luís Serrano

 

Os poetas estabeleceram desde sempre um diálogo com a natureza, diálogo de adesão, de recusa, de contemplação, de confidência, diálogo que se pode seguir ao longo da história marcado quer por observações de carácter ideológico, quer por um léxico específico.

Iniciemos a nossa viagem pela idade média por um poeta espanhol chamado Gonzalo de Berceo.

 

1 - GONZALO DE BERCEO (1196?-1265?)

Viveu Berceo ao tempo em que era rei de Portugal D. Sancho I e posteriormente D. Afonso II. Era cerca de 25 anos mais velho que Alfonso X, o Sábio e teria cerca de 16 anos quando o exército almóhada foi derrotado em Navas de Tolosa (1212). Foi ainda contemporâneo da queda de Córdova nas mãos dos cristãos (1236), Córdova onde existia a famosa Biblioteca de Alhaken II que continha  aproximadamente 200.000 volumes. Teria talvez 13 anos quando se iniciou a cruzada contra os albigenses (1209) e 17 anos quando os cruzados de Simon de Monfort venceram Pedro II de Aragão em Muret (1213). Nasceu na aldeia de Verceo (Logroño, na Rioja), fez a sua educação em San Millán de Suso, e faleceu provavelmente em 1265 (ano do nascimento de Dante).

Entre as suas obras, tem lugar de destaque Milagros de Nuestra Señora (1990) a cuja edição pela Espasa-Calpe com introdução e notas de Juan Manuel Cacho Blecua recorremos.

Na sua poesia, a natureza aparece como prado adornado de flores, árvores de fruto e fontes e amenizado pelo canto dos pássaros como dele diz Cacho Blecua, prado em que ele como romeiro encontraria repouso.

Esta natureza assume-se com uma carga religiosa evidente, pois constitui a metáfora do jardim do paraíso. É o locus amoenus cujos traços essenciais são as árvores, os prados, fontes ou ribeiros, aos quais se acrescentará o canto das aves, umas quantas flores, o sopro da brisa.

            Diz Berceo (Introducción, estrofe 14):

 

                                    Semeja esti prado   igual de Paraíso,
                        
            en qui Dios tan gran graçia,   tan gran bendición miso;
                        
            el que crió tal cosa   maestro fue anviso:
                        
            omne que hi morasse   nunca perdrié el viso.

Por toda a idade média passam, lado a lado, duas vertentes (a religiosa e a profana); a natureza aparece-nos, de facto, umas vezes carregada de símbolos religiosos (ver estrofes 19, 20, 21, 23, 25 e 26), como os que se apresentam a seguir e em que o significado figura na coluna da direita

elementos presentes significado
o prado (sempre verde)
as flores
as 4 fontes
as árvores de fruto
a sombra

cantos das aves

 

a Virgem
os nomes de Maria
os evangelistas
os milagres marianos
o amparo
(que Maria concede aos seus devotos
os que enalteciam o nome de Maria

outras vezes como cenário de encontros amorosos e fonte de vida.

Assim o locus amoenus paradisíaco alternará com o arquétipo do jardim de Vénus embora não raro se confundam os dois em ambiguidade perfeita.

Em Berceo a intenção de ir ao fundo das questões (e num homem deste tempo isso significa ter do mundo uma perspectiva cristã, caldeada por Aristóteles no domínio do pensamento e por Ptolomeu na sua cosmovisão) está bem patente em Introducción, estrofe 16:

 

                                    Señores e amigos,   lo que dicho avemos
                        
            palabra es oscura,   esponerla queremos;

                        
            tolgamos la corteza,   al meollo entremos,
                        
            prendamos lo de dentro,   lo de fuera desemos.

 

Estamos num mundo em que as canções de gesta estão ainda próximas - a Chanson de Rolland é de cerca de 1100 (1080-1090) e a Terra constitui o centro do Universo com o Sol e as outras estrelas girando em volta dela.

Podemos dizer que por este tempo a natureza não era mais do que um prolongamento de Deus.

Ao deixar a idade média vale a pena, pensamos nós, transcrever uma passagem de LENOBLE (História da Ideia de Natureza,1990, p. 204):

[...] O mundo é menos rígido e, não obstante, muito cheio.  Uma experiência interessante consiste em projectar, numa tela, miniaturas da Idade Média. Curiosamente, fazem surgir o carácter particular da representação da vida corrente. A vida e o mundo são espantosamente "cheios" ou "povoados". [...] a ausência de perspectiva indica que a percepção visual não é ainda abstracta: vê-se tudo porque tudo interessa, fica-se no espírito com cada pormenor da cena. Além disso, pretende-se incluir tudo, tudo o que se refere ao tema. Esta impressão é independente do estilo da miniatura.[...] nas miniaturas medievais, o pormenor é amado por ele, não é concebido como pormenor, isto é, parte de um conjunto, mas como um todo que tem interesse. Desta forma, os campos são cheios, as cidades buliçosas, cheias de animais e de plantas visando cada uma ser o centro "desta arte" da obra; efervescentes de homens, de mulheres e de crianças, parecendo cada um ser um todo independente do resto e vivendo a sua própria vida por ele mesmo. E o mundo sobrenatural também lá se encontra: os anjos, os demónios, os santos do Paraíso e, finalmente, o mundo fantástico que herdou das primeiras idades: os unicórnios, os dragões, os basiliscos, tão reais, tão bem "vistos" como o resto.

 

OS POETAS DO RENASCIMENTO

 

Muita da poesia deste período foi veiculada através da égloga.

Como acentua Bernardes (1988: 27): A novela de cavalaria tinha praticamente esgotado as suas possibilidades estéticas e ideológicas e a poesia bucólica assume-se como virtual condensadora de uma nova visão do mundo. Já não uma visão do mundo heróico-conservadora, mas uma mundividência humanista, em que o Homem aparece como motivo e tema axial da prática estética.

Não esqueçamos que no plano científico, o mundo está a mudar: Copérnico (1473-1543) propõe um novo modelo sobre as revoluções dos corpos celestes - o modelo heliocêntrico - que será tornado público no mesmo ano da sua morte (1543).

Leonardo da Vinci (1452-1519) descobrirá as leis da perspectiva, deixará sob a forma de desenhos testemunhos do corpo humano que mantiveram a sua actualidade até ao fim do séc. XIX, foi capaz de tirar algumas conclusões de cariz geológico a partir da observação de fósseis marinhos; (só o séc. XIX viria a reconhecer como fósseis o que o séc. XVIII ainda considerava jogos da natureza).

O nosso Pedro Nunes nasce em 1502, grande matemático, inventor do nónio. Todos estes homens contribuíram decisivamente para fazer o Renascimento.

Bernardim e Sá de Miranda fazem a ligação entre a Idade Média e o Renascimento. Camões, Diogo Bernardes, António Ferreira e Frei Agostinho da Cruz situam-se já no que veio a chamar-se de Maneirismo.

De todos eles, a perspectiva mais clássica, mais racionalizante é a de António Ferreira embora não se possa recusar esta segunda característica a Sá de Miranda.

São como já se disse as églogas os poemas que fornecem mais informação sobre o relacionamento dos poetas com a natureza. Note-se a este título os próprios nomes dos pastores carregados de significado: Salício (salgueiro chorão = Salix), Nemoroso (bosque sombrio = Nemus), Agrário, Serrano, Umbrano, Frondélio, etc.

Também o vocabulário pastoril é típico: abelhas, água, árvores (salgueiros, freixos), erva,  flores, gado (cabras, ovelhas), pastores, prados, rio, sombras, vento, etc.

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