Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
Departamento de Línguas Românicas e Clássicas

PORTUGUÊS

José Gil, Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, pp. 31-42.


O SENSACIONISMO

A teoria da abstracção das sensações constitui uma das ideias centrais da estética de Pessoa. O modo como ele pensa essa situação abstracta vai permitir-lhe elaborar uma doutrina coerente das sensa­ções e do trabalho poético: é preciso «intelectualizar» as sensações - eis a operação fundamental do percurso que conduz ao estado mais grosseiro, menos elaborado, das sensações à sua expressão na língua literária. A abstracção actua já no nível mais baixo: tornar «carnal» a visão, tocar o objecto exterior com a vista e apropriar-se dele, integrando-o no espaço «interior» do corpo, como um objecto tocado ou cheirado, é trabalhar o terreno sensorial mais primitivo de modo a prepará-lo para um tratamento literário. Não no sentido de este se tornar propício à metaforização  aspecto secundário, já que a metáfora aparece sempre em Pessoa apenas como efeito de processos mais essenciais; mas na medida em que se torna necessário criar as melhores condições para deixar correr o fluxo da expressão (fluxo de palavras, de versos); e que, entre tais condições, se conta a construção de um espaço do corpo no qual a consciência trabalha as sensações desde o momento em que estas nascem, associando-as, confun­dindo-as com a escrita. Tornar abstractas, desde que surgem, as sensações (obtendo eventualmente transferências modais-metáforas) é «tornar literária a receptividade dos sentidos»...

De onde vem a dimensão abstracta da sensação? Da consciência. Nos textos teóricos sobre o «sensacionismo», Fernando Pessoa reúne nalgumas fórmulas o essencial da sua doutrina estética da consciência.

(...) Imaginemos um por-do-sol. Posso percepcioná-lo sem experimentar a menor emoção estética. Para que o contrário aconteça, é preciso que eu o veja, que o perspective - em resumo, que dele tome consciência - de acordo com uma certa direcção. É preciso que a consciência dessa sensação a oriente, segundo um modo específico, para outras imagens, outras sensações. Por exemplo, essa consciência abrirá a sensação para imagens de paz e de infância - e a saudade que suscita em mim colorir-se-á de uma tonalidade emocional já de ordem artística. Em que consiste esse modo específico que a emoção tem, de se abrir para outras emoções? Esse modo é uma forma, a forma da emoção. É esta que fornece a lei da associação com outros conteú­dos emocionais e outras imagens - lei-forma que desenha toda uma configuração que ultrapassa a sensação, que atrai outras sensações, que se prolonga noutras unidades estéticas-psíquicas, seguindo sempre o mesmo fio. Este fio, ou esta forma, é necessariamente abs­tracto, uma vez que, apesar de sensível e próprio da emoção, não deixa de constituir um elemento formal comum a uma multiplicidade de sensações. «Um poente é um fenómeno intelectual», afirma Bernardo Soares. É intelectual, porque é abstracto.

Apreenderemos melhor a noção de forma abstracta se a ligarmos à maneira como o fragmento do Livro do Desassossego, atrás citado, descreve o contacto da sensação com a consciência: emergindo até a «tocar», a sensação «esculpe» a sua «proximidade do objecto (...) de encontro à consciência». O que significa esta escultura? Quem é aqui o escultor e o esculpido?

Note-se que Pessoa aprecia especialmente o verbo «esculpir» para designar o processo de elaboração da forma artística. Este verbo interessa-nos particularmente pela sua referência ao espaço: nem a sensação nem a consciência são esculpidas; mas sim uma relação de «proximidade». Ora, o que é que existe entre o objecto e a sensação? Um espaço, uma distância maior ou menor. Distância (entre a representação do objecto e a sua ressonância no sujeito, a emoção) que define muito precisamente o espaço da sensação: ao tornar-se «próximo», «interior» (como o é um objecto tocado com a pele, enquanto o espaço táctil toma a forma do objecto), esse espaço transmuta-se em espaço do corpo. Tem uma forma: a da proximidade relativamente ao objecto, que varia segundo as modulações da emoção. A forma esculpida de encontro à consciência dá a forma do espaço do corpo.

Para que conteúdos psíquicos se abre a sensação, quando esculpe a forma do seu espaço de encontro à consciência? Para os ele­mentos que compõem a sensação, envolvendo por assim dizer o seu núcleo, que comporta uma imagem do objecto exterior e a emoção subjectiva correlativa.

O nível próprio da arte é atingido com a «sensação do abstracto» ou «sensação abstracta». Procurando delimitar melhor a natureza dessa abstracção, Fernando Pessoa vai defini-la: 1. pela acção da consciência sobre a consciência da sensação; e 2. pelo modo de realidade que ela produz.

1. A emoção artística só se forma tornando-se expressiva. É o poder de expressão, que lhe vem da linguagem, que a distingue da emoção possuindo já um «cunho» artístico, mas ainda sem expressivi­dade.

O que é uma emoção expressiva? A teoria da expressão poética de Pessoa exigiria por si só um estudo completo: articula-se com a sinceridade do poeta. Basta-nos saber por agora que a emoção só se torna expressiva quando exprime outros conteúdos, outros sentidos, para além dos da emoção «puramente tal». Fernando Pessoa separa muito claramente a emoção (ou a sensação) artística da sensação espontaneamente vivida, vivida «na vida», «verdadeiramente sentida. A emoção artística caracteriza-se por um traço especifico: mente. O poeta é fundamentalmente um mentiroso. Mas mente para melhor exprimir a vida; porque a vida está presa à verdade, as emoções naturais dizem apenas as verdadeiras perturbações da alma, enquanto a emoção artística exprime, graças às palavras, essas mesmas perturbações e outras ainda, e mais profundamente; depois, abre-se para conteúdos emocionais sem relação aparente com a sensação primitiva. Eu, Ber­nardo Soares, de repente cansado de fazer contas, experimento um estranho mal-estar, devido ao tédio e à monotonia do meu trabalho; procurando bem, encontro a melhor maneira de exprimir esse mal-estar num poema, criando o sentimento da saudade da infância. Ao escrever o poema, chorarei realmente sobre a minha infância perdida - sentimento que, no fundo, exprimirá o mal-estar que em mim suscita a contabilidade comercial. Ao acrescentar, por acção da linguagem, um elemento estranho à emoção original, «intelectualiza-se» esta última, tornando-a abstracta.

Poderei, além disso, comunicar a outrem este sentimento, enquanto o meu tédio considerado em si próprio é inexprimível: a emoção artística, porque comunicável, é universal.

Como é que a emoção artística adquire tais características? Graças aos versos, quer dizer à frase ritmada que exprime o ritmo ou a forma da emoção; forma abstracta (o que explica a universalidade do sentimento exprimido), desenhando a linha própria de expressão ou de fluxo expressivo do poema e unindo o conjunto dos versos numa única entidade.

Tudo o que atrás se disse sobre a forma abstracta, no segundo nível da transformação da sensação (nível da consciência da sensação), aplica-se ao terceiro nível, o da consciência da consciência da sensação.

(...) Quando sonho com imagens, diz Bernardo Soares, vejo palavras e frases.

2. Se a arte se situa no plano da abstracção engendrado pela duplicação da consciência, é porque cria ao mesmo tempo uma realidade nova.

Vimos que a sensação comporta dois elementos simétricos, «a sensação do universo exterior» e «o fenómeno abstracto da consciência». Estes elementos definem duas direcções ou dimensões da sensação: de um lado, o objecto e as sensações objectivas, do outro, o estado subjectivo e as associações subjectivas ligadas a esse objecto. Em suma, a face exterior e a face interior da sensação. Entre estes dois pólos, e a partir deles, a arte deve produzir um outro tipo de sensações, as «sensações do abstracto».

«O sensacionismo afirma, primeiro, o princípio da primordialidade da sensação - [a saber] que a sensação é a única realidade para nós.»

Partindo daí, o sensacionismo nota as duas espécies de sensações que podemos ter - as sensações aparentemente vindas do exterior, e as sensações aparentemente vindas do interior. E constata que há uma terceira ordem de sensações resultantes do trabalho mental - as «sensações do abstracto». Pessoa classifica as sensações de acordo com a sua origem «aparente»: de facto, cada sensação contém sensações «vindas aparentemente do exterior» e outras «vindas aparentemente do interior», como mostra o cubo da sensação. O outro tipo de sensação, que devia implicar uma origem diferente, resulta de uma construção: assim, esta «origem» é um fim, o coroar de um «trabalho mental».

O texto continua como se segue: «Perguntando qual o fim da arte, o sensacionismo constata que ele não pode ser a organização das sensações vindas do exterior, porque esse é o fim da ciência; nem a organização das sensações vindas do interior, porque esse é o fim da filosofia; mas sim, portanto, a organização das sensações do abstracto. A arte é uma tentativa de criar uma realidade inteira­mente diferente daquela que as sensações aparentemente do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem». E, porque a sensação contém uma sensação do universo e da coisa exteriores, a arte unirá a «Realidade» à «Emoção» que provém dos «sentimentos ex­clusivamente interiores» (sentimentos que comovem «sem provocar à acção, os sentimentos de sonhos (...) que são os sentimentos interiores no seu mais puro estado»). A partir da Realidade e da Emoção, a arte cria a Abstracção: «A arte tem por assunto (...) a abstracção.»

Com a abstracção, a arte atinge o seu fim: «a concretização abstracta da emoção (a concretização emotiva da abstracção)». Encontramos de novo o duplo movimento de baixo para cima - da sensação à abstracção - e de cima para baixo - da ideia à emoção. Como definir este produto final da arte, esta abstracção capaz de suscitar a mais rica e a mais forte das emoções? «Por concretização abstracta da emoção entendo que a emoção, para ter relevo, tem de ser dada como realidade, mas não realidade concreta, mas realidade abstracta.» Se referindo-nos à ideia da Realidade em Fernando Pessoa (que exigiria uma longa exegese) aceitarmos que ela contém a ideia da exterioridade, a «realidade abstracta» que a arte que cria deve possuir, ao mesmo tempo, a interioridade e a exterioridade, a exterioridade da realidade e a interioridade da emoção. Por outro lado, é preciso que a emoção ganhe um «relevo». Esta noção que já atrás encontrámos liga-se à ideia de marca, de inscrição da sensação (ou do seu espaço) na consciência. Traduz ao mesmo tempo a necessidade de dar forma à emoção artística e a de nela concentrar as intensidades mais fortes. Quanto mais abstracta é a forma, mais a abstracção é comovente, sensível; quanto mais sensível é a forma, mais a emoção é intensa.

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