A ÚLTIMA INOCÊNCIA
Em uma de suas
tantas passagens agudas, Jorge Luís Borges lamenta o facto de
Francisco de Quevedo não ser lembrado ao lado de nomes como
Shakespeare, Dante, Goethe, Cervantes, Joyce e Flaubert. Segundo o
escritor, isso se dá porque o grande poeta espanhol não escreveu uma
obra monumental em um determinado género, o que lhe facultaria um
atestado de grandeza de maneira mais previsível. Preferiu dedicar-se
à poesia sacra, burlesca, satírica, lírica e dramática, à
preceptiva, à ficção e a uma série de outras variantes das letras, a
escrever um Hamlet, uma Divina Comédia, um Fausto, um Quixote, um
Ulysses ou um Bouvard e Pécuchet. Não concentrou sua energia na
criação de um monomito literário. Quis a diversidade ainda que à
custa da unidade — a que não aspirava. Fez sua a aposta de Pascal. E
pode-se bem dizer que ao apostar tudo não perdeu absolutamente nada.
Em termos
extremos, porque navegando em meio a várias linguagens, artes e
géneros, a trajectória de Vasco Branco é tão diversa quanto
exemplar. Não acredito que para se ter uma compreensão de sua obra
devam-se criar pontes entre as diversas artes às quais ele se
dedica, e dentre elas podemos computar a literatura (conto, romance,
crónica e novela), a cerâmica, a pintura e o cinema. Cada arte e,
dentro dela, cada técnica e cada género, pedem sempre resoluções
específicas. Poder-se-ia dizer que exigem um artista específico
dentro da gama de artistas que habitam um só artista. E quanto maior
ele for tanto maior será a multiplicidade de suas vozes.
Isso faz do
arremedo holístico não só algo desnecessário como inútil. Por outro
lado, no caso do trabalho plástico de Vasco Branco, incluídas aqui a
cerâmica e a pintura, talvez também não seja conveniente pensar em
termos de fases. Porque muitos motivos e técnicas reaparecem em
produções ulteriores e se embaralham no tempo. Assim, prefiro
distribuí-Ia em matrizes de criação. Dentre elas, há duas que eu
considero as mais impressionantes de sua pintura: o uso da cor e a
técnica do pastiche. Da paródia, se quisermos.
Embora sua
atitude em relação à cor o aproxime, em algumas telas, da tradição
fauvista, creio que ele dê a certos processos coloristas uma
autonomia maior do que esta tradição lhes conferiu. Penso em telas
magníficas como A Ceia e Natureza Morta com Peixe, respectivamente
de 1960 e de 1961, em têmpera. O uso de cores berrantes e de
dificílimo controlo, uso que seria evitado por qualquer pintor menos
ousado ou menos talentoso, em Vasco Branco resulta numa celebração
do puro prazer das formas e de seu manuseio.
O corpo, o seio,
a taça, as mãos, a gravata, o cabelo, o rosto, tudo enfim se dilui
na unidade ritual da ceia, transformada em processo vital captado
pela massa indiferenciada de elementos. Estes, absorvidos em uma
alegria jocosa, não são representados, mas encarnados nos fragmentos
e manchas que se formam na retina. Também o peixe, o jarro, as
folhas encontram seu equilíbrio exacto, na dissimetria calculada
entre os espaços em branco que o quadro sustenta, enquanto suporte,
como silêncio previsto, como paz possível, como fenda pela qual o
mundo respira. Este tipo curioso de composição sintética retornará
na tela A Família, de 1992.
Ao contrário do
senso comum, ou dos equívocos de críticos como Herbert Read e
Clement Greenberg a arte abstracta não recusa o real. Celebra-o e
sopra-o desde seu interior. E é assim que podemos ver outra faceta
da cor nas suas séries Lagunas I e II e Cidades I e lI, de 1989, e
na tela Sol sobre as Salinas, de 1991. Aqui retornam dois temas
caros ao artista. Os braços de mar, já captados em Ria de Vigo,
aguarela de 1948, e as salinas de Aveiro, dentro da qual ele
mergulhara em 1961 para filmar o Espelho da Cidade, que lhe valeu o
Grande Prémio de Cannes, emergem na pátina verde e ocre da tela
corroída pela cor (pelo sal). O mimetismo não se estabelece como
representação externa (a laguna) a ser capturada nas redes da ficção
(a pintura). É sim incorporado à própria factura da composição em
acrílico, que ao desmanchar os contornos do objecto accionado na
gramatura das tintas, mergulha na laguna e pesca sua própria
essência. Superfície salina da tela, pele pintada da laguna. Espelho
do céu e da cidade, tela de água que nos espelha.
Não a
contiguidade do objecto representado em relação ao instrumento que o
capta, mas a pregnância, a inscrição lacustre e residual da laguna
na superfície do quadro. O mesmo processo se dá com a cidade:
desfeita pela rarefacção do ar, fundo que corrói os elementos mais
próximos da cena, a cidade se transforma em blocos pequenos,
diáfanos, e é frisada pelo ar que a atravessa. Água e ar, símiles
devido à sua natureza fluida, inscrevem sua estória (a estória da
cidade e do homem) na dimensão grâmica do que foi pintado. Ambos,
homem e arte, partícipes de um mesmo devir, imersos na história e
cientes disso.
Porém, se por um
lado a pintura de Vasco Branco é uma homenagem à aderência, ao mundo
poroso e permeável, por outro sustenta uma postura analítica, que
poderia ser a sua crítica ou seu negativo, caso não se resolvesse
por meio de um ingrediente essencial: a graça. Assim podemos ler
duas telas belíssimas: A Propósito dos Painéis de S. Vicente, de
1980, e As Meninas, de 1988. O seu encanto devém em parte da
contrafacção que operam: o pintor não lida com a natureza e não
colhe temas apenas na realidade. Mas também (e sobretudo) no vasto
manancial de espécimes legado pela própria arte. Imita não apenas
objectos, dações e homens, mas acima de tudo modelos, como ratifica
Aristóteles.
As releituras de
Vasco Branco, sejam no tom burlesco da sua imitação desbragada de
Velásquez, sejam na análise personalíssima de painéis sacros, ao se
assumirem programaticamente como fantasmas da obra em relevo, anulam
a hipótese da influência e capturam as obras a partir de seu núcleo
de irradiação e sentido. Duplo daquilo que ama, transparente no amor
que lança a outra obra, o olhar do pintor restitui uma nova
legibilidade à criação alheia. Assim, tal como o fez o próprio
Velásquez, transforma a leitura em um tipo especial de escrita, o
olhar em uma forma rara de pintura. Mais etérea, mais escassa.
Ao lê-la, a
recria, a inaugura, como ela jamais pôde ser imaginada ou mesmo
existir. Entre as cores e as coisas, a ecfrase entra em cena, assume
o centro desse palco de espelhos. Todos eles têm a marca indelével
de uma assinatura e têm a autoria de uma só mão: Vic. Mas, para
citar Lezama Lima, compartilham de uma era imaginária composta de
diversos tempos. Única pátria da arte.
Em paralelo,
Vasco Branco desenvolve outro trabalho que, a meu ver, é onde ele dá
uma contribuição decisiva: a cerâmica. E nessa arte é oportuno
ressaltar um ponto essencial: a sua concepção de cerâmica como
relevo. Essa concepção é muito importante. Funde a dimensão plana da
placa fundida ao princípio da escultura. Desse modo, a cerâmica só
cumpre o papel que lhe cabe por mérito quando incorpora em si a
escultura e explora as saliências, as reentrâncias, o côncavo.
Já do ponto de
vista estrutural e imaginário, seu trabalho cerâmico deita raízes em
um horizonte mítico, se finca no pasto inédito das coisas, para
lembrar um grande poeta brasileiro. Essa estrutura mítica se dá a
ver na progressiva simplificação das formas: uma cabeça que é um
rectângulo, selos que são dois pontos, um peixe que são dois cones
cruzados. Depois, por anamorfose, um olho pode ser um peixe, um
pássaro uma espinha, uma concha uma barriga e a rede pode ser de
água, como vemos no excelente Painel Cerâmico do Hospital Distrital
de Aveiro.
No campo mítico,
reina a interpenetração dos elementos, a completa reversibilidade de
um no outro, já que não estão sob a vigilância da lógica, mas sob o
efeito da magia, sob o trabalho no turno da analogia. Da mesma sorte
de simplificações nascem as variantes geométricas. Elas podem ser
notadas na distribuição colorida dos vitrais do Seminário de Aveiro.
Mas também é essa geometria sonhada, leve e livre, que se inscreve
nas paredes do Viaduto de Esgueira, na mesma cidade. As reduções
elementares a princípios vegetais, embora todos compostos em pedra,
trazem alguns traços marcantes: a flor, o triângulo, o círculo, a
elipse.
Essa gramática de
cores, volumes, intensidades e linhas encontra um de seus ápices no
Painel Cerâmico do Almeida Hospital, na cidade de Oíta, no Japão.
Nele Vasco Branco parece ter conseguido a síntese de todos os
matizes estruturantes de sua arte em uma explosão de cores e formas.
Recuperando traços da bela tradição da azulejaria portuguesa,
mescla-os ao tema das navegações e das índias Orientais, e funde a
fluidez dos elementos marítimos aos riscos inumeráveis das linhas e
mastros cortados contra o horizonte.
Para além da
pobre catalogação que a história da arte possa nos dar, sua obra
ocupa um lugar excêntrico, talvez o melhor lugar que existe. Não o
exercício consciente de um homem em busca da criação de uma grande
obra, mas o trabalho do espírito que, em cada obra, cumpre-se
plenamente em sua energia inesgotável. Dono de uma curiosidade
praticamente inexaurível, ele nos instila a desconfiarmos de todos
os limites. Com uma inocência que parece querer captar o mundo com
todas as mãos e com todos os olhos possíveis, Vasco Branco no fundo
nos lega algo mais importante e mais subtil do que uma obra-prima.
Ele nos dá um mapa da própria liberdade.
Rodrigo
Petronio
Rodrigo
Petronio (Brasil). É escritor e pesquisador. Autor de
Transversal do Tempo (ensaios), História Natural (poesia)
e Assinatura do Sol, livro de poemas publicado em Portugal
pela editora Gémeos R. |