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Encontros - Júlio Resende e Vasco Branco



TRAVESSA DAS OLARIAS

 

Francisco Varela confessa-nos que, nestes tempos conturbados, gostaria que sentíssemos a solicitude autêntica como um encantamento. E Emmanuel Lévinas coloca em relevo a aventura de ser, que desvela uma vocação do outro e, consequentemente, pressupõe uma ruptura com a indiferença. Em muitas pessoas esta atitude é espontânea, uma inclinação que as coloca, desde logo, na perspectiva da alteridade. Creio que o texto que me foi solicitado, como testemunho de uma amizade que partilha os mesmos suportes, só tem sentido se puder ilustrar como Júlio Resende e Vasco Branco sempre passaram através das fronteiras do “eu” para se abrirem ao horizonte da alteridade.

Este encontro, que se foi aprofundando na Travessa das Olarias, tem particularmente a ver com o grés que, de alguma forma, se diz a si próprio ao dizer a terra. Assim, este suporte de que falo não é só o barro, no sentido literal, mas também no sentido de génese, começo sempre a começar. Refiro-­me ao encontro de dois artistas que em tudo o que dizem, fazem e vivem, acreditam num facto inacreditável para a maior parte das pessoas: que é possível transformar o mundo.

Foi, por isso, com grande emoção que vi que o artigo de Rodrigo Petronio se intitula “A Última Inocência”, título que tanto se pode aplicar à vida e obra de Vasco Branco, como de Júlio Resende. E, curiosamente, sinto que a amizade entre eles é sobretudo da ordem da poesia, o que não é de admirar se pensarmos que Magritte achava que a pintura era “poesia inspirada”. Mas quando digo que a amizade entre eles é da ordem do poético penso, por exemplo, em Ramos Rosa, quando este escreve em Poesia Liberdade Livre: “O homem no homem, o homem no universo, a vida de novo na sua ardência primeira, o esplendor da criação, a aliança entre sonho e realidade, a identificação dos contrários e a comunhão fraterna — tudo se consubstancia neste sonho que não é sonho, pois que ele é a realidade primeira e a única realidade a conquistar. A poesia tende à essência do humano”. Por isso, a última inocência é também a primeira inocência, não no sentido cronológico, mas no sentido em que Júlio Resende e Vasco Branco partilham essa postura inaugural de estar no mundo. Quer falem de cerâmica, de pintura, da importância de Picasso e do Modernismo, quer das gentes ou da luz de Aveiro, todas as conversas convergem na paleta de uma doce cosmologia.

E também a paleta das cores se desenvolve à medida das novas demandas. Já enriquecida pela experiência de Jorge Corte-Real, a gama cromática cresce com Vasco Branco que usa, por fim com paixão, os seus conhecimentos de química. Mas surgem novos desafios cromáticos quando Júlio Resende vem a Aveiro fazer os painéis cerâmicos para o Palácio da Justiça de Lisboa. Na presença diária de Jorge e de Cristina Corte-Real, criam novas referências de tintas, cores que vestem o nome da sua emergência: o preto do mestre, o azul mestre embebido pelas cores do céu e da laguna, cores que Júlio Resende utiliza profusamente nos painéis. Por essa altura é criado o branco seixo — cor de Aveiro praia — e toda a nova panóplia de azuis que as marinhas reflectem nos seus quadrados. E estas são as cores mais representativas da paleta de Júlio Resende, paleta que ia crescendo, tal como a de Vasco Branco que, influenciado por Arcadio Blasco, reinventa nos anos 80 a técnica dos engobes para a cerâmica artística. Quando o brilho dos vidrados prevalecia, Vasco Branco enceta de forma pessoal a revolução dos engobes, cujas fórmulas sistematizará em sebenta, quando convidado a ensinar cerâmica.

Mas ali, na Travessa das Olarias, navegava-se em pleno tempo de descobertas, o labor mesclado à música do rádio, a troca de experiências e conversas com os artistas que faziam alguns trabalhos pontuais, ou simplesmente apareciam para ver as últimas peças e trocar impressões: combustão verbal e combustão do fogo trazendo a surpresa das cores em cada fornada. Mas é toda uma poética dos elementos: a atmosfera aquática dos braços de mar e dos braços fluidos a manipularem os tecos com destreza ao encontro do ainda não sabido, o ar salgado que se infiltra nas narinas, a terra-grés a moldar-se em mundo, e sempre o fogo a partilhar a autoria, a redesenhar o mapa das cores em mil cambiantes imprevisíveis. Se umas vezes as expectativas são ultrapassadas pela mão do fogo, muitas outras obrigam à repetição, pelo que a paciência faz parte do processo criativo. Vive-se intensamente o barro desde a sua lama até à forma final, vive-se a amizade como partilha e humor. Não existe diferença entre pequenas e grandes coisas, tudo tem a dimensão do devir, mesmo o bom dia que Júlio Resende traz sempre no sorriso. Na Travessa das Olarias amassa-se a verdade com as ilusões, as vibrações de cor ajustam-se em diapasão: tudo surge da mesma força interior, da sincronia com que os elementos respondem ao apelo da mão.

Agora a porta está fechada e a luz não responde ao interruptor que ninguém prime. Mas o espírito do lugar permanece intacto, como se a todo o momento esperássemos a última fornada do dia para nos deitarmos com os olhos cheios de cor. E acordamos hoje aqui, neste outro lugar que pertence à memória do presente e do futuro, porque a arte projecta a sempre a sua voz para o devir. Este lugar onde expõem e se expõem é, também, um lugar de alteridade que convoca Júlio Resende e Vasco Branco a reunirem-se connosco aqui, a dois passos da Travessa das Olarias, com o mesmo sal no ar e a ria caminhar pela cidade e eles, um e outro, para fora de si, para dentro de nós.

Rosa Alice Branco

 

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