Marcaram-me uma tarefa:
dizer do que em Aveiro há... E porque não me circunscrevem um âmbito e
me deixam livre latitude para abordar os aspectos que, na
minha realíssima gana, mais me dêem aprazimento, ou mais convenham às
minhas limitações de erudição histórica ou de outros cabedais do
saber, começarei pelo que se me afigura para este ensejo o lógico
princípio.
Em Aveiro há...
... em Aveiro há um sentimento de
viva simpatia e funda gratidão por Viseu.
Aveiro é lá em baixo, na terra rasa e branda de
ao pé do mar. Viseu
fica cá pelo alto, cá pelos cimos maciços e majestosos, no centro
geográfico e administrativo da região onde brota o Vouga. O rio
corre infatigavelmente a levar-nos a vossa água, a linfa da vossa terra
– dador eterno do sangue das veias dos vossos agros, que se empobrecem em nosso proveito. Algures desponta singelo
como uma
fonte; e depois é arroio, e adiante regata, e por múltiplos
contributos engrossa e dilata-se; serpeia, saltita pressuroso, vence
obstáculos com afã e alvoroço e, como se uma bússola tirânica lhe
impusesse o caminho, busca, inalteravelmente, a nossa Ria.
É uma prova de amor
perpétuo e um consórcio indissolúvel cada dia
renovado.
Aqui há uns quantos
milhares de anos, estas boas terras de Viseu eram já velhas – e as que circundam Aveiro ainda
não existiam. O rio
carreou materiais sem descanso, dia após dia, ano atrás de ano, e por
séculos sem conta. E, assim, esta terra generosa ajudou a formar a
minha, numa oferenda altruísta e constante que
data das idades geológicas e perdurará por incalculáveis tempos.
E o rio, que não cessa de correr e só à beira da nossa porta
abranda a marcha para chegar, manso, numa carícia; o Vouga que, num
ambiente de geórgica, se derrama amorosamente na laguna – e lhe adoça
o marinho travo salgado – abriu um trilho, rasgou
uma senda e imprimiu um sentido permanente no fluir para os nossos plainos, que dos elementos físicos se comunicou às
predilecções humanas.
Atrás do rio seguiu a gente com o seu
abraço fraterno e as
reiteradas demonstrações de afectuosa solidariedade.
A ria, ainda quando não efectiva, é um
porto em promessa e
em potência. Quando, algum dia, pensámos em transpor à realidade
a ansiada aspiração que as condições naturais magníficas impunham ao nosso dever cívico, de Viseu nos chegou, rasgado,
o apoio
e o estímulo, a voz que fortalece o coro, a acha grande para a
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fogueira dos nossos entusiasmos. Caminho comum, o do Vouga e o
das inclinações dos homens desta terra amiga às nossas águas e ao nosso
mar conduz.
E aqui lembro, especialmente, duas figuras que conheci e tão
bem
sentiram e interpretaram o nosso problema em relação às Beiras: o
gentil espírito do Dr. José Júlio César e o eng. Tristão Ferreira de Almeida, que ainda numa publicação póstuma
calorosamente o advogou.
O oceano e Aveiro retomaram já um convívio
mais assíduo e
estreito, mercê dos eficientes melhoramentos da barra; reataram as
relações que no século de quinhentos tornaram a vila medieval num
burgo comercial-marítimo florescente. A água do mar é o fecundo elemento
da nossa prosperidade; o vivificante e o tónico
desse complexo organismo geo-humano que forma o «hinterland» da Ria.
Chamei-lhe algures soro fisiológico e vejo-a já, porque desembaraçadamente circula a demonstrar-se como tal no surto de
progresso que Aveiro vem experimentando.
E agora, ainda que imprecisos, chegam-nos rumores de que, de onde talvez
legitimamente se pudesse esperar resistência à expansão portuária
aveirense, antes esta se preconiza e expressamente defende.
De Leixões, que na sua grandeza não pode arrecear-se da concorrência,
numa fase de pletora, com um acréscimo de tráfego que
atinge o dobro do previsto, e no convencimento de que os melhoramentos projectados em algumas poucas décadas terão atingido nova
saturação, se aponta a necessidade de abreviar à construção do porto de
comércio de Aveiro e, sobrelevando ainda a este, por títulos de maior
premência, a do nosso porto industrial.
Começa a antever-se a efectivação do anseio secular; e, nesse dia, o
que de vós recebemos de benevolência –
no exacto sentido
etimológico de bem desejar –
reverterá, a par com o nosso, no vosso
proveito. Será essa a retribuição material às benemerências que da vossa terra e da
vossa gente, nas horas da desdita ou da honrada
modéstia, nós lográmos.
E em Aveiro há...
...como dizia um memorialista do século XVII, há, de lés a lés,
uma fisionomia «desabafada e alegre».
Os canais da Ria cortam-na, e abrem-na em mais folgada
largueza, imprimem-lhe específico carácter, espelham o casario e as embarcações típicas, reverberam os lumes nocturnos, o prateado dos
luares, os longes do próprio céu e das estrelas.
Dois atributos a caracterizam: a luz e a água
– a água que
se exalça numa poalha húmida, para irisar a luz e a desdobrar no
cromatismo de que é a síntese. O mais é a obra humana, precária e
efémera, ainda quando relevante. Aveiro, na história do seu evoluir,
oferece aos homens uma concludente lição de humildade. Com
provecta existência milenária, e um passado em que conheceu esplendores
de riqueza; centro portuário de intenso movimento;
cercada de sólidas muralhas, destinadas a afrontar os tempos; – quase
tudo
o que braços humanos ergueram viu ruir, e desfazer-se e desaparecer. Persistiu o perfume
místico de uma Princesa – que preferiu ser
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Santa, e desmantelaram-se os espessos muros, com que cingiu a
sua vila de então D. Pedro, o ínclito Infante. Guardou-se, memória
do humanista Aires Barbosa, renovador da cultura de seiscentos, e caiu
no olvido o próprio local do templo onde foi sepultado. Conservou-se
mais fiel lembrança de quem praticou as obras e exerceu as acções, do
que do concreto resultado das inteligências empreendedoras. As
manifestações do espírito subsistem para além das realizações materiais mas, imediata ou remotamente, delas dimana o impulso
e a força criadora que das ruínas reerguem as novas obras
e os novos fautores de progresso.
Aveiro ilustra nas vicissitudes do seu passado, ao mesmo
tempo, a contingência das possibilidades humanas e o seu poder construtivo
e de regeneração. A Natureza, pródiga uma vez, negou-lhe depois,
impiedosa, os seus favores, e arrastou-a ao calamitoso depauperamento.
Um homem, esclarecido, audacioso e pertinaz forçou a Natureza. E aí onde
fora uma urbe marcante do século XVI, reduzida a cerca de um quarto da
população em duzentos anos –
lutou, congregou esforços, chamou a técnica em seu auxílio, interessou nos seus
problemas vitais a governança pública. Já o capitão-mor João de Sousa
Ribeiro, aveirense benemérito e devotado, empreende a reabertura da
barra, à sua própria custa. Mas os revezes sucedem-se,
porque as forças naturais são cegas e indiferentes às conveniências
humanas, e são obstinadas. Um homem providencial, que na grata
lembrança dos aveirenses mereceria, a meu ver, mais desvelada atenção, e
eu recordo como dos maiores benfeitores da minha terra, sempre que vem a
talho de foice, –
Luís Gomes de Carvalho – fixa,
por fim, a barra, em princípios do século XIX.
E o que em Aveiro há, ou antes, o que Aveiro é
– passando por agora em claro alguns vestígios mais salientes dos tempos pretéritos
–
provem, na generalidade, dessa obra ressurgidora.
Voltaram a brilhar os sol os brancos cristais do sal marinho, nas salinas
quase esterilizadas pela água salobra; as culturas das terras baixas retomaram as produções normais; o estado sanitário
das populações experimentou melhoria tão sensível que, em poucos
anos, o caridoso dispêndio do prelado com socorros aos doentes pobres
se reduziu consideravelmente. Renasceram e recrudesceram as
actividades; surgiram na edilidade os primeiros eficientes
obreiros do desenvolvimento citadino; lançaram-se, tímidas mas
ininterruptas, as iniciativas.
Um dia, estabeleceu-se um imposto de real em cada quartilho
de jeropiga e instituiu-se com a nova receita a iluminação
pública. São
de início uns poucos candeeiros de azeite, na porta da Ribeira,
escura e espessa como uma catacumba; mas, dado esse primeiro
passo – e, porque talvez o consumo de jeropiga, aqui há pouco mais de
uma centúria, fosse avultado – tempos depois quase toda a cidade
dispunha de umas luminárias bruxuleantes durante a noite. Melhora-se
o cais da cidade, calcetam-se as ruas, abrem-se estradas, constroem-se
pontes, erguem-se edifícios... José Estêvão, mais
convicto das vantagens dos caminhos de ferro do que a grande maioria dos
seus contemporâneos, bate-se denodamente por que a linha do norte passe
pela sua terra.
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Não era apenas – esse pouco!
– um prodigioso orador, o
heróico soldado da Liberdade, mas uma argutíssima inteligência de
penetrante visão, um impoluto e isento homem de princípios – e um
aveirense fundamente dedicado ao seu torrão natal. Conta-se que
ofereceram 100 contos da época – alguns milhares de hoje,
porventura – ao paladino desse melhoramento, para que
calasse o seu aveirismo, e abandonasse a causa que espontaneamente abraçara.
Para um idealista da sua têmpera não há dinheiro que valha urna causa
justa, ou arrefeça uma acendrada paixão.
O caminho de ferro
tornou-se mais um factor de fomento económico de uma localidade, mercê da clarividência, do íntegro
desinteresse e do bairrismo férvido e fecundo dessa egrégia figura tutelar
da minha terra.
Pouco a pouco, com boa-vontade perseverante, mesuradas
ambições e consciência do exequível, chegou-se à cidade de hoje – já com
seus jeitos e aspectos de cidade – e cimenta-se a do futuro; para fazer
face a prenunciadas exigências de maior tomo. Mostra
um ar lavado e fresco, ordenado e atraente de terra que tem quem a
cuide e zele. Moderniza-se e embeleza-se; com novos empreendimentos,
enriquece e expande-se; acelera os ritmos de desenvolvimento e a vida
intensifica-se.
A indústria, que o Marquês de Pombal pretendeu fixar, quando, há dois
séculos – a completar dentro de quatro anos
– a erigiu
em cidade, redundou em malogro. Aí a encontramos rejuvenescida e de voos amplos, a desferirem-se para mais dilatados horizontes. A par da
cerâmica decorativa, doméstica e de construção, cuja tradição secular quase se extinguira, e hoje toma
vulto inatingido, contam-se a lixa, a moagem, a carpintaria mecânica, a metalurgia a
celulose – com proporções pertencentes já ao estalão que ultrapassa
a corrente da mediania – e outras menores.
A pesca longínqua, exercida desde a
descoberta da «Terra dos
Bacalhaus» lá pela segunda metade do século XV, deperecera.
Restabeleceu-se com sobrepujante possança, a termos de colocar o porto
de Aveiro, com duas dúzias de modernas unidades, no segundo
posto das frotas bacalhoeiras nacionais, e, em globo, como o terceiro do país no que concerne ao geral das pescas.
E, no domínio da etnografia, em Aveiro há fartos motivos de
interesse: barcos, com colo de cisne, das fainas do moliço; sóbrios mercantéis, bateiras, caçadeiras
– cada qual com uma
função diferenciada e adequada estrutura; redes, alfaias e sistemas de
pesca variados; usanças peculiares; peças de vestuário como o
gabão; manifestações da arte popular, tão expressivas como os
painéis ingénuos e policromos dos moliceiros ;airosos. Acrescentem-se as afamadas procissões
– em nenhures do país excedidas em
'pompa e compostura – as festas das «Entregas dos
Ramos», na
quadra natalícia, manifestações religiosas, mescladas de laivos profanos, únicas no país.
Inclua-se neste capítulo a culinária. Apontem-se as caldeiradas, de
firmado renome. Nada desmerecem das que deliciaram Fialho
de Almeida – «as caldeiradas patrícias,
inverosimilmente celestes
dos Gamelas de Aveiro». Um conhecido propugnador da genuína /
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cozinha portuguesa citou-me, certo dia, nove receitas diferentes da
festejada iguaria dos pescadores – a primeira condimentada com gengibre
e a última utilizando, como sucedâneo do clássico «pó de enguia», nada menos do que sementes do girassol. E o
experimentado gastrónomo não se decidira nas suas preferências. Ajuntem-se
as espetadas de mexilhão, as enguias de escabeche, o carneiro
assado na caçoila de barro preto e, a todos excedendo em aura e
projecção, os celebrados «ovos-moles» das nossas legendas de propaganda.
Li uma vez que, numa mesa onde se sentavam algumas das mais cintilantes
figuras das letras nacionais e dos mais exigentes e requintados «gourmets»
da Lisboa dos fins do século passado, com vinhos dignos do Olimpo, «os
ovos moles de Aveiro eram
servidos de joelhos, com reverências ritualistas». Consagrava-se, assim, entre as mais raras doçarias, a especialidade aveirense
– «doce
muito célebre, mesmo lá fora... uma delícia», como afirmava o Dâmaso,
de «Os Maias », com água na boca.
E neste relance, tão fugidio e saltitante,
mudo já de parágrafo.
Confessarei que em Aveiro escasseia a monumentalidade e a
opulência no aspecto arquitectónico e nas artes plásticas. Assim mesmo
não poderá deixar de considerar-se um centro artístico de relevo. O sr.
prof. Dr. Reinaldo dos Santos não hesita em qualificá-la como um dos
focos de maior significado do barroco nacional do século XVII, e um conceituado especialista americano, o professor da
Universidade da Pensilvânia Robert Smith classificou-a como
um dos núcleos capitais na arte da talha dourada, dessa centúria e
da imediata. As igrejas de Jesus e das Carmelitas, nesse aspecto,
cotam-se como espécimes dos mais belos e valiosos do país.
Com primores de acabamento, o tecto da capela-mor do primeiro desses
templos, na justa expressão do ilustre aveirense sr. Dr. Alberto Souto,
«é uma autêntica maravilha, parecendo aberto a buril numa pepita de
oiro».
Neste sector, atrai mais especialmente as atenções o Museu Regional, de
que a igreja de Jesus constitui um anexo, e ali, entre todas, duas obras
primas – o retrato de Santa
Joana e o seu túmulo
de mármores incrustados, considerado uma verdadeira preciosidade, única
no mundo.
Predomina a arte conventual, mas, quer na pintura e escultura, quer em
tecidos e paramentos, muito há que apreciar e admirar,
com real interesse estético, religioso e histórico.
E há...
...apesar de tudo há um cruzeiro como o de S. Domingos,
gótico-manuelino, que no autorizado conceito do Doutor Virgílio Correia
figura como «o melhor de Portugal no seu género e estilo»; e alguns
templos, por uma outra particularidade, dignos de atenta observação,
como a capela do Senhor das Barrocas, «transcrição neo-manuelina, muito elegante, dos baptistérios de Pisa e Florença», segundo a julgou Dieulafoy;
a igreja da Misericórdia, que ostenta «o mais formoso e
rico portal dos templos congéneres do norte do país», como acentua o
citado crítico de arte aveirense...
E há, rodando subitamente este cosmorama de cores baças, um
umbroso parque, esmeradamente tratado, desafogados bairros / 8 / modernos, edificações vultuosas e gente cordata e afável. E há... uma
população que tende para as duas dezenas de milhares, e os trechos
lagunares sedutores, e, de certeza, uma latitude, e uma longitude, e, na
prática, nenhuma altitude...
E... ah!... O tempo de
ordenança já deve estar esgotado.
Aveiro, mesmo na sua modéstia, não cabe nestas apressadas e
insulsas palavras.
Na verdade, o que em
Aveiro há «é mais de ver que de contar». E eu, à
maneira predilecta dos músicos italianos de setecentos, devo rematar em
forma de da-capo, e adoptar o andamento presto.
Viseu tem um lugar eleito dentro do nosso coração de aveirenses. Lembro-me que há uma dúzia de anos, andando por cá
passageiramente em serviços profissionais, uma manhã, tomava o comboio
para ir incorporar-me numa romagem à jazida de um aveirense insigne,
que foi o mais vigoroso panfletário português deste século – o fundibulário justiceiro que se
chamou Homem Cristo. Alguém, que
evoco comovidamente, teve a gentil lembrança de me
mandar à estação um ramo de flores – flores das árvores que esse ferrabrás temível e complexo, rude e, simultaneamente, com os mais
imprevistos refinamentos, plantara na parada do quartel para depor,
votivamente, na sua campa.
Transportei-as, emocionado, como uma homenagem de Viseu ao vulto
aveirense de maior projecção no meu tempo. Mais do que
um facto circunstancial, ficou-me gravado o gesto singelo desse momento, como uma manifestação simbólica de ligação e simpatia,
estreitas e firmes.
E nós não disporemos de flores com que possamos tão significativamente
associar-nos às vossas manifestações cívicas de dor e alegria. Mas em
Aveiro há... – asseguro-vos que há!
– em inteira reciprocidade, francos
braços acolhedores, reconhecido afecto, peitos alegre e cordialmente abertos para a boa gente de Viseu.
Eduardo Cerqueira |