Eu, se fosse
bombeiro, escrevia as minhas memórias. Um bombeiro, designadamente um
velho bombeiro, deve ter muito que contar...
Não era tanto pelo
desejo de conquistar uma glória literária e ver o meu livro na montra
das livrarias. As minhas memórias poderiam até não ser publicadas, mas
ficarem manuscritas num caderno só para os meus netos lerem quando
fossem mais crescidos. (É evidente que, no meu caso, tomo a palavra
«neto» no seu sentido mais amplo). As histórias dos bombeiros não são
como as outras histórias! Não são, por exemplo, como as histórias de um
caçador ou de um jogador de futebol. Se bem que apaixonantes para quem
gosta da bola ou da caça, estas histórias deixam a vida de fora. São
histórias de aventuras em que, raras vezes, esteve em jogo a existência
– a deles e a das outras pessoas. São histórias de triunfos e de azares.
De como se esteve à beira de matar um elefante — ou uma lebre... — ou de
conquistar um troféu «olímpico» em qualquer 3ª Divisão.
Tenho ouvido estes
«heróis» contar as suas proezas, com uma secreta vaidade. E, quando
adrego de ir à casa deles, lá vejo, resguardadas por uma vitrina, as
taças e as medalhas conquistadas; ou então, se se trata de um caçador, a
pele embalsamada (ou outros adereços da fera...) espalmados na parede.
Quantas recordações cada uma daquelas peças evoca no coração do «herói»!
Mas um bombeiro é
coisa diferente!
Eu — que não sou
bombeiro, a não ser honorário... — já tive ocasião de descrever um
incêndio. Foi um incêndio que ficou célebre, numa conhecida tabacaria de
Coimbra. Um incêndio que deflagrou, pela calada da noite, num edifício
de vários pisos, em plena «Baixa» coimbrã. Vendo obstruída a única porta
de saída, o dono da casa atirou da janela do piso superior a filha
pequenina para os braços de um transeunte. Ele mesmo, procurando fugir à
morte por asfixia, tentou saltar do segundo andar à rua. Tão
desastradamente o fez, que caiu sem sentidos sobre o passeio, vindo a
morrer horas depois. A esposa seguiu-lhe o exemplo, perante os olhos
horrorizados da multidão que assistiam, impotente, a tão grande
tragédia. Valeu-lhe ter ficado presa pelo vestido na sacada do primeiro
andar.
Em cima, os bombeiros
atacavam o fogo com decisão. Deu-se, porém, o inevitável. O pavimento do
segundo andar, consumido pelo fogo, cedeu e caiu sobre o primeiro. Este,
não aguentando o peso dos escombros, ruiu também, sepultando no meio de
tijolos e de madeiramentos desconjuntados os infelizes que procediam, no
rés-do-chão, ao salvamento dos valores da tabacaria.
Havia um padre, de
agulheta em punho, entre os bombeiros. Um padre que era um valente.
Chamava-se Padre Dr. Luís Lopes de Melo. Foi ao tentar escrever a sua
vida que fiz a descrição desse sinistro que apavorou a cidade. No dia
seguinte os jornais, tarjados de luto, traziam em toda a largura da
página esta legenda: «A pavorosa
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tragédia de sábado: 14 mortos!»
Volto aos bombeiros.
Eu, se fosse bombeiro, escrevia as minhas memórias...
Ao lado dos actos de
bravura que cometi — ou de medo ou de timidez com que me aproximei das
chamas — teria também de deixar escrita quantas foram as vezes que me
lembrei de Deus — eu que nem sempre rezo... — e me confiei ao seu Poder
e à sua Misericórdia.
Que um pecador se
afoite a lançar-se nas chamas, é sempre um acto de temeridade, se
primeiro, ele mesmo, se não atira para os braços misericordiosos de
Deus. Quantas vezes ao bombeiro (novo ou velho que seja...) não terá
acontecido, em momentos de perigo, sentir acordar dentro de si o que em
nós existe de mais vital e mais essencial.
Se eu fosse bombeiro,
escrevia as minhas memórias, com toda a sinceridade, sem nada encobrir,
para que os meus netos pudessem conhecer, por fora e por dentro, em
retrato de corpo inteiro, quem foi o avô que tiveram.
Talvez o que se não
viu, e que ficou secreto dentro de mim, tenha para eles maior valor do
que os actos de bravura que pratiquei e do que as medalhas de cobre ou
de oiro que me puseram ao peito... |