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O fogo leva tudo!

Pelo Desembargador MELO FREITAS

QUE dizer? Em boa verdade, falta-me «engenho e arte», mas, porque fui solicitado e não poderia de todo esquivar-me, a simples apontamentos me limito.

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Passou-se o caso numa das últimas noites. Desabrido vento sacudia os caixilhos das janelas do meu quarto, voltado para a Praça Marquês de Pombal, e, a intervalos, fortes aguaceiros fustigavam as vidraças. Entretanto, no delicioso conforto da minha cama, protegido contra os elementos em fúria, ajeitava-me para de novo adormecer. Já tinham dado as 4 horas.

Dr. Joaquim de Melo Freitas
1888-1893

De súbito, porém, do próximo quartel dos Bombeiros Velhos soltou-se agudo grito da sereia de alarme. Um silvo contínuo (o apelo era para fora da cidade), não tardando muito

que cessasse, e logo ouvi a saída de uma viatura. Voltara-se ao silêncio, só interrompido pelo vendaval.

Noite péssima, de rigorosa invernia, mas, quando eu e muitos outros repousávamos, lá iam eles, os Voluntários, lá iam eles, sentir de perto a intempérie, passar trabalhos, correr riscos...

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BODAS DE DIAMANTE dos Bombeiros Velhos não representam apenas 75 anos de paradas, de desfiles, de vistosa presença em actos cívicos diversos. Mais do que isso, significam e avivam três quartos de século de abnegação inestimável e inúmeros sacrifícios!

Designá-los por Bombeiros Velhos equivalerá a reconhecer-se-Ihes sólido e glorioso título de nobreza, galhardamente alcançado.

Quase todos eles de humilde condição social, sem outros bens que não sejam família mais ou menos numerosa a sustentar, sucede, todavia, que, tendo talvez posto os olhos no céu infinito e vendo o brilho das estrelas..., com sublime devoção se comprometeram a árduas canseiras e graves perigos.

Crepitando e avançando violento incêndio, os simples espectadores, mesmo a distância se sentindo asfixiados e abrasados, prudentemente se afastam, mas os beneméritos e intrépidos Voluntários hão-de manter-se firmes nos seus postos, na ardência da fornalha ou molhados até aos ossos, enquanto os travejamentos desabem, as paredes desmoronem e, acaso, deflagrem explosões. Em luta contra o fogo e contra a morte, chegam até à heroicidade.

Por quem o fazem?

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Incêndios, inundações, naufrágios... E o quê mais, a que sejam chamados os Bombeiros?

Há anos, em Lisboa, assisti ao aparatoso salvamento de um gato, utilizando-se excelente e gigantesca escada Magirus, toda ela motorizada.

O bicho subira a tais alturas, de uma grande árvore, que perdeu o tino para descer.

Muitas e baldadas foram as tentativas que vários Bombeiros empregaram, tendo querido aproximar-se do animalzinho e, por cautela, envolvê-lo em panos. Por fim, assustado e resvalando de frágil em frágil ramo a que não poderia segurar-se, caiu docemente num dos lagos da Avenida da Liberdade, onde o espectáculo se desenrolou.

Encharcado, em tristíssima figura, feito numa sopa! — mas salvo. Fora salvo um gato!

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Estou a lembrar-me de certa poesia do meu livro de leituras alemãs, dos tempos de Liceu: «Não te esqueças de mim».

Trata-se de conhecida e delicada flor, dum azul como o dos céus: myosotis. «Não sabe dizer muito, e tudo o que diz é sempre somente a mesma coisa, é somente: não te esqueças de mim.»

Também a sereia de alarme do quartel dos Bombeiros Velhos não sabe dizer muito, e é / 18 / sempre o mesmo, enigmático, aflitivo e enervante o grito com que nos inquieta. Mas, se tivesse palavras para contar-nos tragédias, o que nos diria ela?

Veio de Londres e aí serviu, no tempo dos bombardeamentos da Grande Guerra última. O que nos diria ela? — repito.

Tive ensejo de ver ferros torcidos, como se fossem vimes, restos de habitações, desventradas até ao pavimento das caves, e este pavimento transformado em baldio onde vegetavam, em abundância, fetos dos montes e moitas de «Epilóbium», de caules esbeltos e muito floridos, pondo manchas cor de rosa num quadro dramático.

Para recordação colhi no local algumas dessas florinhas, e as conservo, agora já enegrecidas mas que, se falassem, possivelmente diriam, ainda, que foram regadas com «sangue, suor e lágrimas», única promessa de Churchill à Inglaterra até que se alcançasse vitória.

Talvez aquela sereia dos Bombeiros Velhos, ao soltar seu grito, plangente, queira repetir-nos: «Sangue, suor e lágrimas».

Quem sabe? Sangue, suor e lágrimas daqueles que pedem socorro. Sangue, suor e lágrimas dos que, por amor do próximo e bem fazer, correndo em auxílio se arriscam a desastre!

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Antes de organizadas convenientemente as corporações de serviço contra incêndios, não

raro era que a multidão, no propósito de salvar, acabasse por destruir, quase por completo o que existia, lançando tudo pelas janelas, dos mais elevados andares à rua. No dizer de «O Bombeiro», de 1 de Agosto de 1889, o fogo representava um flagelo, mas os salvadores constituíam uma praga!

Na época actual, Aveiro conta com duas prestantíssimas corporações de Bombeiros Voluntários, que, todavia, lutam com dificuldades.

No incêndio do Governo Civil, em 1941, a falta de água, foi problema confrangedor, e, mesmo com abundância de água, a insuficiência de mangueiras ou o seu mau estado pode inutilizar os maiores esforços. Sabe-se que são caras e de pouca dura.

Confiemos nos nossos beneméritos Voluntários, poderemos contar com eles, mas, evidentemente, só na medida dos meios de que disponham. Não lhes bastam louvores e honrarias, estima e gratidão.

Estejamos sempre em guarda! Quando nos lembrarmos deles, feitas bem as contas é a nós próprios que serviremos. Não será assim?

Em minha vida sofri dois sobressaltos: princípio de incêndio em estabelecimentos do rés do chão de casas onde habitei, em Coimbra e em Aveiro.

Sem consequências, providencialmente, mas, naqueles momentos de dolorosa ansiedade e pensando que de um bom serviço contra incêndios dependerá a nossa sorte, gravou-se no meu espírito a justeza de um conceito de velha sabedoria popular, com que termino:

«O ladrão leva o que pode, mas o fogo leva tudo!»

Ano Novo 1957

JAYME DE MELLO FREITAS

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