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Homens que se dão

 
           
 

 

 

Companhia Voluntária de Salvação Pública "Guilherme Gomes Fernandes" – vulgarmente designada por "Bombeiros Novos" – comemora durante o ano corrente as bodas de diamante da sua instituição. Foi em 30 de Novembro de 1908 que um reduzido grupo de homens da " Beira-Mar", dispostos a servir sem outro interesse que não fosse fazer o bem sem olhar a quem, deram corpo a esta Associação, há muito credora da nossa admiração e do nosso reconhecimento.

Hoje, porém, esqueço-me desse significativo capítulo da história aveirense, para me curvar diante de homens que, em tantas horas de perigo, se demonstram como autênticos heróis. Não lhes correrá pelas veias o sangue da cavalaria medieval ou da fidalguia aristocrática, mas – o que é mais valioso – continuam nos seus cometimentos a gesta singular dos filhos anónimos de um povo vocacionado para a aventura, marcado pelo sacrifício e impregnado de Evangelho.

Não precisamos de relembrar o consabido acto legendário de S. Marçal, patrono dos Bombeiros cristãos. Ele, se com o báculo milagrosamente extinguiu um incêndio, não expôs a sua vida; mostrou, sim, um poder taumaturgo que lhe não era próprio porque extraordinariamente recebido por Deus.

Também não temos necessidade de evocar Santa Mafalda, eleita pelos Bombeiros do Distrito de Aveiro como sua padroeira. Ela, outrossim – se é verdade o que se afirma – realizou idêntico prodígio ao deflagrar-se um incêndio no Mosteiro de Arouca; o seu mérito advém-lhe apenas de ser intermediária de um dom superior.

Para os nossos bombeiros voluntários, correndo apressadamente ao toque da sereia, esquecidos de si e de familiares, de cabelos encrespados ao vento, enegrecidos pelo fumo e queimados pelo fogo, esfomeados por escassez de tempo... para os nossos bombeiros o bispo gaulês S. Marçal ou a rainha portuguesa Santa Mafalda não serão exemplos de heroísmo, mas quiçá modelos de fé e intercessores no perigo.

Todavia, se pretendermos encontrar um homem que seja o protótipo do bombeiro voluntário, escusamos sair das páginas da nossa história. Aí encontramos João Cidade, filho de uma família pobre de Montemor-o-Novo, que, mercê de circunstâncias adversas, viveu fora do país, afastado do ambiente familiar e longe da terra natal, sofrendo na alma e no corpo dificuldades e angústias, fomes e privações. Evocá-lo anima na coragem aqueles homens que se dão ao irmão-homem.

Certo dia, num dos últimos anos da primeira metade do século XVI, os sinos das igrejas de Granada, ao sul de Espanha, anunciavam uma pavorosa desgraça: o Hospital Real era pasto de chamas alterosas. O povo acorria, tumultuosamente mas ansioso por combater o sinistro.

De súbito, ecoou um grito, soltado / p. 33 / por centenas de vozes. Viam-se figuras humanas, na secção dos doentes mentais, que, lancinantes, pediam socorro. Mas... Como ir até lá, se as salas e os corredores eram envolvidos por rolos de fumo e atravessados por línguas de fogo?!... As mortes previam-se eminentes, entre aflitivos horrores.

É neste momento que surge um português, correndo para o grande edifício, a arder por todos os lados. Arranca um balde das mãos de alguém, despeja a água sobre si mesmo e desaparece no meio do infernal cenário. O homem, que toda a cidade bem conhecia como protector carinhoso de marginais e desamparados, consegue libertar os doentes e conduzi-los para fora do braseiro, amparando uns, erguendo outros, empurrando os duvidosos e levando às costas quem não pode andar. Salvou-os a todos.

Quando ele, denegrido e queimado, chegou à praça, foi o delírio em aplausos; mas não estava satisfeito. Humedeceu novamente a roupa, respirou fundo e correu mais uma vez para o interior do hospital; a todos pareceu que o salvador de tantas vidas iria agora morrer queimado. Tal não aconteceu, porém. Daí a pouco, aparecia à multidão, agora numa das varandas, atirando colchões, travesseiros, peças de roupa, móveis, utensílios e tudo o que podia alcançar.

O heróico benfeitor, cumprida a tarefa a que se lançara, desceu finalmente para o meio da multidão, aplaudido por uns, venerado por outros e elogiado por todos.

João Cidade – a quem o povo já apelidava de João de Deus – morreu em 1550 e foi canonizado pela Igreja em 1691. Se merecidamente é considerado como patrono dos enfermeiros e dos doentes, nem por isso ele deixa de ser o precursor e o protótipo dos Bombeiros Voluntários. E não conhecemos nós tantos homens, mesmo vivendo connosco, que – como o "Português de Granada" – são exemplo de heroísmo na salvação de vidas e de haveres?...

Aveiro, 10 de Fevereiro de 1983

 
 

Padre João Gonçalves Gaspar

 
 

págs. 33 e 34

   

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