Retalhos das Memórias de um ex-Combatente


Capelão operacional

A operação deste dia era o patrulhamento da nossa zona. O Capelão do Batalhão, de visita pastoral à nossa Companhia, resolveu ir connosco.

– Padre – disse-lhe eu – veja onde se vai meter e onde nos pode ir meter a nós. É a primeira vez que vamos para aqueles sítios e não sabemos o que vamos encontrar!

– Não há-de haver problema – respondeu-nos o padre, na sua fé!

Lá fomos. Descemos das viaturas e embrenhámo-nos no mato, que naquela zona era de capim alto, mais alto do que um homem.

Era difícil caminhar mas com muito esforço lá íamos avançando. O suor era abundante. Os fatos de combate já começavam a escurecer com o suor que nos corria pelas costas. Era dia de sol, o que nos obrigava a um maior esforço. Chegados a uma pequena clareira, à borda na mata, houve ordem para descansar. Montou-se segurança e sentámo-nos. Então acerquei-me do Padre Arnaldo e perguntei baixinho:

– Então que tal?

– É difícil mas cá vamos andando.

Homem de fé, pensei!

– Ouça uma coisa Padre Arnaldo – continuei – se agora aparecessem os “turras” o que faria?

– Nada. O problema era vosso.

– Está bem – ripostei – Mas se lhe aparecesse um “turra” pela frente?

– Bem – diz o Padre – não poderia deixar-me matar, tinha que me defender!

O padre Arnaldo tinha levado uma G3 mas ainda hoje duvido que soubesse utilizá-la. Assim o inimigo pensaria que ele era um simples soldado. No mato não havia divisas, nem galões. Éramos todos iguais para que não nos distinguissem. Não convinha. Os “turras” podiam atacar os graduados, para que os pelotões ficassem sem Comando. Um dos meios que eles tinham para nos identificar era ver quem usava óculos. O estudo dá cabo da vista, pensavam. Quantas vezes meteram os meus óculos no bolso, para ser como os outros Soldados, para não vir a ter problemas.


O Sarreiro...

Tinha chovido. O pó do capim pegava-se aos fatos de combate conspurcando-os! As botas de lona com aquela terra barrenta a pegar-se engrossava as solas, dificultando-nos a progressão. Continuámos a caminhada entrando na mata que parecia não ser muito extensa.

Passado um bom bocado notámos vestígios de passagem de pessoal, embora não muito recentes. Redobrámos a atenção, não fosse o diabo tecê-las, mesmo com um padre junto de nós.
Mais adiante encontrámos uma sanzala pequena – meia dúzia de cubatas. Duas secções fizeram o cerco e a terceira avançou cautelosamente. Nada, nem ninguém. A sanzala, pelos indícios encontrados, devia ter sido abandonada há muito tempo, o que não impediu um Soldado – o Sarreiro – de encontrar uma máquina de costura Singer, marca utilizada pelos nativos. São máquinas que têm só a cabeça, e na roda da cabeça uma manivela que era movimentada à mão pelo alfaiate. O Sarreiro trouxe essa máquina ao ombro. E ela era bem pesada.

Continuámos a caminhada. Adiante vimos uma espécie de lago. Atravessámo-lo para cortar caminho para o local de encontro com as nossas viaturas. Era uma lagoa baixa, óptima para lavar as botas que assim ficariam com uns quilitos a menos.

Ao atravessar a lagoa sentimos o chão a faltar-nos debaixo dos pés – eram areias movediças! Gritei para os soldados se afastarem uns dos outros e que não deixassem de caminhar para a frente. As areias eram balofas e cada vez nos enterravas-mos mais. Disse aos meus homens que a única solução era rastejar naquela água baixa, mas perigosa. E assim conseguimos chegar à outra margem sem mais problemas.

Estávamos sentados a descansar, quando se ouve uma voz inquieta:

– Meu Furriel, acuda-me que não consigo sair daqui!

Olho para trás e vejo o Sarreiro aflito, com a arma numa mão e a máquina de costura na outra.

– Ó desgraçado, deixa a porcaria da máquina senão ainda morres afogado.

Qual quê! Tivemos de dar as mãos uns aos outros até chegar ao Sarreiro e assim conseguimos tirá-lo da situação aflitiva em que se encontrava.

Não sei que amor à primeira vista foi aquele pela máquina de costura! Se ele fosse alfaiate ainda serviria para matar a saudade da profissão. A alcunha de Sarreiro veio-lhe da profissão ocasional de limpar cubas, raspando a côdea deixada pelo vinho aí armazenado, a que chamavam “sairro”, depois vendida não sei para que fim. E de sairreiro, como era difícil de pronunciar, passámos a chamar-lhe simplesmente Sarreiro.