Rumo ao Norte
Finalmente chegou o dia da partida para o mato.
Tínhamos recebido ordens para avisarmos todo o pessoal de que se
precisassem de comprar alguns objectos pessoais o deveriam fazer naquela
tarde, pois na manhã seguinte teríamos de sair do Grafanil. Havia outro
batalhão a chegar que iria ocupar o nosso lugar.
Dormimos mal, pois sabíamos que para nós a guerra
iria começar. Depois da distribuição das rações de combate, embarcámos.
A deslocação era feita por Companhias. Mesmo assim cada coluna, composta
por Jipes, GMC, Unimogues, e algumas viaturas civis destinadas a
transportar materiais diversos, era extensa. Agora é que era. A minha
expectativa era grande! Para que lado iríamos?
O Capitão ia na frente, na primeira viatura. O Senhor
Capitão não poderia apanhar com o pó nas ventas, para isso era Capitão!
A viatura onde eu seguia com a minha secção – um Unimog – ia em sexto ou
sétimo lugar na coluna. Eu era chefe de viatura, seguindo, de pé, ao
lado do condutor, tentando ver a viatura do Capitão, que parou à saída
de Luanda. As restantes viaturas foram-se aproximando. Quando a coluna
estava toda reunida, o Capitão fez sinal com o braço, indicando que
seguiríamos para a direita.
Senti-me aliviado, não sei porquê! Se fosse para a
esquerda se calhar ficaria triste. Mal sabia o que nos esperava…
A marcha começou lenta. Seguimos pela estrada que dá
para Malange. Passados 16Km surge a povoação de Viana; continuámos
viagem sem problemas de maior. Íamos olhando a paisagem. Aqui uma
sanzala, além, à esquerda, uma plantação de sisal, grande como o país,
só comparável no “Puto” a alguma fazenda Alentejana. “País grande”,
pensei. E nós em Portugal a cavar pedra em Trás-os-Montes para podermos
cultivar qualquer coisa. O ronronar dos motores das viaturas adormecia
os sentidos. Hei! Nada disso! Não pode ser! Olho à viva!
– Condutor, como vai isso? Vais cansado?
– Não meu Furriel. Isto é chato, mas lá vamos indo.
Olha! Uma povoação com casas de alvenaria ao longe!
Fomos andando e apareceu uma placa na estrada que dizia Catete. Olhei o
conta-quilómetros. Tínhamos andado 60Km.
Lembrei-me do que em Luanda o Sr. Nero me disse: que
aos domingos, por vezes, iam tomar a bica a Catete. Eram só 60Km!
Fomos andando. Passávamos agora pela “Vila Salazar”
(no meu tempo de escola primária aprendi que o antigo nome desta terra
era N’Dalatando). Salazar tinha o nome em tudo que era sítio. Se ele
algum dia tivesse vindo ver esta Província, como ele dizia, teria
chegado à conclusão, como Norton de Matos, que o governo devia estar em
Angola e o “Puto” ser um local de férias na Europa, para os
Ultramarinos. Nunca saiu de “casa”! Só conhecia o Ultramar por aquilo
que lhe contavam; tinha ideias fixas e os resultados estão à vista. Só
não consigo esquecer o que ele disse um dia: “O Ultramar não se perde em
África; se se perder é na Europa!”
Chegados ao Lucala, houve ordem de paragem para descanso das viaturas e
do pessoal. Tivemos ordem para visitar a povoação, muito simpática por
sinal. Foi aí que vi pela primeira vez lagostins de água doce, no rio
que passava junto à povoação.
Continuámos. À saída de Lucala voltámos à esquerda e,
finalmente, rumámos para Norte. A coluna militar era longa, a “estrada”
era de uma espécie de barro vermelho e as viaturas levantavam um pó
infernal. Era impossível usar óculos; os óculos iam para o bolso e do
bolso saía o lenço verde da tropa que nos fazia muito jeito. Era
amarrado por cima do nariz e dava-se um nó atrás da cabeça, o que nos
permitia respirar menos-mal.
A viagem ia prosseguindo sem problemas de maior. Nem
as viaturas avariavam, o que nos parecia milagre, pois as GMC, que já
eram da Segunda Guerra Mundial. Íamos passando por sanzalas e povoações.
De repente, à entrada da Vila 31 de Janeiro, deparo-me com um cenário
que me deixou abismado: a escola lá do sítio era igualzinha a uma que
havia na Gafanha da Vagueira! Cor e tudo… Como é possível?
E a memória retrocede, à minha terra... à minha
família. “Meu Deus, porquê?” Há momentos na vida em que era preferível
não ter memória…
Onde pára o Furriel Miranda?!
Chegámos a Camabatela, onde iríamos passar a noite. As viaturas foram
chegando e estacionaram. A malta dormiria nas viaturas. De repente o
alarme! Falta a viatura do Furriel Miranda. Que é feito deles? O Capitão
chamou o Sargento Mecânico Lino:
– Ouça, ó Lino, o Sargento Miranda não teria tido uma
avaria e ficado para trás?
– Não, meu Capitão. A minha viatura era a última e
nenhuma se atrasou.
Não me afligi muito com o caso. Conhecendo como
conhecia o Miranda, certamente chateado com a marcha lenta da caravana,
deve ter andado em marcha mais acelerada e estaria à nossa espera mais à
frente. Mas como não respondia às chamadas da rádio, todos ficámos
preocupados, embora já soubéssemos que as transmissões eram o calcanhar
de Aquiles da nossa tropa! “Ah… não há-de ser nada de mal!” Falei com um
soldado do aquartelamento de Camabatela que me disse existir outra
Companhia aquartelada uns 30Km mais à frente. Era muita distância para
uma viatura sozinha, de noite, por estradas desconhecidas! Mas o que
teria acontecido ao Miranda?!
Nisto aparece um estafeta perguntando quem era o Comandante daquela
tropa.
– Aquele ali. É o Capitão. – Alguém respondeu.
O estafeta dirigiu-se a ele e entregou-lhe uma
mensagem. O Capitão leu-a e começou a gritar em altos berros:
– O Miranda está num destacamento 30Km mais à frente.
Amanhã vai levar uma “porrada” que nem sabe de que terra é!
Todos respirámos de alívio. O Sr. Capitão esqueceu-se
que, com o cair da noite e o pó que as viaturas levantavam, tinha de
haver uma maior distância entre elas, e por vezes nem os faróis da
viatura que vinha atrás se viam. Enfim, coisas de quem manda.
No dia seguinte, depois da alvorada, foi organizada a
coluna e partimos, andando sempre para Norte. A nossa orientação era o
sol. As viaturas pareciam querer colar-se ao solo. A caixa de
velocidades tinha de trabalhar em constantes reduções. A velocidade
diminuía aqui, voltava a subir além! Mesmo assim andávamos quase sempre
muito devagar...
Encontro com outros companheiros em Maquela
Mais tarde informaram-nos que iríamos passar pelas minas de cobre do
Mavoio! Passámos por bastantes povoações onde se viam poucos habitantes,
brancos e pretos, até que chegámos à cidade de Maquela, com diversas
casas comerciais que pareciam bem abastecidas.
Era meio da tarde e a ordem foi para estacionar e
aguardar a manhã seguinte. Partiríamos logo que fosse dia, para tentar
chegar ao destino algumas horas depois.
Como sempre sucede, a tropa estacionada procurava
entre os “maçaricos” – tropa-nova – se haveria alguém da sua terra. Era
uma azáfama. Uns encontravam alguém conhecido e a pergunta era sempre a
mesma:
– Como está fulano? E sicrano? A filha dele já casou?
Outros não tinham tanta sorte e ficavam desapontados,
tristes.
– Deixa lá pá! Amanhã vem outra Companhia do nosso
Batalhão e pode ser que venha alguém da tua terra. Agora diz-me. Como é
isto por aqui?
– Olha – responde-me o outro – andamos na
psicossocial mas nunca sabemos quando estamos a falar com um amigo ou um
inimigo. Somos do batalhão do Spínola e ele tem a mania da psicossocial.
Tem resultado, com muita paciência. É um trabalho moroso, mas já
conseguimos recuperar meia dúzia de sanzalas, que ficam aqui à volta da
cidade e para Sul, por onde vocês passaram.
Estranhei a conversa do militar e as informações que
me estava a prestar. O fato de combate que vestia estava sujo, além de
ter a barba comprida.
– Qual é o teu posto? – Perguntei:
– Alferes Miliciano Garrido – respondeu,
estendendo-me a mão.
– Sargento Miliciano Ribau – apresentei-me,
retribuindo o cumprimento.
Conversámos algum tempo. Fiquei a saber por ele que a sede do nosso
Batalhão iria ficar em Cuimba, mas a distribuição das Companhias era da
responsabilidade do Comando do Batalhão, pelo que não soube adiantar
mais sobre o assunto. Disse-me ainda que iríamos passar pelo menos dois
rios, cujas pontes estavam em muito mau estado ou mesmo destruídas.
Recomendou-me que avisasse o “pessoal” de que os pretos que
encontrássemos nas sanzalas deveriam ser respeitados. Poderiam ser
inimigos mas também poderiam ser amigos e, se bem tratados, poderiam
mais tarde dar-nos informações preciosas sobre o IN.
Coisas desta guerra. Nunca se sabia onde estava o IN!
Provavelmente alguns estariam em Maquela do Zombo, onde nos
encontrávamos, vigiando os nossos movimentos para passar a informação
para o outro lado da fronteira, a uma escassa meia dúzia de quilómetros.
Despedimo-nos, desejando recíprocas felicidades, indo
cada um para seu lado.
Dirigi-me para a minha viatura onde o condutor,
cansado de tantas horas agarrado ao volante, dormia profundamente. Na
caixa do Unimog outros soldados conversavam, tentando aconchegar-se para
passarem a noite o melhor que pudessem. Teriam de dormir ali. Sentei-me
ao lado do condutor e devo ter adormecido por muito tempo, pois quando
acordei já a aurora raiava. O pequeno-almoço, um copo do cantil cheio de
café com bolacha da ração de combate, e estava feito.
Houve ordem para pôr os motores em marcha; começaram
a ouvir-se, primeiro um, depois outro até que estava tudo preparado para
arrancar. E o meu condutor mal abria os olhos – era um pouca-tripa e
estava “todo roto” – como se diz na gíria. “Valha-me Deus” pensei.
– Queres que eu conduza um bocado?
– ‘Tá bem meu Furriel. O nosso Capitão não se
chateará?
– Não, deixa isso comigo.
À vergastada!
Quando me sentei ao volante notei que à minha frente vinha o Capitão aos
gritos com uma vergasta na mão!
– Oh pá, daqui para a frente é que é perigoso; não há
mais tropas nossas! Cuidado com a condução!
E dava uma vergastada no condutor de cada uma das
viaturas por onde passava.
Pareceu-me tão mal o que ele andava a fazer – os
homens não são nenhum rebanho – que me pus de pé em cima do banco do
condutor. Peguei na FBP e puxei a culatra atrás! A arma estava em
posição de fogo! Entretanto o Capitão foi-se aproximando da viatura onde
estávamos. Ouvi o Cabo Pombal dizer:
– Meu Furriel, veja lá o que é que vai fazer?!
O Capitão passou pela nossa viatura olhando de
través:
– Cuidado com a condução Ribau.
E seguiu para outros carros onde continuou com o
mesmo serviço.
– Se ele me fizesse o mesmo – respondi ao Pombal – eu
tinha-lhe descarregado o carregador todo no bucho!
– Pois é! E depois?
Interiormente dei razão ao Pombal. Pus a arma em
segurança e guardei-a.
Houve ordem de avançar. Começámos a andar e com o
trabalhar dos motores comecei a ficar mais descansado. Meu Deus o que eu
teria feito se o homem me tivesse agredido?! É que naquele momento eu
teria disparado mesmo! Há alturas na vida em que até nós mesmos nos
desconhecemos.
Avançávamos mais. Passámos por matas, estepes com
árvores raras, aqui e acolá saltava um animal por cima da vegetação
baixa. Terras que em Portugal seriam óptimas para cultivo, aqui eram só
mato. Junto às cubatas ainda se notavam vestígios de cultivo de
subsistência – fubá e milho – e pouco mais.
Atravessando a ponte
Chegámos ao primeiro rio. A ponte, se assim lhe poderemos chamar, era
composta por quatro grossos troncos de árvore amarrados dois a dois,
para não se desviarem quando a viatura passasse. O rio era baixo e tinha
bancos de areia junto à margem.
Primeira coisa a fazer: examinar a “ponte” por baixo,
pois podia estar minada. Desci da viatura e acerquei-me da ponte. Quando
já estava próximo, ouço um grito de cima do nosso Unimog:
– Cuidado, meu Furriel!
Olhei para a viatura e indaguei o que se passava.
Então, apontando na direcção do rio, um tropa disse:
– Um “corcodilo”!
Olhei na direcção indicada e o “dito cujo” deslizava
vagarosamente na areia onde se encontrava a tomar banhos de sol,
meteu-se na água, calmamente, como se o tivessem chateado ao
acordarem-no da sonolência em que se encontrava. Tomei mais cuidado,
desci ao rio e observei a ponte por baixo. Não vi nada de anormal.
Avançámos. Dois tropas passaram para o outro lado da ponte donde
orientavam a progressão da viatura:
– Mais para a esquerda. Agora a direito, sempre a
direito e devagar; avança, avança… pronto. Já está.
Já na outra margem avançámos um bocado para que todas
as viaturas pudessem passar e montámos segurança. Esta segurança era
muito relativa. No caso, dois homens de pé em cima do Unimog, de costas
um para o outro, tentando proteger-nos contra qualquer ataque
inesperado.
Pouco depois a coluna retomou a sua marcha. Passámos
o segundo rio cuja ponte se encontrava em muito melhor estado que a
primeira. Chegámos finalmente a Cuimba, onde iria ficar o Comando do
Batalhão e a Companhia de Comando e Serviços. Povoação indicada no mapa.
Concelho, cidade, não sei. Posto Administrativo tinha sido. Olho bem. A
povoação, meia dúzia de casas, se tanto, do tipo colonial, de
rés-do-chão, varanda a toda a volta, umas com telhado de zinco, outras
com telhado de colmo, que avançava para fora das paredes, protegendo
assim as varandas e o interior das casas do sol, que em certas épocas do
ano é tórrido.
Destino final: Pangala
Mais uma paragem. Só no dia seguinte seguiríamos para o nosso destino.
Na reunião que houve à noite soubemos, finalmente, que a Companhia 306,
a nossa, vai para Pangala. Procurei afanosamente no meu mapa. Tínhamos
de seguir pela estrada que vai de Cuimba para São Salvador do Congo
onde, mais ou menos a meio desse trajecto, virávamos à direita na
estrada para a Buela. Andaríamos mais umas horas até que apareceria na
estrada, à direita, uma casa comercial de um branco, abandonada, onde
ficaria instalado o Comando da Companhia.
Partimos no dia seguinte, bem cedo. O tipo de
paisagem era sempre o mesmo: mata e vegetação baixa. Passadas umas horas
de viagem o sol torrava-nos as costas.
Começámos a descer. Era uma descida suave mas
extensa. Ao longe viam-se árvores; mais uma mata, pensei. Só que esta
era muito verdejante, sinal de que ali devia haver água. Serviria para
lavar a cara à vontade, coisa que já não fazíamos há muito tempo. Parte
da Companhia tinha passado o riacho chamado “Cuilo” que, embora levando
muita água, permitia a passagem das viaturas sem problemas de maior. Não
foi autorizada a paragem e a companhia seguiu o seu caminho calmamente.
O primeiro ataque do IN
Sem o menor aviso, começaram a ouvir-se rajadas de metralhadora do outro
lado do riacho. A mata que ficava à nossa direita!
Cornos no chão, foi o que fizemos sem esperar
qualquer ordem. Eu tive azar porque a minha aliança ficou presa num dos
ganchos que seguram o toldo da viatura. Aflito lá consegui
desenrascar-me. Ainda não tinha chegado ao chão quando uma bala cantou –
segundo mais tarde observei – exactamente no gancho onde eu tinha ficado
preso. Tive sorte...
Respondemos àquela metralha durante algum tempo, até
que da frente veio a ordem de parar o fogo. Ficou um silêncio de morte.
Ninguém se mexia.
– Embarcar e avançar – foi a ordem ouvida.
Assim fizemos. Um de cada vez tomou cautelosamente o
seu lugar no Unimog, com a arma apontada, pronta a fazer fogo. As
viaturas avançaram e continuámos viagem. Quando o nosso carro passou
pelo riacho, uma fresquidão saborosa assaltou os nossos corpos suados.
Aqui as árvores eram altas e frondosas. Havia canas da Índia com seis ou
sete metros de altura, e um diâmetro igual ao da minha coxa. Neste sítio
a natureza foi pródiga, talvez por a zona ser pouco habitada. Faltavam
aqui os maiores destruidores da natureza, os homens!
Prosseguimos o nosso caminho. Sempre a mesma
paisagem: mata, capim, capim, mata. Hei! O que é aquilo?! Finalmente um
indício de civilização. Um sinal de aproximação de estrada sem
prioridade e os dizeres: “Gasolina Sphinx” e por baixo “Vacuun Company”,
isto no meio de uma imensidão de terreno, onde já tínhamos desistido de
encontrar qualquer sinal da dita “civilização”. Era impensável.
Aproximação de estrada sem prioridade!
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Um sinal de civilização |
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Provavelmente seria aqui o desvio para Pangala, onde iríamos ficar
aquartelados. Mas aproximação de estrada no país onde nos encontrávamos
não nos dizia muita coisa. De maneira que o melhor era ir andando e
esperando.
Pangala, finalmente...
Fomos avançando às cegas e, às tantas, lá apareceu um desvio para a
direita, por onde seguimos até ao nosso destino. Um pouco antes de
chegarmos a uma sanzala chamada Pangala, encontrámos uma casa comercial
abandonada que em tempos pertencera a um branco. Era nessa casa que iria
ficar instalado o Comando da nossa Companhia.
Tínhamos chegado ao local onde se dizia que iríamos
ficar mais ou menos um ano. Que tristeza! Que desconforto! Havia outras
Companhias que, destacadas em fazendas, tinham instalações que
comparadas com o nada que encontrámos, eram um luxo. Era preciso
construir de raiz as instalações que nos iriam acolher. O capim era
alto, quase da altura de um homem. Tivemos que começar logo a descapinar
a zona para arranjar espaço para montar as tendas já nessa noite.
A primeira obra que fizemos, foi arranjar um
“armazém” para os mantimentos. Estes não podiam estragar-se.
Depois cortámos árvores, fizemos estacas, delimitámos
o perímetro do acampamento. A área interior foi totalmente descapinada.
Ficou limpa. Uns instalaram o arame farpado, enquanto um pelotão saiu do
Aquartelamento à procura de uma nascente de água. Dela dependia a nossa
subsistência. Não havendo água, não havia comida cozinhada, não havia
café, e de ração de combate estávamos nós mais que fartos. As únicas
coisas que se lhe aproveitavam eram as latas de conserva – de chouriço
ou de sardinhas – com as quais fazíamos sandes. Mas para fazer sandes
era preciso pão e para o cozinhar era preciso água…!
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Casa de Pangala |
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Em busca de água
Chegámos a trazer dois pelotões à procura de água. O acampamento ficava
num alto, de maneira que tínhamos de procurar nas ravinas. Havia na
Companhia uns “habilidosos” que diziam que na sua terra a água se
procurava com uma varinha verde dobrada em arco. Quando houvesse água
debaixo da terra a varinha tremia. Qual quê! Nem com tremuras nem sem
elas aparecia água.
Quando o Furriel Soares, que era Regente Agrícola,
estava de serviço de segurança ao acampamento, subiu ao posto de
observação montado numa árvore cerca de cinco metros acima do solo e,
observando o horizonte, notou para nascente do acampamento uma zona mais
verde de capim. Desceu do posto de observação e, cheio de esperança,
disse ao oficial de serviço:
– Meu Alferes, vou descobrir onde podemos encontrar
água. Destaque um pelotão para vir comigo.
Disse isto com tal convicção que todos o que o ouviram se ofereceram
como voluntários.
– Calma – disse o Soares – bastam dois Unimogues e
duas secções. Tragam barris que nós vamos trazer água.
Ouvi esta conversa e perguntei ao Soares:
– Andaste a beber?
– Não mas vou beber ainda hoje ÁGUA à vontade!
– Deus te ouça – respondi.
Foram o Furriel Soares e o Furriel Blica, cada um na sua viatura e um
jipe com atrelado, onde levava os barris vazios para trazer cheios de
água. “Que fé!”, pensei. Oxalá tenham sorte.
Passadas umas horas vimos aparecer as viaturas,
aproximando-se devagar. Chegados ao acampamento, disseram onde tinham
encontrado a água, numa ravina muito funda, e com a ajuda do guincho da
viatura tinham arrastado os barris até cá acima. Era difícil; os barris
podiam partir-se. Logo ali se resolveu fazer uma espécie de padiola, um
trenó, que arrastaria pelo chão evitando assim que os barris se
danificassem.
– Eu faço, meu Furriel, – disse o Cabo Barriguinha,
carpinteiro de profissão – amanhã vou aparelhar madeira para isso.
No dia seguinte, ao fim da tarde, a padiola estava pronta a ser
utilizada.
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Abastecimento de Água |
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Escriturário promovido a electricista
Deixámos de nos preocupar com a água e começámos a pensar na segurança
do acampamento. Havia que montar o resto do arame farpado e fazer a
instalação eléctrica nos postes onde estava o arame com as lâmpadas
voltadas para fora. Era necessário montar o fio eléctrico nos postes o
que foi prontamente feito. De seguida era necessário fazer os
projectores (uma espécie de chapéu chinês feito em chapa, em cujo
vértice se abria um buraco por onde entrava o suporte da lâmpada) para
cada lâmpada. Era. Tudo foi feito e instalado com a ajuda e boa vontade
da malta. Chegou a altura de fazer as ligações. Eu, que estava
encarregado de passar os cabos e fazer o resto, não percebia nada de
electricidade. Não queria fazer asneiras, e porque havia na Companhia um
técnico especializado – o Furriel Gastão – dirigi-me ao Capitão
confessando a minha ignorância em ligações eléctricas. Sugeri que fosse
o Gastão, técnico-electricista, a fazê-las, o que evitaria problemas
futuros. A resposta não se fez esperar: “Não!”O encarregado do serviço
era eu e portanto eu é que teria de fazer as ligações. O Gastão
continuaria com o serviço que lhe tinha sido destinado, abrir um abrigo
para a metralhadora “Breda”, que enfiava na estrada que vinha de Buela e
eu, empregado de escritório, teria que fazer as ligações eléctricas!
Coisas da tropa...
Apreensivo chamei o pessoal “electricista”, expliquei
o que se passava, e logo um homem que já tinha trabalhado em
electricidade disse que não ia haver problemas, que faria as ligações.
Só precisava de quem o ajudasse a segurar o escadote e que lhe passassem
os materiais. Assim foi; as ligações foram feitas, as lâmpadas
atarraxadas nos suportes. Só faltava a ligação da instalação ao gerador,
para ver se ele tinha força para aguentar com aquilo. Ligado o gerador
na presença do Capitão, após ter sido foi feita a ligação à rede de
segurança (mesmo sendo de dia, era necessário ver se funcionava). As
lâmpadas eram tão fraquinhas que a luz mal se via, mesmo estando todas
acesas!
O Capitão sentenciou:
– Estás a ver pá, eu sabia que tu conseguias! Agora o
Gastão é que vai fazer a instalação da casa do Comando. Chamem-no para
vir ter comigo.
Na casa do Comando estavam instalados a messe dos
oficiais, os quartos dos oficiais, a enfermaria e a secretaria. O Gastão
apareceu todo suado, e recebeu ordem para no dia seguinte dar início aos
trabalhos.
Construção do acampamento
Por todo o acampamento viam-se enormes quantidades de adobes feitos do
barro da própria terra que, depois de amassado, era colocado em formas e
ficava a secar ao sol. Depois de secos eram empilhados até serem
utilizados na construção das casernas. E nova remessa era amassada,
metida nas formas e seca. A cena repetia-se.
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Construção de mais uma caserna. Ao fundo, o forno, sem o qual não seria
possível sobreviver. |
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As operações de reconhecimento e as emboscadas começaram, sem que
parasse a construção do acampamento. Embora duro, tinha que ser assim.
Os soldados dormiam no chão das tendas e os sargentos na tenda da
enfermaria. Como havia melhores instalações para a enfermaria na casa do
Comando, foi-nos distribuída esta tenda, onde dormíamos no chão em cima
de um colchão, por baixo do qual colocávamos tábuas para que não
apodrecesse!
São Salvador do Congo
Além de tudo isto havia ainda o abastecimento, que era necessário ir
buscar a São Salvador do Congo. Era mais um pelotão destacado para a
segurança dessas viaturas. Havia uma escala para desempenhar esse
serviço. Sempre se via outras gentes. Parávamos por vezes na Companhia
nossa vizinha, pertencente ao Batalhão do Spínola. Dois dedos de
conversa, e sempre um pedido de informação: “Como está o caminho para a
frente?
Seguíamos viagem e chegávamos ao nosso destino. O
Vagomestre – Furriel Cura – ia tratar do abastecimento, depois de se
marcar a hora de regresso. Quanto mais cedo melhor, pois nunca sabíamos
o que nos podia esperar no caminho; uma avaria numa viatura, uma
emboscada, ou qualquer outro azar, que atrasasse a chegada ao
acampamento.
A tropa de segurança podia então passear pela cidade,
dar umas voltas, beber uma bebida fresca. Nunca fomos autorizados a
visitar a sanzala que ficava junto à cidade, do lado-de-lá da pista de
aviação, onde havia as “minina” mas onde podia haver “makas”.
O “Nord-Atlas” – a quem nós chamávamos, pelo seu
feitio, “Barriga de Ginguba” – avião que transportava de tudo, desde
farinha, batata, carne fresca, etc., etc., aterrava finalmente. Agora o
Vagomestre já podia aviar-se.
Fotografias
Os meus rolos fotográficos, o papel para fotografia, os reveladores e
fixadores tinham acabado. Só os podia arranjar numa casa comercial de
São Salvador, que vendia de tudo. Teria de me deslocar lá na próxima
coluna que fosse à cidade.
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À direita na foto o “Comércio” onde o autor comprava os artigos para
fotografia.
(A casa Salvador Beltrão) |
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Regressámos com as GMC a abarrotar de comida, cerveja e 7Up, bebidas
refrescantes. A cantina já havia sido montada na casa do Comando. Lá
estava o tão desejado frigorífico, sempre cheio de bebidas frescas! Como
só havia electricidade parte da noite, o frigorífico era alimentado a
petróleo.
A chegada ao acampamento era um descanso para quem
vinha da “rua”. E para quem estava! Só nessa altura conseguíamos
descontrair. O espírito de equipa quer a nível de pelotão quer a nível
de Companhia era tal que quando um indivíduo era ferido parece que todos
sentiam essa dor.
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Única foto aérea do
nosso acampamento (Companhia 306). Foi tirada pelo Alferes
Miranda, durante um reconhecimento aéreo. É uma
imagem ténue como a ideia que agora fazemos
daquele local. |
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“Sete Up”
Descarregadas as viaturas, o Bifanas acerca-se de mim:
– É meu Furriel, estou cheio de sede; não me paga uma sete up”?
– O quê? Uma “sete up”, o que é isso?!
– “Atão” o meu Furriel não sabe?
Olhei-o desconfiado!
– É aquela garrafa verde.
Era uma garrafa de 7Up...
– Ó pá – respondo – aquilo é seven-up!
– Ó meu Furriel não goze comigo, eu sei muito bem ler: sete+up é “sete
up”!
– Pronto, está bem. Manda vir duas que eu pago.
A conversa com o pó do caminho também me tinha secado a garganta… E lá
bebemos uma “sete up” cada um.
O jantar costumava ser cedo, ainda com a luz do sol. Nesse dia era
dobradinha brasileira com feijão branco. Estava apetitosa. Confesso que
tivemos sorte com o cozinheiro da Companhia. Era um profissional que,
antes de ser tropa, trabalhava na casa de uma família abastada da Linha
do Estoril. Bom cozinheiro, e, como era necessário naquelas paragens,
cheio de imaginação. Arroz ou feijão, eram feitos de mil maneiras. O
Comandante da Companhia delirava com os cozinhados do Zé Cozinheiro!
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