Chegada a Luanda
Atracámos em Luanda no dia 12 de Maio de 1962. Soube
que era esse dia porque, no dia seguinte, e em qualquer sítio da cidade
por onde passássemos se ouviam na rádio as cerimónias de Fátima. Todos
os estabelecimentos públicos tinham os rádios em altos brados, para que
ouvíssemos. Seria o modo de nos darem as boas vindas, para que nos
sentíssemos como no “Puto”?
Tínhamos aprendido no curso de operações especiais
algumas noções sobre a acção psicossocial que teríamos de aplicar sobre
as populações locais. Afinal essa acção estava naquele preciso momento a
ser aplicada a nós próprios!
Embarcámos em viaturas militares. Atravessámos a
cidade de Luanda na direcção do campo militar do Grafanil, onde ficavam
as tropas até serem transportadas para as zonas que lhes tinham sido
destinadas no mato. Ficámos ali estacionados cerca de um mês. Havia
instrução militar diariamente, embora fosse ligeira e por vezes
agradável, pois era ministrada na ilha de Luanda, um lugar paradisíaco,
onde dávamos aulas de natação aos militares que não sabiam nadar, além
de outras actividades, como tomar banhos de sol…
A primeira noite passada no Grafanil foi para
esquecer. Nunca vi, nem senti, tanto mosquito a morder-me, muito embora
o mosquiteiro estivesse bem instalado. Bastava uma pessoa virar-se na
cama e um braço ficar encostado à rede do mosquiteiro, para vir uma
esquadrilha de mosquitos atacar-nos. No dia seguinte todo o Batalhão
estava com menos uns litros de sangue e com mais uns milhares de
inchaços por todo o corpo. Noite horrível!
Como tinha um irmão a prestar serviço militar na PM de Luanda, resolvi
ir visitá-lo. Ele tinha uma casa, onde comia quando não estava de
serviço. Encontrei-o, ia ele já a caminho do Grafanil de bicicleta –
tinha comprado uma bicicleta de corrida. Parámos a viatura e ele
disse-me onde morava.
– Quando chegares a uma serração de madeiras que fica
à direita da estrada, esperas aí por mim. Eu vou já lá ter contigo.
Assim fiz. Desci da viatura e aguardei, desconfiado
com tudo. Ia olhando para o que me rodeava. Na estrada, mais adiante, à
esquerda, ficava o cemitério de Luanda, rodeado por muros altos. Pensei
na incongruência dos muros nos cemitérios: para que servem? Quem está de
fora não quer entrar e quem está dentro não pode sair!
Por detrás da serração ficava um bairro, não muito
novo, mas de “cara lavada”. Vim a saber mais tarde que esse bairro se
chamava “Terra Nova”. Fiquei admirado por ser habitado por pretos e
brancos, contrariando assim tudo aquilo que tinha ouvido na metrópole.
Passavam por mim dezenas e dezenas de mulheres negras com trouxas de
roupa à cabeça. Passavam homens, brancos e pretos, com certeza a caminho
de casa. Olho para o relógio. Passava das 18h00 horas. Devem ter saído
do trabalho, pensei.
Até que chegou o meu irmão:
– Vou-te apresentar à Dona Anunciação e ao Sr. Nero,
que são o casal dono da casa onde eu como.
Terminadas as apresentações, o meu irmão foi entrar
de serviço e eu fiquei a conversar com o Sr. Nero, sobre o ambiente que
se vivia em Angola, como tinham começado as “makas” em 1961. Fiquei a
saber que ele era técnico electricista numa companhia petrolífera, que
tinha um filho já casado; um irmão dele vivia juntamente com eles – o
Sr. Silva – tinha uma mota BSA, mais antiga que o rascunho do “Antigo
Testamento”, e uma barriga que devia levar uns cinco litros de cerveja.
O Sr. Nero albergava ainda um rapaz chamado José, que era distribuidor
de gás em Luanda.
"Mata-bicho"
Como lhes tinha contado a história dos mosquitos, convidaram-me a dormir
em sua casa. Era tarde, e quando já nos íamos para deitar a Dona
Anunciação perguntou-me:
– O Ângelo costuma “matar o bicho” de manhã?
– Não, respondi-lhe; não costumo tomar “mata-bicho”,
muito obrigado!
Maldita hora em que dei esta resposta. Eu não sabia
que, em Angola, mata-bicho era o nome que davam ao pequeno-almoço.
Fiquei sem comer até ao meio-dia!
O tempo ia passando até que chegou a ordem de avançar para o “Norte”,
para onde iríamos passar a maior parte do tempo. Não sabíamos para onde
íamos, embora interrogássemos os Comandantes de pelotão, a resposta era
sempre a mesma: para o “Norte”!
Eu tinha comprado um mapa das estradas de Angola, que
consultava quando nos disseram que íamos para o “Norte”. Falei sobre
isto com o Sr. Nero, que me disse: tens duas hipóteses:
1ª – Vais para os Dembos; já ouviste falar? É a zona
das fazendas do café. Foi aí que em 1961 houve as maiores “makas”. Onde
os turras mataram muitos brancos e mesmo pretos fiéis aos brancos.
Fazenda Tentativa, São José de Encoje e tantas outras. Povoações como
Vista Alegre, Úcua e especialmente Nambuangongo, foram onde os
terroristas tinham montado a sua sede até terem sido escorraçados pelas
nossas tropas.
2ª – Vais para a zona da fronteira com o Congo –
República Democrática do Congo – mesmo lá no Norte e é donde vêm os
terroristas.
Fiquei assim a saber, depois de consultar o meu mapa,
que se ao sair do Grafanil virássemos à esquerda íamos para a região dos
Dembos, se virássemos à direita iríamos, com certeza, para a fronteira
Norte. “Das duas opções venha o diabo e escolha”, pensei!
Bom, bom, era ficar numa repartição com “ar condicionado”, em
Luanda. Mas eu tinha sido treinado para outro fim. Não era filho de
nenhum General! Tinha sido treinado para passar sede, fome se fosse
necessário e, pior ainda, para quando tivesse de enfrentar o IN ter
a certeza de que não haveria alternativa: ou ele ou eu! Foi esta
certeza que incutimos também nos nossos comandados. Num momento
daqueles não pode haver hesitações, porque podemos não ficar cá para
contar como foi. |
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Ângelo Ribau
Teixeira, em 14 de Maio de 1962, no Grafanil, junto do embondeiro
com a capela esculpida no tronco.
Grafanil |
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