O local destinado
à despensa, sempre meio vazio, era dormitório preferido do Zarolho, o
gato das traseiras que, coitadinho, ("coitadinho" digo-o eu, pois a Sr.ª
Colette nunca faria juízos deste tipo), fora enjeitado pela progenitora,
justamente por ter nascido com um olhito vesgo e focinhito à banda.
Embora sem grandes virtuosismos e efusões, a Sr.ª Colette afeiçoara-se
ao Zarolho e o bicho retribuía da mesma maneira a normalidade e a
tranquilidade com que aquela humana o aceitara.
Um dia, a Sr.ª
Colette pintou muito os lábios, como de costume. Deu duas voltas à
chave, como de costume. Quase no final da escadaria de madeira, o salto
do sapato enfia-se-Ihe por uma frincha carcomida do degrau, que
entretanto até andava sempre em reparação. Não fora o apoio do corrimão,
também ele já decrépito, a senhora bem poderia ter-se estatelado ali
toda. Tremelicando, a Sr.ª Colette lá carregou de novo a cruz daquele
escadório, apodrecido, íngreme e escuro, dando consigo a regatear, num
solilóquio pouco habitual, com o salto partido na mão, «o que isso lhe
iria custar, o sapateiro que era um explorador e tudo!, pensa ele que
pode levar assim o que lhe apetece! Vale mais comprar um par de sapatos
novos, vai-se ali aos chineses, ah pois vai!»
Bom, isto é só
para verem como um pequeno percalço como este servia para pôr a Sr.ª
Colette a funcionar de novo, a ralar-se, a implicar, a conjecturar, a
agir. Sim, porque a Sr.ª Colette, bem vistas as coisas, apenas existia.
Se ao menos se apegasse à Igreja, como a maior parte das suas vizinhas,
mas não, a Sr.ª Colette não ia muito com a cara dos padres, as doutrinas
pareciam-lhe apenas histórias, as catequistas, as beatas, os jovens
cantores, os leigos, todos eles formavam uma espécie de "artistas da
religião", uns profissionais, outros amadores, mas todos canastrões. Uma
vez, ainda entrou numa coisa qualquer ligada aos evangélicos, mas achou
aquilo tudo um bocado sinistro, com aquela gente toda asseada a olhar
para ela com olhos glutões, cheios de boa vontade. Perturbou-se de tal
modo que mal pôde esperar pelo final da cerimónia. Foi então que, Deus
lhe perdoe, decidiu retirar a imagem de Nosso Senhor da parede e,
colocando-a, embrulhadinha num pano de feltro no dito quarto da tralha,
libertou-se de uma vez por todas de todos os actos de contrição.
A Sr.ª Colette
meteu a chave na porta com a mão esquerda, (pois a direita segurava o
estupor do salto partido). Vai uma pessoa na sua vida e pronto, é assim
que elas nos acontecem, que se há-de fazer!...
A Sr.ª Colette,
por norma, andava sempre a olhar para o chão. Porém, com o salto do
sapato em riste, deu-lhe para reparar numa sineta antiga, ali mesmo, à
sua frente, pespegada no lado de fora da sua casa de toda a vida: uma
sineta sem badalo! Vejam lá! Sem badalo! Hoje em dia toca-se à
campainha, já não se agita o badalo nem se grita «ó da casa, dona
Colette, dona Colette, dona Colette!...»
Sapato sem salto,
sino sem badalo, isto 'tá lindo, sim senhor!...
Já dentro de casa,
a Sr.ª Colette foi direita à marquise, ou melhor, à espécie de marquise
que dá para o pátio das traseiras. Sentou-se a olhar para aquilo tudo,
que era quase nada, com o tempo a pairar à volta da cabeça e lá estava
aquilo tudo, aquela gaiola empenada, esburacada, inútil como todo o
resto. Se a Sr.ª Colette conseguisse, podia muito bem chorar, fazia-lhe
bem, mas ela nunca foi de choros e, assim, continuava a olhar,
circunspecta, para a gaiola que outrora fora tão bonita, que albergara
canários canoros e coloridos, autênticos "pavarotis", mas bem mais leves
e graciosos. Já ali estava pendurada ainda o Zarolho não era nascido.
Havia permanecido ali, adormecida, conformada, à mercê sabe-se lá de
quê. As grades de madeira, trôpegas, a porta que já não havia... uma
porta pequenininha. Tal qual a porta daquele amplo apartamento. Que
porta de entrada tão estreita esta minha!... Ainda bem que a Sr.ª
Colette não era — nunca foi — gorda, pois de contrário não seria fácil
entrar na sua própria casa. Para se entrar na minha casinha têm que
deixar as barrigas lá fora, cogitava, sorrindo, a Sr.ª Colette.
O porta-chaves de
plástico verde da Sr.ª Colette representava uma casa, igualmente com uma
portinha pequenina de lado: Bombeiros Voluntários de Champs d'Ouriquet,
Instituição Humanitária, tal e tal, lá estava tudo impresso.
A Sr.ª Colette
passou ali uns bons quarenta e cinco minutos, sentada, só a pensar, (ou
talvez a não pensar!), nem se lembrava há quanto tempo não se sorria nem
há quanto tempo não olhava para o ar. Foi o Zarolho quem a interpelou,
um pouco desconfiado, embora a sua condição de vesgo não o denunciasse.
Meu menino, hoje não há peixe cozido, pois não há, não, hoje temos
outros planos!... O Zarolho emitiu um miauzito, de garganta rouca. Ora
vamos lá então! Pousou finalmente o salto partido na prateleira da
despensa e foi-se a Sr.ª Colette ao quarto da tralha: arranjou
rapidamente umas flores de plástico ainda bem conservadas e limpinhas,
uns restos de oásis, umas roupas velhas mas bem alegres, a caixa da
costura, colas, uma lata de Dabrilex mais uns pincéis quase bons. Aquilo
deveria bastar. Ligou o aparelho de rádio. Rodou para a emissora mais
sintonizável e pôs-se a trabalhar: a boca da sineta sem badalo voltou-se
para cima e transformou-se num original vaso de flores. (A entrada de
uma casa é o retrato das pessoas que lá habitam!...). A gaiola esquecida
encheu-se de brilho Dabrilex, cobriu-se de lacinhos de tecido radioso,
bolinhas costuradas, recortes de perfis de passarinhos. Cheirava a novo
e ficou tudo esplendoroso. O Zarolho ganhou uns novelos e brincou como
um gatinho que nunca tivera a oportunidade de ser.
Durante umas belas
horas, a Sr.ª Colette arranjara um inesperado desígnio para continuar a
viver.
Tereza Sorel
(pseud., mas
pouco...) |