BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 

A senhora Colette

 

Era uma vez a Sr.ª Colette. A Sr.ª Colette vivia num 3° andar de um prédio quase centenário, no bairro Champs d'Ouriquet. Da Sr.ª Colette já se perdera a idade, parecendo até que teria sido sempre assim: sem idade. Ageless, apetece dizer, para fazer uso da actual linguagem mundial... (Os movies sempre servem para aprender algum inglês!...). Ageless!...

Como era antigo, cada apartamento do prédio apresentava um "pé-direito" bastante considerável, daí que se possa dizer que as três assoalhadas da Sr.ª Colette chegavam e bastavam apenas para ela. Dava-se ao luxo de ter um compartimento só para guardar a tralha, como ela costumava dizer.

A Sr.ª Colette saia pouco à rua. Não havia dinheiro para comprar qualquer coisa para além do indispensável. Fazia de vez em quando um passeiozito, por causa das articulações; de resto, achava que já vira tudo o que havia para ver e o mundo, fosse em que parte fosse, acabava por ser sempre o mesmo.

 

O local destinado à despensa, sempre meio vazio, era dormitório preferido do Zarolho, o gato das traseiras que, coitadinho, ("coitadinho" digo-o eu, pois a Sr.ª Colette nunca faria juízos deste tipo), fora enjeitado pela progenitora, justamente por ter nascido com um olhito vesgo e focinhito à banda. Embora sem grandes virtuosismos e efusões, a Sr.ª Colette afeiçoara-se ao Zarolho e o bicho retribuía da mesma maneira a normalidade e a tranquilidade com que aquela humana o aceitara.

Um dia, a Sr.ª Colette pintou muito os lábios, como de costume. Deu duas voltas à chave, como de costume. Quase no final da escadaria de madeira, o salto do sapato enfia-se-Ihe por uma frincha carcomida do degrau, que entretanto até andava sempre em reparação. Não fora o apoio do corrimão, também ele já decrépito, a senhora bem poderia ter-se estatelado ali toda. Tremelicando, a Sr.ª Colette lá carregou de novo a cruz daquele escadório, apodrecido, íngreme e escuro, dando consigo a regatear, num solilóquio pouco habitual, com o salto partido na mão, «o que isso lhe iria custar, o sapateiro que era um explorador e tudo!, pensa ele que pode levar assim o que lhe apetece! Vale mais comprar um par de sapatos novos, vai-se ali aos chineses, ah pois vai!»

Bom, isto é só para verem como um pequeno percalço como este servia para pôr a Sr.ª Colette a funcionar de novo, a ralar-se, a implicar, a conjecturar, a agir. Sim, porque a Sr.ª Colette, bem vistas as coisas, apenas existia. Se ao menos se apegasse à Igreja, como a maior parte das suas vizinhas, mas não, a Sr.ª Colette não ia muito com a cara dos padres, as doutrinas pareciam-lhe apenas histórias, as catequistas, as beatas, os jovens cantores, os leigos, todos eles formavam uma espécie de "artistas da religião", uns profissionais, outros amadores, mas todos canastrões. Uma vez, ainda entrou numa coisa qualquer ligada aos evangélicos, mas achou aquilo tudo um bocado sinistro, com aquela gente toda asseada a olhar para ela com olhos glutões, cheios de boa vontade. Perturbou-se de tal modo que mal pôde esperar pelo final da cerimónia. Foi então que, Deus lhe perdoe, decidiu retirar a imagem de Nosso Senhor da parede e, colocando-a, embrulhadinha num pano de feltro no dito quarto da tralha, libertou-se de uma vez por todas de todos os actos de contrição.

A Sr.ª Colette meteu a chave na porta com a mão esquerda, (pois a direita segurava o estupor do salto partido). Vai uma pessoa na sua vida e pronto, é assim que elas nos acontecem, que se há-de fazer!...

A Sr.ª Colette, por norma, andava sempre a olhar para o chão. Porém, com o salto do sapato em riste, deu-lhe para reparar numa sineta antiga, ali mesmo, à sua frente, pespegada no lado de fora da sua casa de toda a vida: uma sineta sem badalo! Vejam lá! Sem badalo! Hoje em dia toca-se à campainha, já não se agita o badalo nem se grita «ó da casa, dona Colette, dona Colette, dona Colette!...»

Sapato sem salto, sino sem badalo, isto 'tá lindo, sim senhor!...

Já dentro de casa, a Sr.ª Colette foi direita à marquise, ou melhor, à espécie de marquise que dá para o pátio das traseiras. Sentou-se a olhar para aquilo tudo, que era quase nada, com o tempo a pairar à volta da cabeça e lá estava aquilo tudo, aquela gaiola empenada, esburacada, inútil como todo o resto. Se a Sr.ª Colette conseguisse, podia muito bem chorar, fazia-lhe bem, mas ela nunca foi de choros e, assim, continuava a olhar, circunspecta, para a gaiola que outrora fora tão bonita, que albergara canários canoros e coloridos, autênticos "pavarotis", mas bem mais leves e graciosos. Já ali estava pendurada ainda o Zarolho não era nascido. Havia permanecido ali, adormecida, conformada, à mercê sabe-se lá de quê. As grades de madeira, trôpegas, a porta que já não havia... uma porta pequenininha. Tal qual a porta daquele amplo apartamento. Que porta de entrada tão estreita esta minha!... Ainda bem que a Sr.ª Colette não era — nunca foi — gorda, pois de contrário não seria fácil entrar na sua própria casa. Para se entrar na minha casinha têm que deixar as barrigas lá fora, cogitava, sorrindo, a Sr.ª Colette.

O porta-chaves de plástico verde da Sr.ª Colette representava uma casa, igualmente com uma portinha pequenina de lado: Bombeiros Voluntários de Champs d'Ouriquet, Instituição Humanitária, tal e tal, lá estava tudo impresso.

A Sr.ª Colette passou ali uns bons quarenta e cinco minutos, sentada, só a pensar, (ou talvez a não pensar!), nem se lembrava há quanto tempo não se sorria nem há quanto tempo não olhava para o ar. Foi o Zarolho quem a interpelou, um pouco desconfiado, embora a sua condição de vesgo não o denunciasse. Meu menino, hoje não há peixe cozido, pois não há, não, hoje temos outros planos!... O Zarolho emitiu um miauzito, de garganta rouca. Ora vamos lá então! Pousou finalmente o salto partido na prateleira da despensa e foi-se a Sr.ª Colette ao quarto da tralha: arranjou rapidamente umas flores de plástico ainda bem conservadas e limpinhas, uns restos de oásis, umas roupas velhas mas bem alegres, a caixa da costura, colas, uma lata de Dabrilex mais uns pincéis quase bons. Aquilo deveria bastar. Ligou o aparelho de rádio. Rodou para a emissora mais sintonizável e pôs-se a trabalhar: a boca da sineta sem badalo voltou-se para cima e transformou-se num original vaso de flores. (A entrada de uma casa é o retrato das pessoas que lá habitam!...). A gaiola esquecida encheu-se de brilho Dabrilex, cobriu-se de lacinhos de tecido radioso, bolinhas costuradas, recortes de perfis de passarinhos. Cheirava a novo e ficou tudo esplendoroso. O Zarolho ganhou uns novelos e brincou como um gatinho que nunca tivera a oportunidade de ser.

Durante umas belas horas, a Sr.ª Colette arranjara um inesperado desígnio para continuar a viver.

Tereza Sorel (pseud., mas pouco...)


1 - Editorial      2 - Contos tradicionais portugueses     3 - Água nossa de cada dia...
4 - Assim vai o ensino em Portugal    5 - Os cais da cidade     6 - Do Amor
7 - Acerca da poesia de Mário Beirão     8 - Clube de cidadãos   9 - Colóquio Percursos do acanto
10
- A Senhora Colette   11 - Hora do Recreio


 

Página anteriorPágina seguinte