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CENA III
MAGALHÃES, D. ADELAIDE, D. CARLOTA
D. ADE. — Bravo! está mais corada
agora!
D. CAR. — Foi do passeio.
D. ADE. — De que é que você gosta
mais, da Tijuca ou da cidade?
D. CAR. — Eu por mim, ficava metida
aqui na Tijuca.
MAG. — Não creio. Sem bailes? sem
teatro lírico?
D. CAR. — Os bailes cansam, e não
temos agora teatro lírico.
MAG. — Mas, em suma, aqui ou na
cidade, o que é preciso é que você ria; esse ar tristonho
faz-lhe a cara feia.
D. CAR. — Mas eu rio. Ainda agora não
pude deixar de rir vendo o Dr. Cavalcante.
MAG. — Por quê?
D. CAR. — Ele passava ao longe, a
cavalo, tão distraído que levava a cabeça caída entre as
orelhas do animal; ri da posição, mas lembrei-me que podia
cair e ferir-se, e estremeci toda.
MAG. — Mas não caiu?
D. CAR. — Não.
D. ADE. — Titia viu também?
D. CAR. — Mamãe ia-me falando da
Grécia, do céu da Grécia, dos monumentos da Grécia, do rei da
Grécia; toda ela é Grécia, fala como se tivesse estado na
Grécia.
D. ADE. — Você quer ir conosco para
lá?
D. CAR. — Mamãe não há-de querer.
D. ADE. — Talvez queira.
(Mostrando-lhe as gravuras do livro) Olhe que bonitas
vistas! Isto são ruínas. Aqui está uma cena de costumes. Olhe
esta rapariga com um pote...
MAG. — (à janela). Cavalcante
aí vem.
D. CAR. — Não quero vê-lo.
D. ADE. — Por quê?
D. CAR. — Agora que passou o medo,
posso rir-me lembrando a figura que ele fazia.
D. ADE. — Eu também vou. (Saem as
duas; CAVALCANTE aparece à porta, MAGALHÃES deixa a janela).
CENA IV
CAVALCANTE e MAGALHÃES
MAG. — Entra. Como passaste a noite?
CAV. — Bem. Dei um belo passeio; fui
até ao Vaticano e vi o papa. (MAGALHÃES olha espantado)
Não te assustes, não estou doido. Eis o que foi: o meu cavalo
ia para um lado e o meu espírito para outro. Eu pensava em
fazer-me frade; então todas as minhas ideias vestiram-se de
burel, e entrei a ver sobrepelizes e tochas; enfim, cheguei
a Roma, apresentei-me à porta do Vaticano e pedi para ver o
papa. No momento em que Sua Santidade apareceu, prostrei-me,
depois estremeci, despertei e vi que o meu corpo seguira atrás
do sonho, e que eu ia quase caindo.
MAG. — Foi então que a nossa prima
Carlota deu contigo ao longe.
CAV. — Também eu a vi, e, de vexado,
piquei o cavalo.
MAG. — Mas, então ainda não perdeste
essa ideia de ser frade?
CAV. — Não.
MAG. — Que paixão romanesca!
CAV. — Não, Magalhães; reconheço agora
o que vale o mundo com as suas perfídias e tempestades. Quero
achar um abrigo contra elas; esse abrigo é o claustro. Não
sairei nunca da minha cela, e buscarei esquecer diante do
altar...
MAG. — Olha que vais cair do cavalo!
CAV. — Não te rias, meu amigo!
MAG. — Não; quero só acordar-te.
Realmente, estás ficando maluco. Não penses mais em semelhante
moça. Há no mundo milhares e milhares de moças iguais à bela
Dolores.
CAV. — Milhares e milhares? Mais uma
razão para que eu me esconda em um convento. Mas é engano; há
só uma, e basta.
MAG. — Bem; não há remédio senão
entregar-te à minha tia.
CAV. — À tua tia?
MAG. — Minha tia crê que tu deves
padecer de alguma doença moral,
─
e adivinhou,
─
e fala de curar-te. Não sei se sabes que ela vive na persuasão
de que cura todas as enfermidades morais.
CAV. — Oh! eu sou incurável!
MAG. — Por isso mesmo deves
sujeitar-te aos seus remédios. Se te não curar, dar-te-á
alguma distracção. E é o que eu quero. (Abre a charuteira,
que está vazia) Olha, espera aqui, lê algum livro; eu vou
buscar charutos. (Sai; CAVALCANTE pega num livro e
senta-se).
CENA V
CAVALCANTE. D. CARLOTA, aparecendo ao fundo
D. CAR. — Primo... (Vendo
Cavalcante) Ah! perdão!
CAV. — (erguendo-se). Perdão de
quê?
D. CAR. — Cuidei que meu primo estava
aqui; vim buscar um livro de gravuras de prima Adelaide; está
aqui...
CAV. — A senhora viu-me passar a
cavalo, há uma hora, numa posição incómoda e inexplicável.
D. CAR. — Perdão, mas...
CAV. — Quero dizer-lhe que eu levava
na cabeça uma ideia séria, um negócio grave.
D. CAR. — Creio.
CAV. — Deus queira que nunca possa
entender o que era! Basta crer. Foi a distracção que me deu
aquela postura inexplicável. Na minha família quase todos são
distraídos. Um dos meus tios morreu na guerra do Paraguai, por
causa de uma distracção; era capitão de engenharia...
D. CAR. — (perturbada). Oh! não
me fale!
CAV. — Por quê? Não pode tê-lo
conhecido.
D. CAR. — Não, senhor; desculpe-me,
sou um pouco tonta. Vou levar o livro à minha prima.
CAV. — Peço-lhe perdão, mas...
D. CAR. — Passe bem. (Vai até à
porta).
CAV. — Mas, eu desejava saber...
D. CAR. — Não, não, perdoe-me.
(Sai).
CENA VI
CAV. — (só). Não compreendo;
não sei se a ofendi. Falei no tio João Pedro, que morreu no
Paraguai, antes dela nascer...
CENA VII
CAVALCANTE, D. LEOCÁDIA
D. LEO. — (ao fundo, à parte).
Está pensando. (Desce) Bom dia, Dr. Cavalcante!
CAV. — Como passou, minha senhora?
D. LEO. — Bem, obrigada. Então meu
sobrinho deixou-o aqui só?
CAV. — Foi buscar charutos, já volta.
D. LEO. — Os senhores são muito
amigos.
CAV. — Somos como dois irmãos.
D. LEO. — Magalhães é um coração de
ouro, e o senhor parece-me outro. Acho-lhe só um defeito,
doutor... Desculpe-me esta franqueza de velha; acho que o
senhor fala trocado.
CAV. — Disse-lhe ontem algumas
tolices, não?
D. LEO. — Tolices, é muito; umas
palavras sem sentido.
CAV. — Sem sentido, insensatas, vem a
dar na mesma.
D. LEO. — (pegando-lhe nas mãos).
Olhe bem para mim. (Pausa) Suspire. (CAVALCANTE
suspira) O senhor está doente; não negue que está doente,
─
moralmente, entenda-se; não negue! (Solta-lhe as mãos)
CAV. — Negar seria mentir. Sim, minha
senhora, confesso que tive um grandíssimo desgosto...
D. LEO. — Jogo de praça?
CAV. — Não, senhora.
D. LEO. — Ambições políticas
malogradas?
CAV. — Não conheço política
D. LEO. — Algum livro mal recebido
pela imprensa?
CAV. — Só escrevo cartas particulares.
D. LEO. — Não atino. Diga francamente;
eu sou médico de enfermidades morais, e posso curá-lo. Ao
médico diz-se tudo. Ande, fale, conte-me tudo, tudo, tudo. Não
se trata de amores?
CAV. — (suspirando). Trata-se
justamente de amores.
D. LEO. — Paixão grande?
CAV. — Oh! imensa!
D. LEO. — Não quero saber o nome da
pessoa, não é preciso. Naturalmente, bonita?
CAV. — Como um anjo!
D. LEO. — O coração também era de
anjo!
CAV. — Pode ser, mas de anjo mau.
D. LEO. — Uma ingrata...
CAV. — Uma perversa!
D. LEO. — Diabólica...
CAV. — Sem entranhas!
D. LEO. — Vê que estou adivinhando.
Console-se; uma criatura dessas não acha casamento.
CAV. — Já achou!
D. LEO. — Já?
CAV. — Casou, minha senhora; teve a
crueldade de casar com um primo.
D. LEO. — Os primos quase que não
nascem para outra coisa. Diga-me, não procurou esquecer o mal
nas folias próprias de rapazes?
CAV. — Oh! não! Meu único prazer é
pensar nela.
D. LEO. — Desgraçado! Assim nunca
há-de sarar.
CAV. — Vou tratar de esquecê-la.
D. LEO. — De que modo?
CAV. — De um modo velho, alguns dizem
que já obsoleto e arcaico. Penso em fazer-me frade. Há-de
haver em algum recanto do mundo um claustro em que não penetre
sol nem lua.
D. LEO. — Que ilusão! Lá mesmo achará
a sua namorada. Há-de vê-la nas paredes da cela, no tecto, no
chão, nas folhas do breviário. O silêncio far-se-á boca da
moça, a solidão será o seu corpo.
CAV. — Então estou perdido. Onde
acharei paz e esquecimento?
D. LEO. — Pode ser frade sem ficar no
convento. No seu caso o remédio naturalmente indicado é ir
pregar... na China, por exemplo. Vá pregar aos infiéis na
China. Paredes de convento são mais perigosas que olhos de
chinesas. Ande, vá pregar na China. No fim de dez anos está
curado. Volte, meta-se no convento e não achará lá o diabo.
CAV. — Está certa que na China...
D. LEO. — Certíssima.
CAV. — O seu remédio é muito amargo!
Por que é que me não manda antes para o Egipto? Também é país
de infiéis.
D. LEO. — Não serve; é a terra daquela
rainha... Como se chama?
CAV. — Cleópatra? Morreu há tantos
séculos!
D. LEO. — Meu marido disse que era uma
desmiolada.
CAV. — Seu marido era, talvez, um
erudito. Minha senhora, não se aprende amor nos livros velhos,
mas nos olhos bonitos; por isso estou certo de que ele adorava
a V. Exª.
D. LEO. — Ah! ah! Já o doente começa a
adular o médico. Não, senhor, há-de ir à China. Lá há mais
livros velhos que olhos bonitos. Ou não tem confiança em mim?
CAV. — Oh! tenho, tenho. Mas ao doente
é permitido fazer uma careta antes de engolir a pílula.
Obedeço; vou para a China. Dez anos, não?
D. LEO. — (levanta-se). Dez ou
quinze, se quiser; mas antes dos quinze está curado.
CAV. — Vou.
D. LEO. — Muito bem. A sua doença é
tal que só com remédios fortes. Vá; dez anos passam depressa.
CAV. — Obrigado, minha senhora.
D. LEO. — Até logo.
CAV. — Não, minha senhora, vou já.
D. LEO. — Já para a China!
CAV. — Vou arranjar as malas, e amanhã
embarco para a Europa; vou a Roma, depois sigo imediatamente
para a China. Até daqui a dez anos. (Estende-lhe a mão).
D. LEO. — Fique ainda uns dias...
CAV. — Não posso.
D. LEO. — Gosto de ver essa pressa;
mas, enfim, pode esperar ainda uma semana.
CAV. — Não, não devo esperar. Quero ir
às pílulas, quanto antes; é preciso obedecer religiosamente ao
médico.
D. LEO. — Como eu gosto de ver um
doente assim! O senhor tem fé no médico. O pior é que daqui a
pouco, talvez, não se lembre dele.
CAV. — Oh! não! Hei-de lembrar-me
sempre, sempre!
D. LEO. — No fim de dois anos
escreva-me; informe-me sobre o seu estado, e talvez eu o faça
voltar. Mas, não minta, olhe lá; se já tiver esquecido a
namorada, consentirei que volte.
CAV. — Obrigado. Vou ter com seu
sobrinho, e depois vou arranjar as malas.
D. LEO. — Então não volta mais a esta
casa?
CAV. — Virei daqui a pouco, uma visita
de dez minutos, e depois desço, vou tomar passagem no paquete
de amanhã.
D. LEO. — Jante, ao menos, conosco.
CAV. — Janto na cidade.
D. LEO. — Bem, adeus; guardemos o
nosso segredo. Adeus, Dr. Cavalcante. Creia-me: o senhor
merece estar doente. Há pessoas que adoecem sem merecimento
nenhum; ao contrário, não merecem outra coisa mais que uma
saúde de ferro. O senhor nasceu para adoecer; que obediência
ao médico! que facilidade em engolir todas as nossas pílulas!
Adeus!
CAV. — Adeus, D. Leocádia. (Sai
pelo fundo).
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