Machado de Assis, Não consultes o médico. (NOTA)

Não consultes o médico

PERSONAGENS

D. LEOCÁDIA            D. ADELAIDE
D. CARLOTA              CAVALCANTE
MAGALHÃES

Um gabinete em casa de Magalhães, na Tijuca.

 

CENA PRIMEIRA

MAGALHÃES, ADELAIDE

(MAGALHÃES lê um livro. D. ADELAIDE folheia um livro de gravuras)

 

            MAG. —   Esta gente não terá vindo?

            D. ADE. —   Parece que não. Já saíram há um bom pedaço; felizmente o dia está fresco. Titia estava tão contente ao almoço! E ontem? Você viu que risadas que ela dava, ao jantar, ouvindo o Dr. Cavalcante? E o Cavalcante sério. Meu Deus, que homem triste! que cara de defunto!

            MAG. —   Coitado do Cavalcante! Mas que quererá ela comigo? Falou-me em um obséquio.

            D. ADE. —   Sei o que é.

            MAG. —   Que é?

            D. ADE. —   Por ora é segredo. Titia quer que levemos Carlota conosco.

            MAG. —   Para a Grécia?

            D. ADE. —   Sim, para a Grécia!

            MAG. —   Talvez ela pense que a Grécia é em Paris. Eu aceitei a legação de Atenas porque não me dava bem em Guatemala e não há outra vaga na América. Nem é só por isso; você tem vontade de ir acabar a lua de mel na Europa... Mas então Carlota vai ficar conosco?

            D. ADE. —   É só algum tempo. Carlota gostava muito de um tal Rodrigues, capitão de engenharia, que casou com uma viúva espanhola. Sofreu muito, e ainda agora anda meia triste; titia diz que há-de curá-la.

            MAG. —   (rindo). É a mania dela.

            D. ADE. —   (rindo). Só cura moléstias morais.

            MAG. —   A verdade é que nos curou; mas, por muito que lhe paguemos em gratidão, fala-nos sempre da nossa antiga moléstia. "Como vão os meus doentezinhos? Não é verdade que estão curados?"

            D. ADE. —   Pois falemos-lhe nós da cura, para lhe dar gosto. Agora quer curar a filha.

            MAG. —   Do mesmo modo?

            D. ADE. —   Por ora não. Quer mandá-la à Grécia para que ela esqueça o capitão de engenharia.

            MAG. —   Mas, em qualquer parte se esquece um capitão de engenharia.

            D. ADE. —   Titia pensa que a vista das ruínas e dos costumes diferentes cura mais depressa. Carlota está com dezoito para dezanove anos; titia não a quer casar antes dos vinte. Desconfio que já traz um noivo em mente, um moço que não é feio, mas tem o olhar espantado.

            MAG. —   É um desarranjo para nós; mas, enfim, pode ser que lhe achemos lá na Grécia algum descendente de Alcibíades que a preserve do olhar espantado.

            D. ADE. —   Ouço passos. Há-de ser titia...

            MAG. —   Justamente! Continuemos a estudar a Grécia. (Sentam-se outra vez, MAGALHÃES lendo, D. ADELAIDE folheando o livro de vistas).

 

CENA II

Os MESMOS e D. LEOCÁDIA

 

            D. LEO. —   (pára à porta, desce pé ante pé, e mete a cabeça entre os dois). Como vão os meus doentezinhos? Não é verdade que estão curados?

            MAG. —   (à parte). É isto todos os dias.

            D. LEO. —   Agora estudam a Grécia; fazem muito bem. O país do casamento é que vocês não precisaram estudar.

            D. ADE. —   A senhora foi a nossa geografia, foi quem nos deu as primeiras lições.

            D. LEO. —   Não diga lições, diga remédios. Eu sou doutora, eu sou médica. Este (indicando MAGALHÃES), quando voltou da Guatemala, tinha um ar esquisito; perguntei-lhe se queria ser deputado, disse-me que não; observei-lhe o nariz, e vi que era um triste nariz solitário...

            MAG. —   Já me disse isto cem vezes.

            D. LEO. —   (voltando-se para ele e continuando). Esta (designando ADELAIDE) andava hipocondríaca. O médico da casa receitava pílulas, cápsulas, uma porção de tolices que ela não tomava, porque eu não deixava; o médico devia ser eu.

            D. ADE. —   Foi uma felicidade. Que é que se ganha em engolir pílulas?

            D. LEO. —   Apanham-se moléstias.

            D. ADE. —   Uma tarde, fitando eu os olhos de Magalhães...

            D. LEO. —   Perdão, o nariz.

            D. ADE. —   Vá lá. A senhora disse-me que ele tinha o nariz bonito, mas muito solitário. Não entendi; dois dias depois, perguntou-me se queria casar, eu não sei que disse, e acabei casando.

            D. LEO. —   Não é verdade que estão curados?

            MAG. —   Perfeitamente.

            D. LEO. —   A propósito, como irá o Dr. Cavalcante? Que esquisitão! Disse-me ontem que a coisa mais alegre do mundo era um cemitério. Perguntei-lhe se gostava aqui da Tijuca, respondeu-me que sim, e que o Rio de Janeiro era uma grande cidade. "É a segunda vez que a vejo, disse ele; eu sou do Norte. É uma grande cidade, José Bonifácio é um grande homem, a Rua do Ouvidor um poema, o chafariz da Carioca um belo chafariz, o Corcovado, o gigante de pedra, Gonçalves Dias, os Timbiras, o Maranhão..." Embrulhava tudo a tal ponto que me fez rir. Ele é doido?

            MAG. —   Não.

            D. LEO. —   A princípio, cuidei que era. Mas o melhor foi quando se serviu o peru. Perguntei-lhe que tal achava o peru. Ficou pálido, deixou cair o garfo, fechou os olhos e não me respondeu. Eu ia chamar a atenção de vocês, quando ele abriu os olhos e disse com voz surda: "D. Leocádia, eu não conheço o Peru..." Eu, espantada, perguntei: "Pois não está comendo?..." "Não falo desta pobre ave; falo-lhe da república".

            MAG. —   Pois conhece a república.

            D. LEO. —   Então mentiu.

            MAG. —   Não, porque nunca lá foi.

            D. LEO. —   (a D. ADELAIDE). Mau! seu marido parece que também está virando o juízo. (A MAGALHÃES) Conhece então o Peru, como vocês estão conhecendo a Grécia... pelos livros.

            MAG. —   Também não.

            D. LEO. —   Pelos homens?

            MAG. —   Não, senhora.

            D. LEO. —   Então pelas mulheres?

            MAG. —   Nem pelas mulheres.

            D. LEO. —   Por uma mulher?

            MAG. —   Por uma mocinha, filha do ministro do Peru em Guatemala. Já contei a história a Adelaide. (D. ADELAIDE senta-se folheando o livro de gravuras).

            D. LEO. —   (senta-se). Ouçamos a história. É curta?

            MAG. —   Quatro palavras. Cavalcante estava em comissão do nosso governo, e frequentava o corpo diplomático, onde era muito bem visto. Realmente, não se podia achar criatura mais dada, mais expansiva, mais estimável. Um dia começou a gostar da peruana. A peruana era bela e alta, com uns olhos admiráveis. Cavalcante, dentro de pouco, estava doido por ela, não pensava em mais nada, não falava de outra pessoa. Quando a via ficava extático. Se ela gostava dele, não sei; é certo que o animava, e já se falava em casamento. Puro engano! Dolores voltou para o Peru, onde casou com um primo, segundo me escreveu o pai.

            D. LEO. —   Ele ficou desconsolado, naturalmente.

            MAG. —   Ah! não me fale! Quis matar-se; pude impedir esse acto de desespero, e o desespero desfez-se em lágrimas. Caiu doente, uma febre que quase o levou. Pediu dispensa da comissão, e, como eu tinha obtido seis meses de licença, voltamos juntos. Não imagina o abatimento em que ficou, a tristeza profunda; chegou a ter as ideias baralhadas. Ainda agora, diz alguns disparates, mas emenda-se logo e ri de si mesmo.

            D. LEO. —   Quer que lhe diga? Já ontem suspeitei que era negócio de amores; achei-lhe um riso amargo... Terá bom coração?

            MAG. —   Coração de ouro.

            D. LEO. —   Espírito elevado?

            MAG. —   Sim, senhora.

            D. LEO. —   Espírito elevado, coração de ouro, saudades... Está entendido.

            MAG. —   Entendido o quê?

            D. LEO. —   Vou curar o seu amigo Cavalcante. De que é que vocês se espantam?

            D. ADE. —   De nada.

            MAG. —   De nada, mas...

            D. LEO. —   Mas quê?

            MAG. —   Parece-me...

            D. LEO. —   Não parece nada; vocês são uns ingratos. Pois se confessam que eu curei o nariz de um e a hipocondria do outro, como é que põem em dúvida que eu possa curar a maluquice do Cavalcante? Vou curá-lo. Ele virá hoje?

            D. ADE. —   Não vem todos os dias; às vezes passa-se uma semana.

            MAG. —   Mora perto daqui; vou escrever-lhe que venha, e, quando chegar, dir-lhe-ei que a senhora é o maior médico do século; cura o moral... Mas, minha tia, devo avisá-la de uma coisa; não lhe fale em casamento.

            D. LEO. —   Oh! não!

            MAG. —   Fica furioso quando lhe falam em casamento; responde que só se há-de casar com a morte. A senhora exponha-lhe...

            D. LEO. —   Ora, meu sobrinho, vá ensinar o padre-nosso ao vigário. Eu sei o que ele precisa, mas quero estudar primeiro o docente e a doença. Já volto.

            MAG. —   Não lhe diga que eu é que lhe contei o caso da peruana...

            D. LEO. —   Pois se eu mesma adivinhei que ele sofria do coração. (Sai; entra CARLOTA).

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NOTA - Esta peça apareceu em Relíquias de Casa Velha, H. Garnier, Rio, 1906, e foi incluída em Páginas Recolhidas, H. Garnier, Rio, 1899.

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15-03-2006