Ao quebrar da
onda
Em homenagem ao Arrais Gabriel Ançã
ASSIM a
modos como onda que tivesse quebrado, desfazendo-se numa
catedral de espuma de neve de encontro ao areal doiradinho da
Costa-Nova do Prado em dia de sol de brasa, acaba de dar o
último alento o peito valente do Arrais Gabriel Ançã.
Hoje à
tarde, quando o meu espírito se espreguiçava dolentemente
embebido numa bruma cinzenta que cobria este céu lindo da
Coimbra feiticeira, os meus olhos que se transportavam ao
abandono por de cima das colunas de um diário de Lisboa, foram
chamados a afixar-se sobre a notícia da morte do velho herói
que a terra santinha dos Ílhavos — santinha por ser de bravos
que têm um coração branquinho — viu nascer ao murmúrio do
pater-noster das ondas.
Como disse,
uma bruma cinzenta cobria o céu — assim a modos como na
Costa-Nova do Sonho em dia de serração, quando os
telhados vermelhos da Gafanha se não enxergam da banda de
lá — como se o céu tivesse posto carranca dura — luto
pesado — pela morte do velhinho que foi Herói.
E a esta
hora juntinhas ao areal das praias de Portugal, as ondas
verdes do mar, estão por certo a lacrimejar e a soluçar como
velhinhos de olhos da cor das águas dos lagos em dia de céu
azul, a morte do maior rival dos seus braços de bronze.
O Mar fará
dos seus rugidos uma outra Marcha Fúnebre de Chopin, para a
sua voz cantar em apoteose ao Bravo, e o Vento há-de sibilar
Odes de Silêncio, Orações de Dor por alminha do
Lobo-do-Mar que a estas horas Jaz de semblante sereno debaixo
da mão direita de Deus Omnipotente.
O Arrais
morreu assim como se uma onda se tivesse estilhaçado de
encontro a uma penedia escarpada, como se uma estátua de
bronze tivesse rolado pelo flanco de uma montanha, lascando a
pedra e amolgando as feições, como um soluçar a dobre de
finados — não no som enfermo de sinetazinha de aldeia em dia
de Fiéis Defuntos — mas em avalanche de som no sino
pesado de Catedral.
***
Eu não
encarei a morte do Arrais com a preguiça com que olho a morte
de um jovem tísico, ou de costureirinha que se envenenou por
amor. Nada disso! Encarei a Morte do Herói com o coração a
badalar no peito, e com a alma a transbordar de entusiasmo
pela sua obra de abnegação. É que a morte presta-se para
recordar!
E encarar a
morte do Herói com soluços é ir ofender o valor de quem soube
ser forte, de quem teve um coração para sentir, mas uma
têmpera rija e salgada que sabia vencer.
Por Deus!
Em cima do ataúde do Arrais haja valor! Nada de lágrimas. Em
cima da tampa negra que lhe cobre a carcaça uma oração de
homenagem.
Só as Vagas
têm direito a chorar, só o Mar foi seu verdadeiro amigo —
apesar de ser o seu autêntico rival.
Que chorem
pois os Vencidos, que as lágrimas dos vencidos são as mais
eloquentes e as que traduzem mais sinceridade.
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E no
entanto eu estou a ver a fisionomia encarquilhada do Arrais, a
sua face pregadinha de rugas, rugas profundas — baralhada
confusa que semelhava a crista de uma vaga em dia de
Mar-ruim — perdido o jogo da fisionomia que lhe dava
expressão, jazendo inerte na almofadita branca de cetim, em
que repousa a sua cabeça que o ambiente da maresia tostara,
dando aos seus cabelos um tom doirado.
E no
entanto, meus senhores, eu estou a ver aquela boca que me
acostumara a ver morder o cachimbo, inerte, rouxa, sem vida, e
a sentir parada aquela voz cavernosa — voz de oceano — que a
gente ouve em menino pequenino quando encosta o ouvido à boca
de um búzio.
***
Jamais os
raios vermelhos do sol poente pintarão de zarcão a sua máscara
pregadinha de sulcos, jamais a poalha salgada que as ondas
pulverizam tornarão a acariciar aquele semblante severo de
pescador... nem as proas esguias e maneirinhas dos seus barcos
do mar, lançarão sobre o seu corpo de Herói pinceladas de
sombra...
Os seus
olhos embaciados pelo salitre das ondas que ofusca, não
tornarão a alongar-se pelo Mar além, nem as suas mãos rijas de
calos — que me enchiam de orgulho quando apertavam os meus
dedos — tornarão a tecer redes doiradas para arrancar o pão às
garras do Mar.
A sua
silhouette de barrete encravado na cabeça, não tornará a
espreitar a réstia do soalheiro por detrás das
recoletas, nem as suas mãos se tornarão a esconder à
revessa dos palheiros do sul a encher a cachimbada, que
daí a pouco fumegava farrapos azuis que se perdiam na
atmosfera doirada da sua querida Costa Nova do Prado...
O Arrais
Ançã morreu como se uma onda tivesse vindo despedaçar-se de
encontro à areia doirada da praia e tivesse depois morrido
serenamente rendilhando espuma de Jaspe...
Coimbra, 24
de Fevereiro de 1930.
Frederico de Moura
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