Frederico de Moura, Ao quebrar da onda, in: "Beira-Mar", n.º 434, 9 de Março de 1930, pág. 3.

 

Ao quebrar da onda

Em homenagem ao Arrais Gabriel Ançã

 

ASSIM a modos como onda que tivesse quebrado, desfazendo-se numa catedral de espuma de neve de encontro ao areal doiradinho da Costa-Nova do Prado em dia de sol de brasa, acaba de dar o último alento o peito valente do Arrais Gabriel Ançã.

Hoje à tarde, quando o meu espírito se espreguiçava dolentemente embebido numa bruma cinzenta que cobria este céu lindo da Coimbra feiticeira, os meus olhos que se transportavam ao abandono por de cima das colunas de um diário de Lisboa, foram chamados a afixar-se sobre a notícia da morte do velho herói que a terra santinha dos Ílhavos — santinha por ser de bravos que têm um coração branquinho — viu nascer ao murmúrio do pater-noster das ondas.

Como disse, uma bruma cinzenta cobria o céu — assim a modos como na Costa-Nova do Sonho em dia de serração, quando os telhados vermelhos da Gafanha se não enxergam da banda de lá — como se o céu tivesse posto carranca dura — luto pesado —  pela morte do velhinho que foi Herói.

E a esta hora juntinhas ao areal das praias de Portugal, as ondas verdes do mar, estão por certo a lacrimejar e a soluçar como velhinhos de olhos da cor das águas dos lagos em dia de céu azul, a morte do maior rival dos seus braços de bronze.

O Mar fará dos seus rugidos uma outra Marcha Fúnebre de Chopin, para a sua voz cantar em apoteose ao Bravo, e o Vento há-de sibilar Odes de Silêncio, Orações de Dor por alminha do Lobo-do-Mar que a estas horas Jaz de semblante sereno debaixo da mão direita de Deus Omnipotente.

O Arrais morreu assim como se uma onda se tivesse estilhaçado de encontro a uma penedia escarpada, como se uma estátua de bronze tivesse rolado pelo flanco de uma montanha, lascando a pedra e amolgando as feições, como um soluçar a dobre de finados — não no som enfermo de sinetazinha de aldeia em dia de Fiéis Defuntos — mas em avalanche de som no sino pesado de Catedral.

***

Eu não encarei a morte do Arrais com a preguiça com que olho a morte de um jovem tísico, ou de costureirinha que se envenenou por amor. Nada disso! Encarei a Morte do Herói com o coração a badalar no peito, e com a alma a transbordar de entusiasmo pela sua obra de abnegação. É que a morte presta-se para recordar!

E encarar a morte do Herói com soluços é ir ofender o valor de quem soube ser forte, de quem teve um coração para sentir, mas uma têmpera rija e salgada que sabia vencer.

Por Deus! Em cima do ataúde do Arrais haja valor! Nada de lágrimas. Em cima da tampa negra que lhe cobre a carcaça uma oração de homenagem.

Só as Vagas têm direito a chorar, só o Mar foi seu verdadeiro amigo — apesar de ser o seu autêntico rival.

Que chorem pois os Vencidos, que as lágrimas dos vencidos são as mais eloquentes e as que traduzem mais sinceridade.

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E no entanto eu estou a ver a fisionomia encarquilhada do Arrais, a sua face pregadinha de rugas, rugas profundas — baralhada confusa que semelhava a crista de uma vaga em dia de Mar-ruim — perdido o jogo da fisionomia que lhe dava expressão, jazendo inerte na almofadita branca de cetim, em que repousa a sua cabeça que o ambiente da maresia tostara, dando aos seus cabelos um tom doirado.

E no entanto, meus senhores, eu estou a ver aquela boca que me acostumara a ver morder o cachimbo, inerte, rouxa, sem vida, e a sentir parada aquela voz cavernosa — voz de oceano — que a gente ouve em menino pequenino quando encosta o ouvido à boca de um búzio.

***

Jamais os raios vermelhos do sol poente pintarão de zarcão a sua máscara pregadinha de sulcos, jamais a poalha salgada que as ondas pulverizam tornarão a acariciar aquele semblante severo de pescador... nem as proas esguias e maneirinhas dos seus barcos do mar, lançarão sobre o seu corpo de Herói pinceladas de sombra...

Os seus olhos embaciados pelo salitre das ondas que ofusca, não tornarão a alongar-se pelo Mar além, nem as suas mãos rijas de calos — que me enchiam de orgulho quando apertavam os meus dedos — tornarão a tecer redes doiradas para arrancar o pão às garras do Mar.

A sua silhouette de barrete encravado na cabeça, não tornará a espreitar a réstia do soalheiro por detrás das recoletas, nem as suas mãos se tornarão a esconder à revessa dos palheiros do sul a encher a cachimbada, que daí a pouco fumegava farrapos azuis que se perdiam na atmosfera doirada da sua querida Costa Nova do Prado...

O Arrais Ançã morreu como se uma onda tivesse vindo despedaçar-se de encontro à areia doirada da praia e tivesse depois morrido serenamente rendilhando espuma de Jaspe...

 

Coimbra, 24 de Fevereiro de 1930.

Frederico de Moura
 

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Actualizado em
20-04-2018