José Simões Bixirão, O coração do Arrais (carta), in: "Beira-Mar", n.º 434, 9 de Março de 1930, pág. 1 e 3.

 

O CORAÇÃO DO ARRAIS
Uma carta

 

Meu caro Américo 

Só ontem à noite pelo «Século», soube da morte do Arrais Ançã. Como homem do mar, principalmente, eu tenho de me curvar, com sentimento e respeito, perante a morte duma das grandes glórias que teve a nossa terra.

O Arrais, em qualquer parte do mundo, seria, já em vida, homenageado e rodeado de carinhos e atenções que não teve, sequer, na sua própria terra. Teve amigos; e um deles foi o meu caro Américo. É, pois, ao meu amigo a quem eu escrevo, para dizer que sinto imenso a morte do nosso glorioso Ançã.

Eu não sei se Beira-Mar homenageará, condignamente, a memória do Arrais. Entendo que os nossos amigos Cesário e Guilhermino tinham esse dever.

Vou contar-lhe um facto, que diz respeito ao herói desaparecido do número dos vivos, e que mostra bem o carácter (Continua na 3ª página) e os sentimentos que ele possuía.

Quando o Arrais era de facto Arrais, no tempo em que dizia que a senhora francesa, que ele salvara, não se compreendia a falar, porque era... «gaga»; no tempo em que ele dizia aos homens que arrancava à morte, devido ao seu saber, ao seu sangue-frio, à coragem e à sua bravura, que deitassem as lágrimas no «vertedoiro» para ele beber, porque tinha sede — havia uma «coisa» que muito o preocupava e o fazia sofrer imenso. Era a triste sorte dos velhos pescadores que jaziam nos seus casebres, sem terem pão para comer, por‘que já não tinham força nos braços para remar, nem nas pernas, para, ao menos, se «mexerem a atar cordas», no arrastar das redes...

E então, o nosso Arrais, confrangido por ver os seus irmãos do mar sem pão para comer, se tinha lugar, na remendagem das redes, para dois velhinhos, logo empregava nesse serviço, seis ou oito. E depois, já menos amargurado e enquanto a sua companha descansava, ele ia às outras do Norte ou do Sul, e até às da Vagueira e S. Jacinto, e dizia para os outros arrais:

Na minha companha já tenho tantos velhos, mas na minha terra ainda há tantos sem pão. Preciso que m’os «arruem». E, se conseguia o que desejava, que consistia em dar pão a todos ou quase todos os inválidos, seus irmãos do mar — a sua alegria era enorme e manifestava-a, pagando o «alvorque» aos valentes — à sua companha.

Veja o meu amigo que grande coração não albergava aquele arcaboiço, aquele valente!

E o Arrais morreu velho e pobre, e nem todos os que podiam procederam assim generosamente, para com ele.

Isto foi-me contado por um velho pescador, que trabalhou, anos seguidos, sob as ordens do Arrais.

Se vê que deve tornar-se público este grande gesto do velho lobo-do-mar — e eu entendo que sim — queira o meu amigo publicar o que aí fica.

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Mande sempre o amigo certo e dedicado

Viana do Castelo, 26-2-1930.

               José Simões Bixirão.

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Actualizado em
20-04-2018