In: "Litoral" - Ano IV, n.º 157 de 5 de Outubro de 1957, pp. 3 e 4.

Um elemento folclórico que é já uma saudade

O XAILE

pelo Dr. Alberto Souto
 

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Arnold Van Gennep, que citei em 1929 na Etnografia da Região do Vouga e tive a honra de conhecer pessoalmente em Paris num Congresso ali realizado em 1931, adverte-nos, com o acerto próprio da sua autoridade: «Se o folclore se ocupa dos factos antigos, históricos ou arqueológicos, é apenas acessoriamente, porque cada facto actual tem antecedentes que é preciso tentar discernir para compreender. Mas o que interessa ao folclore é o facto vivo, directo; é, se assim se quer, a biologia sociológica, como faz a etnografia.

É muito útil recolher nos museus os objectos em uso nas diversas províncias, mas isso não é mais do que um acessório do folclore, a sua parte morta. O que nos interessa é o emprego desses objectos por seres actualmente vivos, os costumes verdadeiramente executados sob os nossos olhos e a investigação das condições complexas. sobretudo psíquicas, desses costumes. »

Quando fui solicitado pela Comissão da Emissora Nacional, pela Casa das Beiras e, muito particularmente, por queridos e distintos amigos, para organizar a representação aveirense numa parada em Lisboa e num sarau beirão no Coliseu dos Recreios, ali realizados há uns bons vinte anos, não perdi de vista o critério atrás referido; aliás, tivera já o ensejo de insistir no valor da exibição da canção, da dança, do costume e do trajo regionais coevos, sem prejuízo da conveniente e interessante retrospecção, quando verídica e pertinente.

A representação aveirense em Lisboa limitou-se à cidade, excluindo todo o elemento rural e periférico.

Sabido que o folclore das cidades e centros urbanos é escasso e difícil de recolher, porque a vida popular se mescla ali dos costumes cosmopolitas e perde o carácter local; e sabendo-se que o vestuário da nossa tricana tanto comparticipava, já então, da moda senhoril, que só o xaile, em declínio e reduzido a quase nada, diferençava a tricana da senhora; sendo inegável que a música e a dança em voga em Aveiro, desde há muitíssimos. anos, nada tinham de classicismo popular, antes revestiam formas e ritmos de sabor italiano e dos géneros artificiosos da opereta, do rancho e da revista teatral – pode avaliar-se a responsabilidade que assumi ao aceitar o encargo de organizador que me foi cometido.

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 Olinda dos Santos Fartura - Aveiro


As outras cidades do País iriam figurar em Lisboa não pela representação citadina mas por cobrirem com o seu nome os ranchos das aldeias da sua proximidade e influência. Aveiro jogava uma cartada da sua fama e do prestígio dos seus responsáveis, e perguntava-se: – terá o povo aveirense em si próprio qualidades de realce capazes de, com os seus aspectos actuais e tão modernos de arte e vestuário, marcar uma posição no grande conjunto folclórico, ou iremos presenciar um fracasso desolador pelo anodinismo e actualismo desengraçado e pedante da sua exibição?

A minha fé – compartilhada por outros elementos cultos do nosso meio – no valor da graça e singularidade do nosso povo, era absoluta.

A feição peculiar, embora actual e muito moderna, da indumentária e da arte do povo aveirense, tinha de impressionar Lisboa. E, de facto, Lisboa coroou de aplausos a expressão popular da cidade de Aveiro naquele grande cortejo do Campo Grande e no sarau folclórico da Casa das Beiras.

O caminho ficara aberto para outros cometimentos: no curto espaço de menos de um mês, o xaile aveirense inundava Lisboa de alegria e arrancava ao público da capital as maiores ovações que a arte provinciana poderia obter, enchendo de espanto o País inteiro que lhe lê os relatos.

E foi o xaile aveirense quem alcançou essa vitória. Foi ele o talismã que converteu a desconfiança em simpatia, a indiferença em interesse, a curiosidade em aplauso, a admiração em entusiasmo.

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Lisboa ignorava-o inteiramente. O que Lisboa conhecia era o xaile prosaico e grosseiro, o xaile humilde, mas desengraçado, dos seus bairros pobres e escuros, o xaile-agasaIho e tapa-misérias de todo o Portugal.

Mas o xaile fino da tricana de Aveiro, esse nunca Lisboa o vira colocado com a elegância suprema das horas solenes aos ombros das nossas raparigas. E, desde que o viu, passeando-se com o seu donaire inigualável, que era ao mesmo tempo ostentoso e sóbrio, vistoso e discreto, Lisboa compreendeu Aveiro e achou toda a graça do nossa cidadezinha, pela beleza do seu recanto e pelos dotes dos seus habitantes.

E a gente culta e o grande público da capital viram então no xaile aveirense um símbolo – e a esse símbolo concederam as honras dum grande triunfo.

Por esse tempo – há vinte anos – ainda podíamos dizer: já não é agasalho, nem conforto, nem peça útil, esse xaile levíssimo e quase transparente que as nossas tricanas usam. É arte, arte delas, arte de indumentária popular, arte aveirense! E, socialmente, é um mero símbolo da sua popularidade, da sua condição, da sua classe, da humildade da sua ascendência. Mas é ao mesmo tempo a marca da terra cujo povo o usa, e a prova da delicadeza das mãos que tão bem o sabem compor.

Na gracilidade das filhas revê-se a gracilidade que tiveram as mães, a virtude dos progenitores, o bom gosto das famílias, a sensibilidade de quem educou. É um espelho de beleza que reflecte a estética de um povo, é o melhor documento da elegância física e moral da grei aveirense. Porque xailes iguais podem pôr às costas todas as mulheres de Portugal, mas o que nenhumas outras mulheres conseguem é deixá-lo cair, apanhá-lo, dispô-lo e utilizá-lo com as linhas, o ar, a graça das tricanas de Aveiro, que nele fizeram o mais distinto e fino atavio da feminilidade popular portuguesa.

Essa maneira de pôr o xaile, aliada ao tipo feminino e ao carácter das nossas raparigas, é a nota característica e inconfundível do povo aveirense.

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Hoje, relegado o xaile para o arcaz das coisas velhas, pela força aglutinadora e parificante das exigências duma técnica que nada respeita, da moda que galga fronteiras e nivela os gostos e confunde origens e classes – o xaile é apenas uma saudosa lembrança da graça de antanho, dum tipo feminino que deixou de se afirmar, para se confundir na multidão das gentes incaracterizadas.

Alberto Souto

Clicar para ampliar. Clicar para ampliar. Jornal cedido por Teresa Fartura
Se alguém possuir as fotos originais e as deixar digitalizar, serão aqui colocadas.

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31-5-2011