In: Lauro António, Rosa Púrpura do Cairo, Nº 11, Algueirão, Secretaria de Estado da Reforma Educativa, M. E., SD, 30 pp.

Rosa Púrpura do Cairo

Texto de Lauro António

Brochura acerca do filme «Rosa Púrpura do Cairo» - Dim. 21x14,5 cm - Clicar para ampliar.

    O Filme

    Woody Allen - Percurso filmográfico

    1. O Homem

    2. O Inimigo Público

    1. O Homem

    3. Bananas

    4. O «Grande Conquistador»

    5. O «ABC do Amor»

    6. O «Herói do Ano 2000»

    7. Nem Guerra, nem Paz»

    8. O Testa de Ferro

    9. Annie Hall

    10. Intimidade

    11. Manhattan

    12. Recordações

    13. Comédia Erótica de Uma Noite de Verão

    14. Zelig

    15. O Agente da Broadway

    16. A Rosa Púrpura do Cairo

    Filmografia de Woody Allen

   Ficha Técnica

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Rosa Púrpura do Cairo

O filme

 

Imagem do filme - Clicar para ampliar.Título original: The Purpur Rose of Cairo. Realização: Woody Allen (EUA, 1985). Argumento: Woody Allen. Fotografia (cor): Gordon Willis. Direcção artística: Edward Pisoni. Cenários: Stuart Wurtzel, Carol Joffe e Justin Scoppa. Guarda roupa: Jeffrey Kurland. Som: James Sabat e Richard Dior. Música: Dick Hyman. Canções: «Cheek to Cheek», de Irving Berlin, interpretada por Fred Astaire; «I Love My Baby, My Baby Loves Me», de Bud Green e Harry Warren; «Alabamy Bound», de Ray Henderson, B. G. De Silva e Bud Green. Montagem: Susan E. Morse. Produção: Robert Greenhut e Charles H. Joffe, para Jack Rollins-Charles H. Joffe Production/20th Century Fox/Orion. Duração: 81 minutos. Intérpretes: Mia Farrow (Cecilia); Jeff Daniels (Tom Baxter/Gil Shepherd, alias Herman Bardebedian); Danny Aiello (Monk); Irving Metzman (o director do cinema); Stephanie Farrow (a irmã de Cecilia); David Kieserman (o dono da cafetaria); Elaine Grollman, Victoria Zussin, Mark Hammond, Wade Bernes, Joseph G. Graham, Don Quigley e Maurice Brener (clientes da cafetaria); Paul Herman, Rick Petrucci, reter Castellotti, Milton Seaman, Mimi Weddel, Tom Degidon, Mary Hedahl, Edward Herrman, John Wood, Deborah Rush, etc. Distribuição: Filmes Castello Lopes. Edição vídeo: Publivideo (Aluguer) e Casablanca (Venda Directa). Classificação: Maiores de 6 anos/Filme de Qualidade.
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WOODY ALLEN

De «gagman» até

«Rosa Púrpura do Cairo»

Woody Allen - Clicar para ampliar.

Dado tratar-se de um dos mais interessantes cineastas do moderno cinema norte-americano, autor de uma obra relativamente ampla, documentando diversos períodos, pareceu-nos oportuno recordar o trajecto de Woody Allen, desde os seus inícios como escritor de «gags» para outros cómicos, até à realização de "Rosa Púrpura do Cairo", uma das suas películas mais perfeitas e significativas do seu universo pessoal e filmográfico.


1. O homem

Voltemos todavia, um pouco atrás e vejamos quem é este humorista de vincado desencanto, que nos tem dado uma visão muito sua da Améria e do american way of life. Nascido em Nova lorque, a 1 de Dezembro de 1935 (signo Sagitário, a quem pertencem, entre outros, Jean Genet, William Blake, Edith Piaf, Heine, Rilke, Toulouse Lautrec, Florbela Espanca), de origem judaica, o seu nome de baptismo é Allen Stewart Konisberg. O pai, Martin Konisberg, trabalhou durante grande parte da sua vida no negócio de diamantes e foi empregado do Sammy's Bougery Follies, Informações que não são todavia concordantes com a descrição do próprio Woody Allen, que, deste período da sua vida, diz: Nasci numa família "burguesa"; o meu pai era motorista de táxi e a minha mãe vendia flores. Como não arranjaram vaga na escola para mim, colocaram-me num colégio para atrasados mentais. Aos 12 anos ainda fazia bolinhas nos cadernos. Aos 15, sonhava ser agente secreto; estudava impressões digitais, lia tudo sobre crimes e só esperava pelo momento de ser contratado pelo FBI. Mais tarde, ao saber que os agentes secretos tinham de engolir os microfilmes, e, como o meu médico me tinha proibido de comer gelatina... comecei a estudar artes mágicas. Cansei-me logo de tantos coelhos, lenços e caixas secretas e, como não tenho boa memória, acabaria certamente por enforcar os coelhos nos lenços. Assim, decidi escrever... anedotas. De dia trabalhava em relações públicas, e à noite escrevia piadas. Escrevia coisas de uma idiotice total.

Começa realmente a escrever, aos 17 anos, «gags» para alguns / 5 / dos mais famosos cómicos e «entertainers» da televisão norte-americana, como Sid Caeser, Ed Sullivan, Garry Moore ou Sid Corney. Torna-se realmente um nome muito solicitado para os «shows» televisivos, mas a TV deixa-lhe más recordações e cedo se afasta: Naquele tempo, a televisão precisava de gente e qualquer pessoa, mesmo um cretino, arranjava um «lugarzinho». A televisão melhorou muito o meu senso critico. Tanto que hoje já não a vejo.

No teatro, é autor de várias peças, duas das quais já adaptadas ao cinema (Play it Again Sam, dirigida por Herbert Ross, com o próprio Woody Allen no protagonista: "O Grande Conquistador» em português: e ainda Don't Drink the Water "Não Metas Água», com realização de Howard Morris).

Igualmente em jornais e revistas começa a aparecer com bastante regularidade: «Fundei uma espécie de agência com um só funcionário − eu próprio. Escrevia e despejava artigos da minha autoria como quem vende salsichas, "Esquire», "Ufe», "New Yorker», "Play Boy», teatro, televisão, "boîtes», tudo foi invadido por Woody Allen. Na América, se alguém quisesse ignorar-me era impossível: eu estava lá e, como o custo de vida, subia vertiginosamente...» Algumas recolhas de textos seus, conhecem um sucesso invulgar em todo o mundo onde são editados, inclusive em Portugal.

Por 25 dólares por semana, ao que consta, Allen passava o tempo que lhe restava dos estudos na Universidade de Nova lorque escrevendo piadas que um dia o produtor Charles Feldman encontrou «cinematográficas». Assim surgiu a sua estreia no cinema, como um dos autores de «What New, Pussicat?» (Que há de novo, Gatinha?), filme de Clive Donner, comédia absurda com uma base de «vaudeville», onde Woody Allen surgia igualmente como actor, em meia dúzia de cenas que eram ainda o que de melhor o filme oferecia.

Sobre «Pussicat» disse Woody Allen: «Aprendi alguma coisa de como fazer filmes. Quando se está a rodar um grande filme de 4 000 000 de dólares, temos sempre à nossa volta uma quantidade de gente que diz estar a "proteger os investimentos». Eles queriam um filme rapariga-rapariga-sexo-sexo para fazer uma fortuna. Eu tinha mais qualquer coisa na cabeça. Conseguiram um filme rapariga-rapariga-sexo-sexo que fez uma fortuna.»

Woody Allen surge depois numa aventura burlesca e louca do fatal 007 − «Casino Royal». Não aparece entre os autores do argumento. Mas, para lá da sua participação, descobrem-se muitas ideias e diálogos obviamente da sua autoria.

Antes de iniciar a carreira como realizador (e autor integral de filmes), Allen ainda adaptou um filme de espionagem japonês a comédia americana e escreveu uma peça de teatro «Don't Drink the Water») de que Howard Morris, em 1969, extraíra um filme − «Não Metas Água», medíocre aproveitamento de uma situação com o seu quê de estafada − uma família de New Jersey, composta por / 6 / «Americanos típicos» é desviada para a Bulgária, onde é tomada por espiões.

De 1969 é o primeiro filme de Woody Allen, aquele que o revelaria nos EUA e na Europa − «Take the Money and Run» (O Inimigo Público).


2. «O Inimigo Público»

Na linha do melhor burlesco americano, Woody Allen conta com antepassados ilustres como Buster Keaton (de quem herda uma certa qualidade nostálgica de olhar), Chaplin (que lhe trespassa o ar abandonado de pobre diabo), Bucha e Estica ou os irmãos Marx (e o seu universo caótico e profundamente absurdo). Mas Woody Allen não se fica pelos antepassados remotos e vai beber a Jerry Lewis as influências inequívocas (sobretudo na convivência desastrada com os objectos, as máquinas, etc.). Acontece, porém, que depois de ter visto muito cinema, Woody Allen resolveu iniciar um caminho pessoal. Assim, as influências são manifestas, mas nunca o plágio. Woody Allen deixou-se impregnar pelo espírito do burlesco americano, pelo seu mecanismo de riso, mas reinventa os «gags», repensa a sua utilização redescobre o cinema. Ou seja: sabe o que quer e como quer. Não hesita. «Take the Money and Run», seu primeiro filme de fundo, escrito, realizado e interpretado por si, é um atestado de maturidade e a afirmação de um talento de recursos inesgotáveis.

Intencional e cáustico na sua sátira, Woody Allen não deixa qualquer pormenor ao acaso. Todos os seus «achados» têm uma justificação. A escrita é moderna, sincopada, integrando a entrevista de TV (como sejam os casos das diversas personalidades que são chamadas a depor sobre Virgil Starkwell, incluindo os seus pais que, envergonhados com a conduta do filho, se disfarçam com elementos de Groucho Marx), o comentário «off» com a narrativa linear das desventuras de um «inimigo público». Tudo isto se consegue sem uma falha de ritmo, sem uma concessão, sem perca de unidade, muito embora grande parte dos «gags» seleccionados tivessem sido já utilizados em anteriores «shows». Allen, de uma inteligência revigorante, obriga a acção a galopar. Difícil se torna comentar os «gags» que se sucedem. Anotemos, porém, alguns como exemplares: Virgil desde criança que é apanhado sempre que tenta qualquer expediente. Como castigo, deitam-lhe os óculos fora e pisam-nos. Inclusive o juiz do tribunal. Tempos depois, quando uma evasão se logra, Virgil é o primeiro a aceitar o falhanço e ele mesmo tira os óculos e os pisa, em autopunição. Toda a sequência do assalto preparado com máquina de filmar e quatro cúmplices de má estirpe, é perfeitamente antológica − o realizador é Fritz e deverá ter algo a ver com Lang −, bem assim como a fuga dos seis condenados, ligados por uma corrente. Desconcertante e profundamente absurdo. «O Inimigo Público» ficará como uma das mais importantes estreias em comédia dos últimos anos. Através dela renova-se um «género» um tanto ou quanto depauperado e que Woody Allen reconduz a primeiríssimo plano, servindo-se para tanto de uma / 7 / paródia inspirada ao filme negro e à biografia de «gangsters» de uma genuína tradição americana.


3. «Bananas»

«Bananas», se por um lado, confirma o talento de um cómico, por outro define certos limites que o seu primeiro filme não deixava antever. Tal como «O Inimigo Público», também «Bananas» é arquitectado com base em pequenas sequências recheadas de «gags» que, ligando-se umas às outras, através de um ténue fio de intriga, formam a obra. A globalidade do filme resulta assim, não tanto do desenrolar de uma intriga, como sobretudo de um clima de humor que é necessário manter. Ora, «O Inimigo Público» mantinha essa unidade de estilo, essa globalidade de clima. «Bananas» está longe de possuir o mesmo fôlego. Cedendo aqui e ali, «Bananas» é um filme demasiado construído ao nível de argumento, para conseguir a cadência cómica de «Take the Money and Run». Como assim? Obrigando a intriga a certas paragens, necessárias ao argumento Woody Allen vê-se constrangido a prolongar determinadas sequências por zonas que o humor não atinge. Como resultado verifica-se, portanto, algo de extremamente curioso: «Bananas» é um filme que se segue como maior interesse ao nível da intriga (isto é: «que acontecerá agora»?) e com muito menos interesse cómico. Menos ligado, no plano da «estória», «O Inimigo Público» possuía, todavia uma grande unidade de estilo. Um ritmo sem pausas era a característica da primeira obra assinada por Woody Allen; uma cadência entrecortada de silêncios é a dominante de «Bananas».

Em Woody Allen a crítica é dispersa, ainda que repleta de alusões intelectuais. Se as instituições americanas não são poupadas, a verdade é que, por exemplo, os guerrilheiros da América do Sul também não. Haverá quem diga que Woody Allen tem uma visão desencantada e pessimista dos homens, da política, das instituições. É verdade. Em «Bananas», o chefe dos guerrilheiros depois de ascender ao governo, torna-se num ditador, parecendo que daí Allen extrai uma lição: «Todo o poder corrompe». Mas cuidado. A forma por que nos não são apresentados tanto o ditador como o «Ieader» revolucionário, não é idêntica. O coronel de S. Marcos é bem mais fustigado, impiedosamente zurzido. O chefe dos guerrilheiros, mesmo no momento em que assume o comandante de S. Marcos, é olhado de forma bem diversa. E será conveniente não esquecer que são ainda os companheiros desse «Ieader» quem irá continuar a luta. Um pessimismo radical, é certo, mas uma, ainda que diminuta, distinção de valores. Woody Allen parece dizer-nos que a justiça é impossível de atingir. É ele quem afirma: «Nunca sonhei realizar um filme político. Sou apenas um americano médio que lê os jornais e escreve sobre este mundo em que vivemos. Agora se este mundo tem alguma coisa de ridículo, isto não é comigo. Quero é divertir o público, fazê-lo esquecer as suas tensões, os seus problemas diários

Woody Allen sabe que o seu cómico não se destina só a divertir. / 8 / Vai muito mais longe. É perfeitamente corrosivo. Vejam-se as sequências televisionadas (o assassinato de um presidente em S. Marcos ou a noite de núpcias de Fielding Mellish); veja-se a chegada das tropas americanas a S. Marcos «A CIA joga pelo seguro: metade das tropas americanas do lado dos revolucionários, a outra metade do lado dos governamentais»); veja-se a sequência da operação... Há no cómico de Allen uma densidade negra, uma gargalhada sarcástica, uma ironia que penetra para além das aparências e vai até ao fundo das pessoas, das instituições, dos credos.

Imaginoso, genial por vezes, Woody Allen continua a recolher as receitas do seu cómico nas origens da comédia americana e aos seus cultores recentes.

Que dizer de toda a cena em que Woody Allen experimenta um dispositivo de ginástica para escritório, senão que se trata de uma adaptação notável de uma outra cena Chaplin «Os Tempos Modernos» − a máquina que alimenta os operários, enquanto estes trabalham)? Que dizer das cenas de amor de Woody Allen, senão que elas constituem uma admirável homenagem a Buster Keaton? Que dizer da primeira cena de redução de Nancy, senão que Woody Allen viu «Os Amores de uma Loura» e que gosta de Milos Forman? Que dizer das relações entre Woody Allen e os objectos (puxadores de portas que lhe ficam na mão, armas que se montam de forma estapafúrdia, etc.,) senão que Allen se coloca do mesmo lado da trincheira de Jerry Lewis?

4. «O Grande Conquistador»

Se bem que realizado por Herbert Ross, «O Grande Conquistador» é um filme predominantemente de Woody Allen. Sua é a peça de teatro donde é extraído o filme «Play it Again, Sa»), dele a adaptação, dele ainda a construção da personagem principal, um crítico de cinema que vive obcecado pela imagem tutelar de Humphrey Bogart, símbolo da inequívoca virilidade do americano e de um certo pendor romântico.

Logo no início do filme se coloca o tema central de «O Grande Conquistador». Absorvido pelo cinema (as imagens finais de «Casablanca», com Bogart, reflectem-se nos óculos de Woody Allen) Allen transfere para si situações vistas e «vividas» no écrã. Fascinado pela figura mítica de «Bogey» procurará assumir na sua vida particular o «sonho americano». Do cinema para a vida vai, todavia, um espaço lacunar, difícil de preencher. De «Bogey» a Allen, o caminho da frustração. O que com «Bogey» resulta, em Allen falha. As mulheres que caem aos pés de «Bogey» fogem dos «encantos» de Allen. As facilidades do «charme» do mito assumem-se como cruéis desilusões na vida real.

«O Grande Conquistador» situa-se assim num plano de íntima relação dialéctica entre a realidade e a fantasia, entre a existência e o sonho. Quando a mulher de Allen o abandona porque prefere a vida ao «écran», porque sente necessidade da alegria e da virilidade que o marido lhe não oferece, Allen imagina-a nos braços de um / 9 / «anjo no Inferno», de cruz gamada nos braços. Quando Allen tenta aproximar-se da nova «conquista» estabelece-se um inquietante (e delicioso) diálogo entre este Bogart ressuscitado para as funções de «mestre de cerimónias» de uma declaração. Mas, Allen nunca conseguirá assimilar o mito à sua personalidade. A frustração que o falhanço acarreta será sempre o resultado atingido. Até que, finalmente, numa cena que revive o final de «Casablanca», Allen consegue afastar o «modelo» e assumir a sua verdadeira personalidade, Mas consegui-lo-á mesmo? Não será este gesto de recusa mais uma homenagem ao mito inspirador?

De qualquer forma, «O Grande Conquistador» é uma comédia profundamente inteligente, irónica, vergastando com desapiedado humor o mito do «super-homem» americano, vulgarizado sobretudo pelo cinema, Woody Allen confirma o seu invulgar talento de comediante, organizando em seu redor um caos de «jongleur», Poucos actores (e voltamos a relembrar aqui Jerry Lewis), conseguiram, em tão curto espaço de tempo, desorganizar um «décor», o mesmo será dizer organizar o caos, A realização de Herbert Ross, sem ser brilhante (reservando até essa faceta para o protagonista), procura dominar o intérprete nos seus possíveis excessos, integrando-o numa linha de humor coerentemente desenvolvido, O que demonstra igualmente o profissionalismo do actor que se integra num trabalho de equipa, servindo um ritmo que não é o seu, Voltaremos a vê-lo, se possível com uma maior contensão e auto-disciplina, em «O Testa de Ferro», de Martin Ritt.


5. «O ABC do Amor»

Woody Allen volta a assumir a realização e interpretação simultânea, sendo ele próprio quem escreve o argumento de «O ABC do Amor» (Everything you Always Wanted to Know about Sexy but were afraid to Ask). Adaptação satírica de um ensaio sexológico da autoria do dr. David Reuben, «Tudo o que Você sempre Desejou Saber sobre o Sexo, mas sempre teve Vergonha de Perguntar» (tradução literal do titulo americano) organiza-se no estilo dos filmes em episódios, constituído por sete pequenas histórias «capítulos», na estrutura narrativa adoptada de Woody Allen), ilustrando / 10 / conceitos enunciados numa legenda inicial, e todas elas relacionadas com a obsessão da sexualidade na vida moderna, ainda que nem todos os «sketches» se localizem na actualidade.

O filme documenta mais uma vez a imaginação tumultuosa do autor, mas aqui algo desequilibrada de história para história. A primeira anedota localiza-se na Idade Média, com uma reconstituição que goza «Decameron» ou «Os Contos de Cantuária» e, que nos fala de filtros de amor e bobos de corte. Mas a mediocridade domina, o que irá acontecer igualmente num mal aproveitado episódio sobre um concurso de televisão durante o qual vários inquiridos depõem sobre as suas perversidades sexuais preferidas. A ideia poderia dar um apontamento ao nível do melhor Woody Allen (relembre-se as cenas de TV em «O Inimigo Público»), mas tudo se pode ingloriamente. A sequência relâmpago do «travesti» não é igualmente muito feliz, começando o filme a adquirir certa força somente no episódio da mulher frígida que só consegue atingir o «climax», fazendo amor em locais públicos. O tom da narrativa relembra a comédia italiana (o estilo Dino Risi) que Woody Allen assimila com facilidade, sendo até de notar as semelhanças que existem entre esta sua película e algumas de Dino Risi «Os Monstros, Os Complexos», sobretudo «Vejo Tudo Nu...» ou «Sexo Louco»).

Os melhores episódios são, porém, os três restantes, todos eles transbordantes é a história de um sábio louco (interpretado por John Carradine, no papel do Dr. Bernardo...), um Frankenstein do século XX que, após uma explosão no seu laboratório, vê sair para a rua, em perfeita liberdade, um enorme mamilo humano que irá provocar uma delirante perseguição. Quando os desastres são já inúmeros (alguns transeuntes morrem afogados em leite, à passagem da assustadora visão...), a polícia inventa novos processos de captura, entre os quais um mastodôntico «soutien». Aprisionado o mamilo desertor, assiste-se a um diálogo indescritível entre Woody Allen e um polícia que espera a todo o momento prender o segundo mamil, já que ele está habituado a vê-los sempre andarem aos pares!) e estabelecer um infantário com o leite que deles sai.

Outro «sketch» brilhante é uma paródia à «Viagem Fantástica», de Richard Fleischer, que descreve a viagem de um espermatozóide tímido. Todo o mecanismo da excitação masculina é visto do interior do organismo, assistindo-se aos receios e temores de um espermatozóide pouco afeito às grandes emoções, receoso do mundo «lá de fora», onde pairam as ameaças.

Mas o melhor pedaço de «O ABC do Amor» é uma história, por acaso não interpretada por Woddy Allen, mas sim por Gene Wilder. Trata-se de um psicanalista que cai apaixonado por uma ovelha, paixão que irá arruinar-lhe a existência, e levá-lo à mais negra decadência física e moral, sucedendo-se as bebedeiras com leite.

Mesmo tendo em conta o desequilíbrio evidente desta obra, e a desilusão que constituem alguns dos seus episódios, a verdade é que «O ABC do Amor» documenta novamente o talento de Woddy Allen, que mantém as características que o indicam como um dos grandes nomes da comédia de origem americana.
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6. «O Herói do Ano 2000»

Sátira aos filmes de ficção científica (o autómato de «2001», de Stanley Kubrick, está sempre presente), «Sleeper» parte de uma anedota simples: Miles Monroe (Woody Allen) prepara-se para fazer uma operação cirúrgica num hospital de Greenwich Village, quando acorda e se descobre no ano de 2173. Duzentos anos de adormecimento fazem dos contemporâneos de Woody Allen relíquias que se estudam com cuidados arqueológicos. A cena com Woody Allen definindo personalidades actuais é inimitável de graça, de poder corrosivo, de angústia. Mas, em 2173, se alguns problemas se encontram resolvidos (entre eles o das empregadas domésticas, substituídas por «robots» de casaca a que se pode pedir tudo), outros permanecem no da utopia. Os governos insistem na ditadura (o «chefe» continua a zelar pelos seus contemporâneos que, quando não «pensam como deve ser», sofrem lavagens ao cérebro) e alguns «Ieaders» (caso do «chefe») sobrevivem mortos, no segredo dos deuses. Terão Sal azar e Franco servido de musas inspiradoras a Woody Allen e ao seu «gag» do nariz do chefe?

No capítulo das relações amorosas, a tarefa parece estar simplificada (com globos de prazer e máquinas de orgasmo), mas as sobrevivências tradicionalistas ainda retemperaram o espírito de outra forma.

Havendo ditadura, há resistência, e o «maqui» está presente. Algures no planeta conspira-se contra o grande «chefe», que todas as noites se dirige aos seus concidadãos, através do vídeo, para lhes desejar umas agradáveis «boas noites».

Um ritmo veloz de sátira, uma imaginação consegue acompanhar esse ritmo, ultrapassando-o por vezes, eis as melhores credenciais desta obra de Woody Allen, que além de actor e realizador, é ainda argumentista e autor da música. Se o seu argumento possui ideias invulgares, se a realização é por vezes modelar na construção dos «gags» , o trabalho interpretativo de Woody Allen coloca-o ao nível dos seus mais genuínos predecessores. Na linha dos Irmãos Marx, de Chaplin (de que volta a reter «gags», de «Tempos Modernos» ou de «O Grande Ditador», por exemplo), de Harold Lloyd, de Keaton ou de Jerry Lewis, Woody Allen empunha com igual vigor a bandeira do burlesco de origem norte-americana, demonstrando por A mais B que esta é uma tradição que tão cedo se não há-de perder em terras do tio Sam, e sobrevive amalgamada com a própria vida americana, o seu ritmo, a pedalada imposta pela competição.


7. «Nem Guerra, nem Paz»

Filme de «backgroud» ostensivamente «culto», Love and Death» é uma obra que se articula com base nas citações e situações que refere. Na banda sonora, Serge Prokofiev e o seu «Ivan, o Terrível», cuja sombra se estende ainda por sobre alguns planos de W. Allen. Se a estrutura de intriga de «Guerra e Paz», de Tolstoi, é um fio que conduz a meada desta sátira, outros escritores russos não deixam de estar obsessivamente presentes, como Dostoievski, cujas obras são / 12 / enunciadas ao longo de um diálogo, durante o qual Boris Gruchenko (W. A. de «Crime e Castigo a «Idiota», enumera, em encadeado os títulos mais importantes.

Imagem do filme «Rosa Púrpura do Cairo»

É, porém, no campo cinematográfico que as referências se multiplicam, de Eisenstein a Chaplin, de Bergman a King Vidor. Eisenstein surge por diversas ocasiões, bastando citar os célebres leões que Woody Allen utiliza aqui com um significado simbólico diverso (os leões surgem a ocupar o tempo físico de um acto de amor que vai da sua preparação à síncope final, o que as figuras de pedra reflectem pelo encadeado da sua montagem). Bergman é lembrado a propósito de «O Sétimo Selo», onde o seu nome inclusive, referido ou num dos planos finais que ressuscita os dois rostos de mulher de «Persona». As referências a Chaplin são igualmente de uma límpida transparência, com alguns planos onde o acelerado da imagem recorda cenas de amor de Carlot e Edna Purviance. Mas é Groucho Marx o cómico sempre presente, não tanto pela citação, como sobretudo pelo estilo de representação, pelas características do humor. De todos os cómicos contemporâneos, Woody Allen é aquele que mais se aproxima do humor de Groucho Marx. É o que utiliza melhor o diálogo nesse sentido, soltando réplicas repentistas que liquidam o interlocutor pela agressividade e a lógica. Nesse aspecto «Nem Guerra Nem Paz» dir-se-ia que por vezes pede emprestadas tiradas a «Uma Noite na Ópera» ou a «Os Grandes Aldrabões». Nomeadamente nos diálogos entre Boris Gruchenko (a figura que W. Allen interpreta chama-se Gruchenko por alguma razão!...) e as mulheres, a lógica implacável do seu raciocínio sai directamente da cabeça de Groucho Marx. Aliás, e curiosamente, Woody Allen evoluiu bastante nos seus últimos filmes no que diz respeito às relações que estabelece com as mulheres com que contracena. Assim, se nos filmes de início de carreira a sua figura se aproximava muito da assexualidade algo misógina de um Jerry Lewis (as mulheres são sempre colocadas à distância, num misto de terror e admiração) «Love and Death» significa de alguma forma uma viragem neste percurso que agora se mostra mais desenvolto, por vezes mesmo «castigador» e de um cinismo irreverente.
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«Nem Guerra, Nem Paz», no nihilismo da sua visão (onde os valores «eternos» desaparecem e no lugar de Deus surge o vazio; onde conceitos como «patriotismo», «heroísmo», «amor», «amizade», família», entre outros, são continuamente desmontados e oferecidos na sua nudez total), assume-se como obra de um autor que progressivamente vai ganhando voz própria no confronto com as raízes mais profundas e revivificantes da comédia americana, assimilando criticamente o melhor de um filão inesgotável reconstituindo-o com a modernidade do seu olhar, perspectivando-o em termos de contemporaneidade, Um grande cineasta que se prepara para lá do grande actor cómico que já se conhecia, As etapas seguintes são de consagração.


8. «O Testa de Ferro»

«O Testa de Ferro», de Martin Ritt, assinala um excelente trabalho interpretativo de Woody Allen, mas é definitivamente um filme de um outro autor, a que W. A. oferece o seu contributo e o prestígio do seu nome. Uma época trágica na história dos EUA está na base desta obra. Durante o fim da década de 40, princípios da de 50, em plena «guerra fria», desencadeia-se uma perseguição sistemática e sinistra ao mundo do espectáculo, empreendida pela tristemente célebre Comissão das Actividades Anti-Americanas. Hollywood é particularmente visada, sob a acusação de aí residir um poderoso núcleo de «vermelhos» que era imperioso expulsar. Intimados a comparecer perante a Comissão (onde o senador MacCarthy e Richard Nixon desempenhariam papéis de relevo), numerosos técnicos, argumentistas, realizadores e actores vão conhecendo sorte diferente, consoante os ditames da consciência: desde a denúncia declarada à confissão pública, do assumir da solidariedade mais firme ao suicídio e à colisão frontal (ao que se supõe a réplica à colisão frontal (ao que se supõe a réplica de Woody Allen a finalizar o filme, dirigindo-se à Comissão, é atribuída ao escritor Dashill Hammett), de tudo houve, nesses dias dramáticos que lançaram na prisão e no desemprego dezenas, centenas de artistas, Todos os que não aceitaram retratar-se e colaborar com a Comissão foram inscritos numa «lista negra» que os impossibilitava de trabalhar. Em cinema, na televisão, em teatro, no «music hall» , onde quer que se estendesse a influência da Comissão.

O filme de Martin Ritt evoca esses tempos de coragem e desespero, contando-nos um episódio entre vários possíveis, que dá todavia o tom ao ambiente vivido: para poderem sobreviver, alguns escritores passaram a assinar os seus trabalhos com nomes de amigos (os «testa de ferro»), Woody Allen interpreta o papel de um deles, enquanto Zero Mostel, não resistindo à afronta por que o obrigam a passar, se lança de uma janela sobre a morte.

Afastando toda a grandiloquência e demagogia fácil, Martin Ritt escolhe o dia-a-dia e a força da sua persuasão, neste filme que não será muito significativo no contexto da obra de W, A., mas não deixa de ser importante como referência de uma tomada de posição.
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9. «Annie Hall»

É o lado aparentemente confessional (mas suficientemente equívoco, nos limites entre o «confessado» e o «imaginado», para se furtar a qualquer interpretação mais abusiva) de Annie Hall é algo que se vem repercutindo de filme para filme, desde O Inimigo Público. As alusões à infância, aos pais, à vida em família, à desadaptação, aos traumas e às obsessões (a morte e o sexo, em grande plano), tudo isso se identifica com um discurso que se vem reproduzindo invariavelmente desde o início da carreira, ainda que obedecendo a uma certa maturação progressiva.

«Annie Hall» é a história de um casamento que se desagrega e cujo passado se interroga. A impossibilidade da relação, para lá do amor que continuamente se confessa «Annie Hall» é, por detrás do filme que se representa, uma declaração de amor de Woody Allen a sua ex-mulher, Diane Keaton). Sintoma de uma esquizofrenia domesticada e latente que emerge de «uma maneira americana de viver», as personagens interpretadas por Woody Allen e Diane Keaton oferecem-nos o retrato da sua instabilidade, do nervosismo galopante que tudo invade e corrói, e dos subterfúgios inventados para desviar a atenção do essencial, da aspirina à droga, da psicanálise à televisão. Com um olhar de grande agressividade crítica na solidão dos seus gestos e no desespero do seu olhar, Woody Allen investe contra a mentira da vida e a hipocrisia do espectáculo, tendo por pano de fundo o «Face to Face», de Bergman e «Chantons sous l'Occupation», de Ophuls. De Bergman, o confronto do casal que analisa as ruínas; de Ophuls o drama do judeu que Allen não renega e constantemente relembra.

Viagem pelos grandes mitos da sociedade e da civilização norte-americanas «Annie Hall» é um filme de um humor cerebral, interiorizado, discreto, que explode por vezes, como nas sequências consagradas a Hollywood, Beverly Hill, Los Angeles, o cinema das «majors companies» e a televisão (esta última tratada com a raiva que provoca o vómito e o estertor).

Nesta sua última obra, Woody Allen não será tão freneticamente cómico como nalgumas outras anteriores. Mas a qualidade do olhar amadurece com a experiência, enquanto o estilo se torna mais fluente e a modernidade da narrativa brota sem artifícios nem rebuscamentos. «Annie Hall» é um filme que se sente rodado na primeira pessoa do singular. Um autor que se confessa, mesmo quando mente ou julga mentir, quando inventa ou julga inventar. É Woody Allen quem nos surge sempre, de olhos nos olhos, desafiando o espectador. Coloquial, como quando «saca» Marshall McLuhan de detrás de um cartaz para contrapor a essência da sua teoria às «explicações» levianas de um emproado «prof.».

Se a obra de Woody Allen nos aparece até aqui particularmente rica e promissora, a verdade é que muito se pode continuar a esperar do talento e do universo caótico deste humorista-moralista que, fotograma a fotograma, nos dá o seu retrato da vida e da América.
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Acompanhado de cartas de amor voluptuoso e arrebatado. Para Diane Keaton, mulher e actriz da sua sofrida memória. E como é belo o cinema que se escreve com amor, de Sternberg a Godard!


10. «Intimidade»

O filme mais bergmaniano de Woody Allen, o primeiro que ele escreve e dirige, mas onde não aparece como actor. Temos então que este título procura ser algo de diferente na carreira deste cineasta que, sendo um dos maiores autores do cinema contemporâneo, surgiu no cinema como um cómico, designação de que progressivamente se foi afastando para se assumir como o autor completo das suas obras. O seu cinema, porém, aprofunda com humor, mas por vezes com dramatismo e quase desespero, a condição humana, numa via paralela à de Bergman, ainda que numa tonalidade que nos repugna chamar mais ligeira, mas que é sobretudo mais aberta ao humor e, ultimamente, mais optimista.

Interiors ocupa-se de uma família: um casa! com três filhas, duas das quais já casadas. Arthur e Eve separam-se, no entanto, apesar da longa vida em comum e da avançada idade que ambos contam já. O divórcio provoca a amargura, a incompreensão, o desencanto das filhas. Arthur irá rapidamente casar com Pearl, mas Eve, fechada e ressentida, não aceita a ruptura e provoca o desenlace trágico. Num cenário algo tchecoviano, num clima de angústia que relembra Bergman, Woody Allen cria uma obra densa, rica, complexa, aqui e ali irresistivelmente irónica, mas sempre austera, profunda e dilacerante no retrato psicológico que oferece.


11. Manhattan

Manhattan é a casa de Woody Allen, a sua «terra natal», o local onde se refugia quando todos os outros locais do mundo lhe surgem insuportáveis. Manhattan, a "Grande Maçã", é assim o seu local de eleição, as ruas, as casas, as pessoas, os bares que ele conhece como as suas próprias mãos, que ele ama, que habita. Manhattlan está presente em quase todos os seus filmes, mas é homenageada, de forma muito directa, em Manhattan, filme de 1979, rodado a preto e branco com a magia das coisas que se amam. Mas Manhattan é mais do que isso. E também uma viagem por outras paixões, as mulheres da sua vida, por exemplo, mas o cinema e os cineastas da sua particular estima, a música do seu fascínio, o jazz e Gershwin... Um filme de amor, portanto, por onde se dispersam ainda algumas ferroadas venenosas que se dirigem a certos aspectos mais antipáticos da sociedade nova-Iorquina.
Woody Allen, judeu, é Isaac Davis, argumentista de comédias de televisão, que tem uma ligação com Tracy, estudante de arte dramática. A rapariga conta apenas dezassete anos, o que confere a Isaac uma grande insegurança. Confessa-se então a Vale, o seu melhor amigo, que atravessa igualmente uma fase difícil, pois a mulher abandonou-o, levando consigo o filho de ambos. Vale iniciou / 16 / uma relação, com Mary Wilke, por quem Isaac nutre grande amizade e afeição.

Woody Allen - Clicar para ampliar.Com esta teia de sentimentos cruzados, Woody Allen oferece-nos o retrato de um certo retrato social, suas virtudes e vícios maiores. Mas à grandeza de Manhattan, de uma perfeição formal admirável, não é alheia a fabulosa fotografia de Gordon Willis e ainda a notável composição de um elenco feminino, dirigido com mão de mestre, onde sobressaem Diíane Keaton, Mariel Hemingway, Meryl Streep (num papel de início de carreira) e Anne Byrne.
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12. «Recordações»

Que «Stardust Memories» é um filme contra o espectador parece-nos evidente. Mas há muitas formas de se estar contra o espectador e esta revelada por Woody Allen não nos parece a mais interessante, sequer legitima. Tentaremos explicar porquê.

De que fala «Recordações»? De um cineasta, Sandy Bates (interpretado por W. A.), que começou a sua carreira como autor de comédias, depois enveredou por um cinema «mais sério», e é unanimemente considerado «um génio por toda a gente, que o persegue por todo o lado com as questões mais estúpidas, as maiores impertinências, quebrando toda a sua privacidade. Enquanto isto, Sandy Bates roda o seu oitavo filme (os sete primeiros são estudados num «seminário» frequentado por uma multidão de monstruosas personagens que se albergam no Stardust Hotel, numa estância de veraneio). Mas, apesar do êxito do cineasta, os produtores querem impor-lhe cortes e substituições do seu novo trabalho. Acossado por todos, inquieto e instável, Sandy Bates chama em seu socorro uma, duas, três mulheres (Charlotte Rampling, Marie Christine Barrault, Jessica Harper), a quem manuseia com um secreto à-vontade e uma total ausência de escrúpulos.

Deste enunciado (que não procura resumir o filme, mas apenas oferecer um ponto de partida para uma meditação rápida) que se poderá concluir? Primeiramente, que ele não foge muito da linha dos últimos filmes do autor. Depois de uma primeira fase da sua carreira, abertamente cómica, na tradição do burlesco americano (Groucho Marx, Buster Keaton, Stan Laurel, Chaplin, etc.), Woody Allen, fervoroso admirador de Ingmar Bergman e Frederico Fellini (representantes máximos do cinema europeu solidamente credenciado no mundo da cultura) deixa-se tentar pelo estilo dos mestres («Annie Hall»; «Intimidade» ou «Manhattan» são obras obviamente influenciadas, sobretudo por Bergman). «Recordações» vai, no entanto, mais longe, perdendo em originalidade, em «americanidade», a troco de uma mais vincada influência da dupla Bergman-Fellini. O Bergman de «Morangos Silvestres», o Fellini de «8 1/2», estão presentes em muitas das sequências, tornando-se referências obsidiantes. O que é tanto mais incómodo para o espectador, quanto eles parecem surgir para legitimar a proposta «cultural», «séria» e «grave» de Woody Allen. Senão, não se compreenderia a forma como renega indirectamente os seus anteriores filmes cómicos, pondo diversas personagens, particularmente grotescas, a perseguir o actor-autor com frases como «Os seus filmes cómicos é que eram bons!» A sensação é de que Woody Allen se sente algo inferiorizado com essas constantes referências à sua obra passada, agora que faz filmes arraçados de Bergman e Fellini. Mais uma vez a cultura americana se deixa colonizar infantilmente pela velha Europa.
Por outro lado, a visão que Woody Allen dá do mundo que o rodeia é de um negativismo total. Sandy Bates, o geniozinho incompreendido e perseguido, a quem os odiosos capitalistas pretendem desvirtuar os filmes (segundos as próprias entrevistas de / 18 / W. A., este não tem os mais pequenos problemas com a United Artists que lhe produz os filmes), encontra-se rodeado por uma humanidade monstruosa que o submerge na sua mediocridade e estupidez.

Sandy Bates vive bem, tem um apartamento luxuoso, um Rolls Royce, tudo o que quer (tudo idêntico a W. A.), mas sente-se profundamente mal, por não encontrar interlocutores à altura. É esta visão, de um narcisismo monstruoso, que nos revela um autor em profunda crise, que é inquietante, vinda de Woody Allen. O desprezo que estas «Recordações» revelam da parte de um cineasta em relação ao seu público é algo de patológico. Sobretudo quando a esse desprezo corresponde uma acentuada segurança em si próprio: «Recordações» é, entre os últimos de Woody Allen, aquele em que o protagonista surge mais seguro de si próprio, descarregando para os outros todos os aspectos críticos.

Finalmente «Stardust Memoríes» é um filme que se coloca subtilmente no plano da chantagem com o seu futuro espectador: ou aceitas o filme que vês como genial, ou és um atrasado como todos esses «freaks» que aparecem ao longo da obra.

O certo é que o próprio autor sente o impasse: Foi filme mal entendido. Mas, uma vez mais pode ter sido um problema meu, o não ter tido a habilidade de o tornar claramente entendível.

(...) Admito que uma quantidade de gente que viu o filme saiu a pensar: este é um filme em que o Woody Allen odeia os seus fans, estúpidos, pegajosos e grosseiros. Ora de facto isso não é verdade.

Não é assim que eu sinto. Nem tenho essa quantidade de fans, nem eles são pegajosos. Eu queria fazer um filme sobre um personagem totalmente fictício- Eu explico: um tipo que tinha toda as armadilhas exteriores do sucesso − um apartamento, uma limousine, um «chauffeur», fama, um séquito, tudo isso. E, no entanto, estava à beira da depressão. Ele estava completamente doente. Nenhuma destas coisas aconteceu comigo por acaso, mas o que se passou foi que as pessoas pensaram que o tipo era eu.

(...) Muita gente que viu o filme pensou que este Sandy Bates era o Woody Allen e que detestava toda a gente. E quem era este tipo para possuir um apartamento, uma «Iimousine» e uma atitude arrogante? Claro que eu não estava a ter nenhuma atitude arrogante.

Pelo contrário, a minha atitude foi a de tomar o público seriamente. Penso que o público é tão inteligente quanto eu. Ou ainda mais.


13. «Comédia Erótica de Uma Noite de Verão»

O certo é que A Midsummer Night's Sex Comedy, o seu filme seguinte, se afasta do ambiente desse último título e retoma o melhor de Woody Allen, o seu gosto pelos clássicos, a sua admiração por Bergman, é certo, mas também por uma certa tradição literária russa, tal como já havia acontecido em Nem Guerra, Nem Paz.

Há, em Midsummer Night's Sex Comedy, uma ambiência tchekoviana que banha toda a obra e, apesar de se manter um certo pessimismo na análise das relações humanas, a verdade é que o / 19 / espaço se tornou mais habitável num tom de «vaudeville» que relembra as comédias de Feydeau, nomeadamente «Hotel Paraíso».

A Midsummer Night's Sex Comedy fala-nos três casais que se encontram numa casa de campo, seis personagens carregadas de frustrações e traumas que, em contacto com a natureza bucólica que os rodeia, em contacto consigo mesmo, se revelam tal qual são, nalguns casos deixando cair a máscara que ostentavam (como acontece com o velho professor catedrático, filósofo do «pragmatismo conceptual», que tem sempre uma última palavra a dizer sobre todas as matérias e, que acaba sucumbindo a uma «escapadela» mais violenta), noutros «descobrindo-se» (vejam-se os restantes exemplos de figuras encobertas pelo preconceito, pelo trauma, pela simples ideia que, de si mesmo, querem fazer, e que acabam por descobrir face da sua personalidade). Neste jogo de desejos inconfessados, que lentamente se confessam, de insatisfação latente, que progressivamente se afirma (o caso de Andrew − Woody Allen − é lapidar: casado com um mulher de quem alguns equívocos o afastaram, descobre um velho amor de juventude, que julga uma «oportunidade perdida», mas, depois de uma noite de amor, verifica que essa história antiga já nada lhe diz), o personagem incarnado por Woody Allen assume-se como um despoletador de consciências adormecidas, funcionando como o Puck da comédia de Shakespeare, verdadeiro condutor do jogo, ainda que de uma forma inconsciente.

Com A Midsummer Night's Sex Comedy Woody Allen regressa ao melhor do seu humor, desta feita adaptando ao seu estilo e à sua visão do mundo, uma célebre peça de William Shakespeare, O Sonho de Uma Noite de Verão, que já servira de base a Ingmar Bergman para a sua comédia Sorrisos de Uma Noite de Verão. Aliás, falar em adaptar Shakespeare não será inteiramente verdade, dado que nos parece muito mais óbvia adaptação de Bergman, portanto um contacto com o clássico empreendido através do cineasta sueco que tanto tem condicionado ultimamente a carreira de Woody Allen. Realmente, e sobretudo a partir de Annie Hall, mais vincadamente em Manhattan e Interiors, de forma paroxista em Recordações, Ingmar Bergman não tem deixado de estar no pensamento de Woody Allen que refere o mestre directamente, ou de forma velada, através de directas citações ou sentidas homenagens.

Com excelentes imagens de Gordon Willis, num colorido de tons dourados, que empresta às paisagens e aos interiores uma auréola de quadro idealizado por um pintor de tonalidades quentes, mas doces, esta Comédia Erótica de Uma Noite de Verão revela-nos, novamente, um Woody Allen bom observador da «comédia humana» excelente retratista de mulheres (Mia Farrow, Jane Alexander e July Hagerty, são excepcionalmente dirigidas, com subtileza e pudor), órfão solitário num universo de amores desencontrados, onde a impossibilidade de relação é quase total, mas onde continuamente se procura uma saída, ainda que por formas desajeitadas, prevalecendo, no entanto, uma enorme candura por detrás da fina ironia do seu humor.
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14. «Zelig»

Zelig é o décimo segundo filme de Woody Allen. Trata-se de um projecto que lhe levou vários anos a pensar e a concretizar, dado que já trabalhava nesta obra quando rodou uma Comédia Sexual Numa Noite de Verão. Mas a própria natureza de Zelig obrigava a este tempo de preparação e a uma elaboração particularmente demorada. O filme, um projecto único e extremamente difícil de conceber, assemelha-se a uma paciência chinesa, obra de miniaturista que se entretém na composição de um puzzle de que vai forjando a umas às outras se completarem e, no final, permitir uma versão global de uma figura e de uma época. Figura fictícia e metafórica, época bem real e documentada − os anos 20 e 30 − nos Estados Unidos da América.

Zelig é, pois, uma figura de ficção que Woody Allen nos faz passar por uma personagem com existência real. Começa logo por nos dizer que F. Scott Fitzgerald a ela se refere nos seus romances, e a partir dai a obra vai acompanhando o itinerário deste homem que apaixonou a América, tornando-se num dos seus «enigmas» científicos. Porque Leonard Zelig tinha características estranhas: adquiria o aspecto físico e mental daqueles com que se encontrava
no momento. No meio de gordos era gordo, em conversa com chineses era chinês, cantando com negros era negro, em foco o lado onde entrasse logo adoptava as características dominantes. Nunca, porém, mudara de sexo, mas todos lhe começaram a chamar o homem «camaleão», em função desta sua inclinação para se adaptar ao ambiente e nele passar despercebido.

A medicina interessa-se por Zelig, e uma médica psiquiatra, Eudora Fletcher, procura uma explicação psicológica para este comportamento. Um dia, descobre que Zelig faz tudo isto para se tornar simpático, para que os outros gostem dele. Mas um par de oportunistas transforma Zelig em fenómeno de feira a explorar economicamente. Até que um amuo fatídico volta a colocar Zelig, nos braços da sua médica. Que o cura. Zelig é, então, o herói querido da América, a «terra das oportunidades». Mais tarde, voltará a sê-lo, quando consegue uma proeza de monta, atravessando o Atlântico num avião, sem brevet, e pilotando-o de cabeça para baixo, o que o leva a confessar que «nada é impossível a um verdadeiro psicopata».

Mas com a mesma velocidade com que a América fez de Zelig um herói, destrói-o. Várias mulheres surgem afirmando que o «homem camaleão» se casara com elas em alturas diferentes, sob várias personalidades. É o escândalo, e Zelig regride. Sente-se ameaçado e volta a esconder-se debaixo da aparência de outros. A parábola parece evidente. Há qualquer coisa de kafkiano em todo este processo. Woody Allen sabe-o e aproveita inteligentemente esta estrutura metafórica para sobre ela erguer um filme fascinante.
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Clicar para ampliar.Fascinante ainda pelo trabalho de montagem, de manipulação de elementos de diversas origens. Apresentando-se quase como uma reportagem, um inquérito sobre um homem (um pouco à maneira de O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles), Zelig mistura, com uma habilidade prodigiosa, documentos da época com outros forjados, recria um filme dos anos 50 (a que deu o título The Changing Man) , que o «homem camaleão» surgira, evoca-o através de canções e de todo o folclore americano destinado aos seus ídolos, arquiva testemunhos de várias personalidades abordando o caso de Zelig (e entre essas personalidades estão, em carne e osso, Saul Bellow, Susan Sontag ou Bruno Bettelheim, que aparecem como eles próprios), transformando impressionante sobre a manipulação da imagem e do som. Aliás, em muitos aspectos, recorda a estrutura de Cliente Morto Não Paga a Conta, com uma substancial diferença: enquanto no filme de Gari Reiner os excertos de filmes antigos comandavam o andamento da obra, neste é a obra que assimila os documentos que procura e os integra na sua própria progressão. A maestria é total.

Brilhante será a designação apropriada para este exercício de talento e de manipulação. Brilhantismo que alguns acham mesmo excessivo, e que outros acusam de um desmedido narcisismo (Woody Allen oferece-se como o centro do mundo). Num caso como noutro, Zelig é ainda uma obra extremamente significativa quanto à personalidade do seu autor. E até por isso mesmo importante.
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15. «O Agente da Broadway»

Em 1984, Woody Allen é, incontestavelmente, um dos grandes cineastas contemporâneos. Não deixa de ser sintomático ver títulos seus, anualmente, em quase todas as listas dos melhores do ano, escolhidos por críticos da América ou da Europa, o que dá bem ideia do reconhecimento público do seu trabalho. Mas Woody Allen é também um homem de uma inteligência fria e de um humor mordaz que por vezes coloca as suas obras no limite do suportável, quando não ultrapassando-o mesmo, como no caso de Recordações (Stardust Memories), onde o racionalismo do autor suplantou por completo a emoção, envolvendo-a numa teia de sentimentos contraditórios que transformaram o título numa obra desagradável, agreste, impopular. Todo o cinema de Woody Allen oscila entre a razão e a emoção, com momentos em que pende mais para um lado ou para o outro. Em Stardust Memories a arrogância da sua postura intelectual perante o seu próprio público ter-Ihe-á trazido problemas. Com a Broadway Danny Rose atinge um momento de consagração, deixando o coração falar mais alto do que a frieza crítica do seu raciocínio.

Broadway Danny Rose é, talvez os melhores Woody Allen de sempre. Atrás de si fica a lição de Chaplin, uma emocionante mescla de riso e de lágrimas, de humor e amor pelo próximo. É evidente que Woody Allen não denuncia a uma postura crítica e agressiva em relação a certos aspectos da realidade que enfoca. Mas existe em olhar de grande ternura para com os seus semelhantes, o que transforma o filme num momento único ma história da moderna comédia americana.

Broadway Danny Rose vem na continuação de Zelig, com que se mantém algumas afinidades de tom, mesmo na tentativa de esboço de um período. O mesmo preto e branco obsessivo, restituindo as cores dos filmes dessas épocas, o mesmo esforço de integração de personagens ficcionados nesse clima histórico. Broadway Danny Rose é o retrato de um «agente» da Broadway, um pequeno «agente» de artistas sem renome e sem cotação, que ele vai procurando impor um pouco por todo o lado, lutando por eles com o ardor e a abnegação de um verdadeiro pai, quer se trate de um velho cantor de charme, às voltas com a mulher e a amante e as bebedeiras que o medo engendra, quer se trate de um ventríloquo ou de um xilofonista sem futuro. Por todos luta sem desânimo. Quando, porém, os consegue impor e transformá-los em artistas de êxito garantido, eles são os primeiros a abandoná-lo, trocando-o por outro empresário mais de acordo com a sua condição actual de vencedores. Danny Rose nunca passará de um poeta diabo, mas, na noite de Natal, no seu velho quarto, encontrará a força suficiente para reunir os amigos que são todos os seus clientes que esperam uma oportunidade e confiam na sua palavra.
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A juntar a esta história, uma outra que parte de um quiproquo e conduz o agente até às mãos da Mafia. Tomado por outro, Broadway Danny Rose será perseguido e quase aniquilado, será traído pela mulher que Lou Canova lhe confiou, mas, apesar de tudo, não desanima, regressa sempre, disposto a transformar os outros no sucesso que lhe está vedado a ele próprio. É esta imagem de obstinada decisão e de generosa entrega a um ofício e ao espectáculo que faz de Danny Rose motivo de conversa entre velhos oficiais do mesmo ofício que o convocam através de pequenas histórias e chistes, que o filme de Woody Allen ilustrará depois.

Clicar para ampliar.Admiravelmente estruturado, interpretado com meticuloso cuidado por Woody Allen, Mia Farrow e Nick Apoio Forte, para lá de contar com a presença de muitos outros artistas do musichall americano, Broadway Danny Rose tem ainda uma contribuição decisiva da fotografia de Gordon Willis, o mesmo que já assinara Zelig com iguais resultados. Mas o mais surpreendente, e o mais notável, neste título de Woody Allen é a emoção que dele se liberta, conduzida com a mão de mestre por um homem que parece, finalmente, decidido a pactuar com os sentimentos e a aceitar deixar-se envolver por eles. Depois de Chaplin e Buster Keaton, eis Woody Allen no caminho.
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16. «A Rosa Púrpura do Cairo»

Esta «Rosa Púrpura do Cairo» é bem o tipo de filme que gostaríamos de dizer muito pouco; apenas o essencial: veja, não perca, trata-se de uma obra genial. E tudo isto porque, por muito pouco que se diga, haverá sempre algo que pode «estragar» o impacte do leitor com a obra, abalando a surpresa que deverá ser total.

Woody Allen volta a realizar um filme onde não surge como actor, o que já havia sucedido em Intimidade, mas nessa altura enveredando por uma linha muito bergmaniana. Agora, depois da sua ligação com Mia Farrow, Woody Allen parece ter adquirido uma outra serenidade, uma maior confiança em si e nos seus semelhantes, o seu cinema deixou de ser tão cínico e pessimista, passou a desenvolver-se noutros terrenos, numa linha de inspiração mais chaplinesca, mais humana. mais fraterna, onde valores e sentimentos como a ternura, o amor, a amizade, a simpatia tudo parecem envolver e ultrapassar os seus contrários.

Depois, cinéfilo confesso, Woody Allen faz em Rosa Púrpura do Cairo a mais bela e a mais sincera das homenagens ao cinema: sem cinema a vida seria quase impossível de viver, e mesmo quando se descobre que o cinema nada mais é do que fantasia imaginada numa tela branca, mesmo nessa altura ele continua a ser necessário. É evidente que Woody Allen fala de cinema, mas poderia falar de Arte ou de Espectáculo. A nós, porém, agrada-nos que ali esteja o cinema, «fábrica de sonhos», a ser saudado enquanto tal. Porque os sonhos podem ser por vezes negativos, mas são imprescindíveis. E Rosa Púrpura do Cairo demonstra-o.

Cecília, uma empregada de restaurante, casada com Monk, um desempregado que sobrevive à custa (tudo isto durante a grande depressão económica nos EUA), tem como refúgio único uma sala de cinema, pnde diariamente devora com avidez as histórias vividas por outros no écran. Um dia, porém, uma das personagens sai do «écran» e vem instalar-se junto dela, seduzida pela fidelidade da espectadora. A partir daqui tudo é possível, neste jogo fascinante
entre a realidade e a ficção, entre o vivido e o sonhado. A ideia básica desta obra de Woody Allen é realmente notável, mas não é menos notável a forma como ela é desenvolvida até final, num inteligente jogo de espelhos, com a Alice colocada do lado de cá, sendo visitada por uma figura desse país das maravilhas que é o cinema.

Tom Baker, a personagem de explorador destemido que sai do filme e se instala na vida real, confronta-se igualmente com Gil Shepherd, o actor que lhe deu vida (e que se chama, na realidade, Herman Bardeberian!). A fuga de Tom Baker do universo de imagens animadas provoca duas tempestades: uma no próprio filme, onde se instala a confusão, com as demais personagens procurando afirmar-se como protagonistas; outra, na realidade, com os responsáveis pelo filme − produtores, realizador, actor − a tentarem evitar o escândalo que tende a estender-se a toda a América, pronunciando o pânico generalizado. Porque o universo do cinema não pode saltar para a vida. Porque no cinema tudo é perfeito, mas não é real.
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Esta oposição entre o mundo utópico do sonho e a realidade do dia-a-dia, sobretudo num pais e num período com grandes dificuldades económicas e sociais, é muito bem dado pela câmara de Woody Allen que escolhe para o preto e branco do «filme dentro do filme» cenários exóticos − Cairo, Marrocos, Tânger − referências exaltantes, personagens imaculadas e situações de excepção, e para a cor do seu filme, cenários de angustiante desespero e desalento. Por isso, quando desce à realidade, Tom Baker não se adapta (Cecília diz-lhe mesmo: «Você não se aguenta fora do écran»). Ele leva Cecília a dançar, ela leva-o a comer pipocas. Ele dá-lhe champanhe a beber e paga uma refeição com dinheiro falso, ela mostra-lhe a sopa dos pobres, a prostituição, a miséria de certos bairros populares. Quando Monk, o marido de Cecília, o desafia para um combate de boxe, Tom Baker bate lealmente, mas o outro arruma-o com um golpe baixo. Ele salta para um carro e julga pô-lo em andamento sem mais aquelas, tal como no cinema, ela mostra-lhe uma mulher grávida e ele explica que, no cinema, "o amor se faz em fusão» (isto é: quando se aproxima a altura do acto amoroso, o realizador escolhe "a fusão em negro» q6e alude a situação e a deixa subentendida).

Mas «A Rosa Púrpura do Cairo» não é só importante por este jogo de espelhos entre a realidade e o mito, níveis que se não podem trocar ou inverter (quando Cecília visita» o filme dentro do filme» provoca outras tantas situações conflituosas, pois altera a ordem estabelecida: "esta mesa é sempre para 6, não pode ser para 7», diz-lhe o empregado do restaurante). Ele é igualmente uma muito interessante retrato de mulher e da sua condição, com um marido que a maltrata, a expolia, vegetando em casa, com jogo, mulheres e bebida, enquanto Cecília procura formas de subsistência. A sua imagem pelo cinema é assim um percurso iniciático que a levará a descobrir a si própria e a melhor entender o mundo que a rodeia (e a mentira desejada que é o cinema). Por isso, quando no final regressa à sala escura para ver Fred Astaire num momento de suprema magia sabe o que a espera - o cinema é um sonho, uma mentira, mas algo em que, apesar de tudo, é preciso acreditar para se suportar a existência. É através da arte que se estabelece o equilíbrio com a realidade. «A escolha é o melhor atributo do homem». Cecília escolheu.

Escolheu aceitar a vida com todos os seus problemas, porque ao fundo da rua, existe uma sala escura onde a magia é possível. Por isso ela a procura, mesmo quando sabe que está fechada e não há sessão. Por isso ela quer ver o mesmo filme que já viu, aquele em que ela sabe já o que a espera.

Obra admirável pela complexidade do que põe em jogo, «Rosa Púrpura do Cairo» é um dos mais belos filmes de Woody Allen e, simultaneamente, um dos mais fulgurantes retratos do universo do cinema. Mas Mia Farrow é aqui uma colaboradora indispensável, um suporte admirável que serve com uma sensibilidade e talento invulgares os propósitos do autor.
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Filmografia Woody Allen

Nesta filmografia estão incluídos os filmes realizados por Woody Allen, mas também todos os outros onde aparece somente como argumentista ou intérprete. Todas as funções estão devidamente assinaladas.

1965 − WHAT'S NEW PUSSICAT? (Que Há de Novo, Gatinha?), de Clive
            Dinner W. A.: Argumentista e intérprete.
1966 − WHAT'S UP; TIGER LILY?; de Senkichi Taniguchi. W. A.: Supervisor
           de realização, co-argumentista e intérprete.
1967 − CASINO ROYALE (Casino Royale), de John Huston, Ken Hughes,
           Ken Hughes, Vai Guest, Robert Parrish e Joe McGrath.
           W. A.: Co-argumentista e intérprete.
1969 − DON'T DRINK THE WATER (Não Metas Água), de Howard Morris.
           W. A.: Co-argumentista, adaptação de uma peça teatral de
           Woody Allen;
           - TAKE THE MONEY AND RUN (O Inimigo Público Nº 1).
           W. A.: Realizador, co-Argumentista e intérprete.
1971 − BANANAS (Bananas). W. A.: Realizador, co-argumentista e intérprete.
1972 − PLAY IT AGAIN, SAM (O Grande Conquistador), de Herbert Ross.
           W: A:: Argumentista, segundo peça teatral de sua autoria, e intérprete.
           - EVERYTHING YOU ALWAYS WANTED TO KNOW ABOUT SEX
           BUT WERE AFRAID TO ASK (O ABC do Amor).
           W: A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1973 − SLEEPER (O Herói do Ano 2.000). W. A.: Realizador, co-argumentista
            e intérprete.
1975 − LOVE AND DEATH (Nem Guerra, Nem Paz). W. A.: Realizador,
           argumentista e intérprete.
1976 − THE FRONT (O Testa de Ferro), de Martin Rit!. W. A.: Intérprete.

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1977 − ANNIE HALL (Annie Hall). W. A.: Realizador, co-argumentista
           e intérprete.
1978 − INTERIORS (Intimidade). W. A.: Realizador e argumentista.
1979 − MANHATTAN (Manhattan). W. A: Realizador, co-argumentista
           e intérprete.
1980 − STARDUST MEMORIES (Recordações).
            W. A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1982 − A MIDSUMMER NIGHT'S SEX COMEDY (Comédia Erótica de
           Uma Noite de Verão). W. A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1983 − ZELlG (Zelig). W. A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1984 − BROADWAY DANNY ROSE (O Agente da Broadway).
           W. A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1985 − THE PURPLE ROSE OF CAIRO (A Rosa Púrpura do Cairo).
           W. A.: Realizador e argumentista.
1986 − HANNAH AND HER SISTERS (Ana e as suas Irmãs).
            W. A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1987 − RADIO DAYS(Os Dias da Rádio). W. A.: Realizador, argumentista
            e intérprete.
           - SEPTEMBER (Setembro). W. A.: Realizador e argumentista.
1988 − ANOTHER WOMAN (Uma Outra Mulher). W. A.: Realizador
           e argumentista.
           - NEW YORK STORIES (Histórias de Nova Iorque), de
            Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Woody Allen.
            W. A.: Realizador, argumentista e intérprete de um episódio.
1989 − CRIMES AND MISDEMEANORS (Crimes e Escapadelas).
            W. A.: Realizador, argumentista e intérprete.
1990 − ALICE (Alice). W. A.: Realizador e argumentista.
1991 − SCENES FROM A MALL (Cenas Conjugais), de Paul Mazursky.
           W. A.: Intérprete.

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Videograma
Outros filmes de Woody Allen existentes em distribuição videográfica no mercado português: Casino Royale (Publivideo).
O Inimigo Público nº 1 (Ecovideo).
Bananas (Kodak-Warner).
O ABC do Amor (Kodak-Warner).
O Herói do Ano 2.000 (Kodak-Warner).
Nem Guerra, Nem Paz (Kodak-Warner).
Annie Hall (Kodak-Warner).
Comédia Sexual de Uma Noite de Verão (Kodak-Warner).
O Agente da Broadway (Publivideo).
Ana e as Suas Irmãs (Publivideo) (Casablanca-Venda Directa).
Os Dias da Rádio (Publivideo) (Casablanca-Venda Directa).
Setembro (Publivideo)
Umas Outra Mulher (Publivideo) (Casablanca-Venda Directa).
Histórias de Nova lorque (Filmayer-Alfa).

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Bibliografia
a) Sobre Woody Allen
- Erie Lax: On being Funny: Woody Allen and His Comedy, New York, Chaster House, 1975.
- BiII Adler & Jeffrey Feinman: Woody Allen, Clown Prince of American Humor, New York, Pinacle Books, 1975.
- Richard J. Anobile: Woody Allen's Play it Again, Sam, New York, Grosset & Dunlap, 1977.
- Lee Guthrie: Woody Allen, A Biography, New York Drake Publishers, 1978.
- Mauriee Yacowar: Loser Take All, The Comic Art of Woody Allen, New York, Unger, 1979.
- Michel Lebrun: Woody Allen, Paris Pac-têtes d'affiches, 1979.
- Miles Palmer: Woody Allen, New York, Proteus 1980.
- Gilles Cebe: Woody Allen, Paris, Henri Veyrier, 1981.
- Foster Hirsch: Love, Sex, Death and the Meaning of Life. Woody Allen's Comedy, New York, McGraw-Hill.
- Diane Jacobs: The Magic of Woody Allen, Londres, Robson, 1982.
- Gerald McKnight: Woody Allen Joking Aside, Londres, W. H. Allen & Co., 1982.
- Douglas Brode: Woody Allen, His Films and Career, Londres, Columbus Books, 1985.
- Robert Benayoun: Woody Allen au-delà du langage, Paris, Herscher, 1985.
- Giannalberto Bendazzi: Woody, Paris, Liana Levi, 1987.
- Thierry de Navacelle: Woody Allen, Action!, Paris, Sylvie Messinger, 1987.
- Neil Sinyard: The Fílms of Woody Allen, Leicester, Magna Books, 1987.

b) Artigos dedicados a Woody Allen
- Collectif: «Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Woody Allen sans jamais oser le demander», Télérama n° 1540 à 1545, (1979).
- Pierre Billard: «Woody Allen: drôle de rire», Le Point n° 428, (1980).
- Yves Alion & Gilles Colpart: «Woody ou Ia comédie du nombril» & «L'univers de Woody Allen», La Revue du cinéma n° 398, (1984).
- Joshka Sehildlow: «L'humour des malchanceux», Télérama n° 1813, (1984).
- Caryn James: «Auteur! Auteur! The Creative Mind of Woody Allen, The New York Times Magazine, (1986).
- Georgia A. Brown: «Much Ado About Mia», American Fílm, Março 1987.
- Tom Shales: «Woody, lhe First Fifty Years» , Esquire, Abril 1987.
- Desson Howe: «The Woman who Restructures Woody», International Herald Tribune, 13 Abril 1987.
- Raphaël Sorin: «Jean-Luc Meets Woody» , Le Matin de Paris, 18 Maio 1987.
- Robert Benayoun: «Sous le pavé, Ia fable», Positif, Julho-Agosto 1987.
- Eric Lax: «For Woody Allen, 60 Days Hath September", The New York Times, 6 Dezembro 1987.
- Alexander Walker: «Woody Allen tombe les filles et en parle», Cosmopolitan, Dezembro 1987.
- Patrick Pacheco: «Ain't Misbehavin», Premiere the Movie Magazine, Janeiro 1988.
- Jack Kroll: «What's the Matter with Woody», Newsweek, 25 Janeiro 1988.

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c) Obras de Woody Allen
. Recolhas de artigos:
- Para Acabar de vez com a Cultura - Liv. Bertrand, Lisboa, 1980.
- Sem Penas - Liv. Bertrand, Lisboa, 1981.

. Peças de teatro
- Don't Drink the Water, New York, Samuel Freneh, 1966.
- Say it Again, Sam, New York, Samuel Freneh, 1969.


. Argumentos
- Quoi de neuf, Pussycat?, Paris, Avant-scene cinéma nº 59, 1966.
- Annie Hall, Paris, Avant-scène cinéma nº 198, 1977.
- Annnie Hall, Intérieurs, Manhattan & Stardust Memorfes, Paris, Solar, 1981.
- Zelig, Broadway Danny Rose & Ia Rose pourpre du Caïre, Paris, Solar, 1987.

- Hannah et ses Soeurs, Paris, Solar, 1987.


. Artigos
- «What's nude Pussycat?», Playboy, aoüt 1965.
- «The girls of Casino Royale», Playboy, février 1967.
- «Ai-je bien lu les journaux?», Libération, 3 février 1988.
- «Woody Allen-Ingmar Bergman», Libération, 1er-2 octobre 1988.


. Discos
- Woody Allen, Colpix CP 488, 1964.
- Woody Allen, volume 2, Colpix CP 518,1965.
- The Third Woody Allen Albun, Capitol St 2986,1968.
- Woody Allen, The Night Club Years, 1964-1968. United Artists UA 9968, 1976.
- Woody Allen, Stand up Comic, 1964-1968, United Artists UA-La 849-J2, 1978.


.Entrevistas
- Gert Berghoff: Visions International, Maio 1987.
- Henry Behar: Le Monde, 18 Maio 1987.
- Claude Weill: Le Nouvel Observateur, 31 Julho 1987.
- Robert Benayoun: Le Point nº 428, 1" Dezembro 1980.
- Renaud de Dancourt: Le Point n' 573, 12 Setembro 1983.
- Catherine David: Le Nouvel Observateur, 28 Setembro 1984.
- Henry Behar: Le Monde, 17 Maio 1986.
- Jean François Duval: Libération, 20 Maio 1986.


Ficha técnica

 

Lauro António

Licenciado em História
Realizador de Cinema (
Manhã Submersa e O Vestido Cor de Fogo)
Crítico e ensaísta de cinema em diversas publicações
Autor e encenador de teatro (A Encenação)
Director dos Festivais de Cinema de Portalegre e Viana do Castelo
Coordenador do grupo «Cinema e Audiovisuais» do Ministério da Educação

 

Paginação e Grafismo

Cândida Teresa

Gabinete de Meios Técnicos e Materiais

da Direcção Geral de Extensão Educativa
Dim. 21x14,5 cm


Edição

Secretaria de Estado da Reforma Educativa

 

Composto e impresso
 na Editorial do Ministério da Educação

Algueirão


Reconversão para HTML
Henrique J. C. de Oliveira
Espaço Aveiro e Cultura
Secundária J. Estêvão
Projecto Prof2000
Aveiro - 2012

 


    O Filme

    Woody Allen - Percurso filmográfico

    1. O Homem

    2. O Inimigo Público

    1. O Homem

    3. Bananas

    4. O «Grande Conquistador»

    5. O «ABC do Amor»

    6. O «Herói do Ano 2000»

    7. Nem Guerra, nem Paz»

    8. O Testa de Ferro

    9. Annie Hall

    10. Intimidade

    11. Manhattan

    12. Recordações

    13. Comédia Erótica de Uma Noite de Verão

    14. Zelig

    15. O Agente da Broadway

    16. A Rosa Púrpura do Cairo

    Filmografia de Woody Allen

   Ficha Técnica

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20-04-2018