In: J. Leitão Ramos, A Estrada, Nº 9, Algueirão, Secretaria de Estado da Reforma Educativa, M. E., SD, 16 pp.

A Estrada

Texto de J. Leitão Ramos

Brochura acerca do filme «A Estrada» - Dim. 21x14,5 cm - Clicar para ampliar.

    O Filme

    Sinopse

    Análise do filme

    Hipótese de mapa para explorar "A estrada"

    Relações interdisciplinares

    Fellini

    Bibliografia

    Filmografia

    O cinema segundo Fellini
   Ficha Técnica

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A Estrada - O filme

Imagem do filme «A Estrada» - Clicar para ampliar.Título original: La Strada. Realização: Frederico Fellini (Itália-1954. Argumento: Frederico Fellini, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano. Fotografia: (preto e branco): Otello Martelli. Cenografia: M. Ravesco, com a colaboração artística de Brunello Rondi, assistido por Paolo Nuzzi. Figurinos: M. Mariani. Música: Nino Rota. Montagem: Leo Catozzo. Som: A. Calpini. Produção: Carlo Ponti e Dino de Laurentiis. Interpretação: Giulietta Masina (Gelsomina), Anthony Quinn (Zampano), Richard Basehart il malta, "o louco'j, Aldo Silvani (Giraffa), Marcella Rovere (a viúva), Lina Venturi (a irmã), etc. Duração: 102 minutos. Rodagem: De Dezembro de 1953 a Maio de 1954, nos estúdios Ponti-Dino de Laurentiis, em Roma, e em exteriores em Viterbo, Ovindoli, Bagnoreggio e outras pequenas cidades do centro e do sul de Itália. Estreia: Festival de Veneza de 1954. Edição videográfica em Portugal: Ecofilmes/Vídeo Colecção. A Estrada ganhou um Leão de Prata no Festival de Veneza de 1954 e um óscar da Academia de Hollywood para o melhor filme estrangeiro, em 1956.
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Sinopse

Imagem do filme «A Estrada» - Clicar para ampliar.

Chamam Gelsomina, mulher jovem mas de idade dificilmente definível, com um ar um pouco etéreo, caricato, como se dentro dela alguma disfunção a fizesse uma simples aos olhos de todos. É Zampanó que chega, na sua tranquitana, meio carroça, puxada por uma potente moto americana que já viu melhores dias. Traz a notícia de que Rosa, que um dia com ele partira, estrada fora, acompanhando-o no seu trabalho de saltimbanco, morrera e Zampanó vem perguntar se não pode agora, levar a irmã Gelsomina. Dez mil liras fecham a transacção, a mãe de Gelsomina convence-a que é melhor para todos ela ir com Zampanó.

Zampanó ensina Gelsomina a contracenar com ele, não sem alguma persuasiva violência. Apercebemo-nos que ele é um homem duro e brutal. Todavia, Zampanó não quer Gelsomina como companheira sexual, apesar de a apresentar como «sua senhora". Ela desgosta-se ao vê-lo desfrutar outras mulheres.

Um dia Gelsomina foge e vai ter a uma cidade em festa onde vê um malabarista, "Il Matto" ("O Louco"), a fazer um número cómico no arame a 40 metros do solo. Nessa noite, embriagada, vagueia pelas ruas já desertas quando surge a traquitana de Zampanó que a obriga a ir com ele.

Acordam em Roma, onde Zampanó consegue ingressar no circo miserável do senhor Giraffa, em que também trabalha "Il Matto". Gelsomina ouve, pela primeira vez uma melodia bela e triste que "Il Matto" toca num minúsculo violino e que a fascina. Mas o malabarista desde o princípio que começa a lançar piadas chocarreiras a Zampanó e, na noite da estreia, mistura-se com o público para o achincalhar. No fim do número, Zampanó persegue-o, em vão, gritando que um dia as pagará todas.

Na manhã seguinte "Il Matto" persuade Gelsomina a contracenar com ele num entremez cómico-musical que começam a ensaiar. Mas Zampanó quando chega ao acampamento, proíbe-a de trabalhar com o outro. No meio da discussão que se gera, "Il Matto" agarra num balde cheio de água e encharca Zampanó que, fora de si, corre atrás dele com uma faca na mão. Ninguém o consegue segurar, tal é a sua fúria. Mas a policia chega e prende-o.
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Giraffa resolve partir com o circo e diz a Gelsomina que pode ir com eles mas que nem Zampanó nem "Il Matto" voltarão a trabalhar com ele. Nessa noite "Il Matto" vai ter com Gelsomina. Brinca com ela e com a sua fealdade mas quando Gelsomina lhe diz que Zampanó a enche de maus tratos, que já tentou fugir mas foi inútil, que está farta de viver e que não serve para nada, "Il Matto" anima-a. Responde-lhe que, se calhar, Zampanó gosta dela mas age como os cães que parece que nos querem falar mas depois nos ladram. E diz-lhe a frase-chave do filme: "Se tu não estivesses com ele, quem estaria?». Depois conclui que não é verdade que ela não sirva para nada, todas as coisas que existem no mundo servem para alguma coisa.

No dia seguinte Zampanó sai da cadeia e encontra Gelsomina, fiel, junto à carripana. Voltam a partir. São apanhados por um temporal e abrigam-se num convento onde as freiras os deixam pernoitar no celeiro. Gelsomina toca, na corneta, a belíssima canção sem nome que ouvira a "Il Matto". E, nessa noite, diz a Zampanó que até casava com ele e que é preciso pensar que todas as coisas servem para alguma coisa. Chega a perguntar a Zampanó se gosta um bocadinho dela mas só o silêncio lhe responde.

A tempestade acorda-os a meio da noite. Zampanó vê, para lá de umas grades, objectos em prata que tenta roubar. Mas as suas mãos são demasiado grandes para passar por entre os ferros e pede a Gelsomina para ver se consegue. Ela recusa-se e ele bate-lhe.

De manhã metem-se à estrada. Encontram o carro de "Il Matto" parado, com um furo num pneu. Zampanó quer vingar-se e agride-o. Mas não mede a sua força e, sem querer, mata-o. Gelsomina ainda grita "Il Matto está mal", mas Zampanó não lhe liga. Esconde o corpo e atira o carro por uma ribanceira.

Inverno. Zampanó continua a fazer o seu número de terra em terra mas Gelsomina, transtornada, já nem para tocar o tambor serve. Cai à cama doente e Zampanó começa a ter algumas atenções para com ela. Mas Gelsomina ganhou-lhe medo e o homem, desesperado, abandona Gelsomina com a sua corneta, enquanto dorme à beira de uma casa em ruínas.

Anos depois, Zampanó está agora num circo e um dia, ao vaguear na rua, ouve uma mulher cantar a mesma melodia que fascinara Gelsomina. Procura a origem do som e pergunta à mulher onde aprendera aquela canção. Ela diz-lhe que a ouvira, há vários anos, a uma rapariga que andava por ali, febril e louca, tocando-a numa corneta. E quando Zampanó quer saber de Gelsomina, ela diz-lhe que a pobrezinha morreu.

A vida continua. O eterno número de Zampanó continua. Mas ele fá-lo agora de forma maquinal, sem garbo, como um fardo que se carrega, uma coisa que é preciso seja feita. Pela noite embebeda-se, arma brigas. E descobre o que quer dizer a palavra solidão. No termo do filme, depois de tanta dureza e de tantas bravatas, Zampanó chora.

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Hipótese de mapa
para explorar
"A estrada"

O banal diálogo que uso para epígrafe deste texto é tão comum que, por vezes, esquecemos que esse traço revela uma característica normal na maior parte de nós: quando nos falam de um filme começamos por perguntar o seu gênero, ou a sua história, queremos saber se é um «western», um filme musical, uma fita de aventuras ou uma história de amor, queremos saber se nos faz rir, tremer, chorar de alegria ou de mágoa, interrogamos o seu entrecho, tentamos reconhecê-lo num padrão que entendemos ser o nosso gosto. Essa primeira reacção da maior parte das pessoas pode-se dizer que é a única reacção, se falarmos de miúdos. Uma pessoa dificilmente perguntará o nome do realizador e mesmo os actores interessar-lhe-ão menos que o padrão geral do filme. Não haverá mal nenhum - ou, melhor, será pedagogicamente a via mais correcta − entrarmos, com eles, por um filme usando o caminho de interrogar a sua história.

É um facto que os grandes filmes − e são esses os que importa usar para formar o gosto das gerações mais novas − não se reduzem à sua história. Como qualquer obra de arte, não é o tema que faz o filme notável mas o modo como ele é tratado. Para complicar um pouco as coisas poder-se-á dizer que a larga maioria dos grandes filmes dificilmente sustenta um resumo do seu argumento. Podemos verbalizar a sua história, de fora sempre ficará o que mais importa.

Tomemos A estrada. De que fala? Ninguém de bom senso se atreverá a dizer que é a história de uma rapariga levada por um saltimbanco como sua assistente/criada − e ficará por aí. Será curto e será infiel. De qualquer modo uma primeira abordagem do filme junto de alunos do Ensino Básico e Secundário deve ir por aí. Tentar ver se os espectadores seguiram factual e fielmente a trama. Tentar que se perceba que Gelsomina foi "vendida" a Zampanó, que a sua / 7 / infelicidade não deriva tanto da brutalidade do saltimbanco como do facto de ele não ver Gelsomina como mulher completa (aspecto que poderá conter alguns melindres na exploração mas que é essencial para entender o drama daquele ser humano que quer ser inteiro e por isso se desgosta quando Zampanó se abeira sexualmente de outras e não a usa como mulher). Tentar entender a paisagem humana popular dos saltimbancos, dos circos pobres, dos sem eira nem beira que partem cadeias de ferro, andam no arame, fazem pequenos entremezes mediocremente cómicos.

Entender, portanto, e também, as personagens. A inocência patética e comovente de Gelsomina; a dureza, a solidão de touro ensimesmado de Zampanó. Entender que, ficcionalmente, eles são talhados em diferentes pedras. A textura de Zampanó é, ainda, a de um (neo)realismo, credível, inteiro, de uma verdade comum. Gelsomina, pelo contrário, é um ser de outra realidade, um ser em estado de Graça (no sentido cristão do termo), de uma simplicidade e candura que poderemos ler como franciscana ou como clownesca, sem que ambas as hipóteses se excluam (não chamaram a Francisco de Assis o palhaço de Deus?). A estrada introduz, nessa diversidade de matrizes, uma evidência que é sempre útil explorar quando se iniciam espectadores nos meandros do cinema: a de que um filme não é um pedaço de vida, é uma ficção, uma construção livre onde a vida se inscreve mas cuia significação não é transparente, é um processo de leitura. Neste caso, a história do filme é, se virmos bem, o inverso do que parece à primeira vista e atrás, se resumiu. Antes, se nos revela ser a história de uma mulher simples que se apieda de um bruto e que tenta extirpar a mútua solidão nesse contacto.

Só depois de se percorrer o tema do filme é possível penetrar no seu corpo, no seu modo de ser. Valerá a pena começar por olhar (na sequência da atenção aos personagens) para a interpretação dos actores e aí encontrar as razões para sublinhar, com veemência, o espantoso trabalho de Giulietta Masina: o rigor gestual, a mímica facial, o jeito triste e alegre com que o personagem é inventado, para tal importando menos as palavras e muito mais o trabalho de composição com o corpo. Será útil, ainda, atentar no incrível guarda-roupa de que o filme se serve, reparando que quase nada ali é pensado em termos de "verdade" mas em termos de utilidade dramática.

Importará, certamente, convocar para a discussão o papel da música em A estrada. Porque o seu funcionamento − em especial o celebérrimo tema de Nino Rota que Gelsomina traz na cabeça − é relativamente incomum. A música começa por ter uma mera utilização de acompanhamento (secundário) da imagem e dos diálogos para, depois, ter uma função dramática precisa no conflito entre Gelsomina, Zampanó e "Il Matto" (O louco"), até ganhar uma autonomia expressiva, representando todo o sonho de harmonia (de libertação interior) de Gelsomina e, por fim, na ausência da personagem, a própria Gelsomina, como que resumida em matéria sonora.
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A toda a orquestração de tudo chamaremos "realização". E dar-se-á assinatura: Fellini (menos pelo vício de impingir nomes que pela necessidade de ser justo e sublinhar que cada filme tem um autor). Não será estulto, numa fase mais avançada, revisionar excertos de A estrada e começar a interrogar outras matérias: a composição dos planos, os movimentos de câmara, as "rimas" insólitas (como o cavalo solitário que passa na rua onde Gelsomina, abandonada, espera; o miúdo anormal e escondido na quinta...).

O mapa, a partir daqui, dispersa-se em inúmeros caminhos. Ideológicos, também, porque é possível olhar A estrada pondo a tónica no social (há toda uma paisagem da realidade italiana do pós-guerra que está em plano de fundo) ou no personalismo cristão (o encontro entre pessoas como pacificação e entendimento, como purificação interior, caminho para o Bem). Das rotas que se podem percorrer não há roteiro estabelecível. O caminho faz-se a andar...

 

Relações Interdisciplinares Clicar para ampliar.

É nas áreas relativas à Filosofia e à Educação Moral que mais fácil se tornará prolongar os ecos do filme, conforme se extrai facilmente do texto anterior. Talvez seja forçar a nota pretender que A estrada funcione num registo hipoteticamente ilustrativo da História Contemporânea (a Itália no pós-guerra) de que haverá, certamente, exemplos muito mais ricos. Mas não será inútil considerá-lo como passível de exploração em áreas relativas à Educação Musical (a música como arte evocativa de imagens, sentimentos, estados de espírito, linguagem de leitura jamais unívoca) e, claro, à Educação Visual, tal como qualquer relevante filme da História do Cinema. Ensinar a ver cinema poderia passar curricularmente por aí.
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Fellini

Fellini - Clicar para ampliar.
Nasceu em Rimini, na costa adriática da Itália, a 20 de Janeiro de 1920. Teve uma rígida educação católica tradicional, primeiro com as freiras de San Vicenzo, depois com os padres Carissimi, num colégio em Fano. Do que foi a infância e adolescência de Fellini deixou-nos ele numerosos «flashes» em vários filmes (Amarcord, sobretudo), certamente moldados pelo talento de contador-de-histórias e pelo mentiroso inveterado que assume ser «apaguei as minhas recordações e agora já não sei distinguir o que aconteceu na verdade e o que inventei. A verdadeira recordação sobrepõem-se a recordação dos cenários pintados, do mar de plástico e as personagens da minha adolescência riminesa são como que empurradas às coto veladas pelos actores ou por outros personagens que as interpretam nas reconstruções cenográficas dos meus filmes,,). Mas é certo que não lia os clássicos, que não se dedicava a ver o cinema dos mestres «<vergonhosamente devo confessar que nunca vi Mumau, Oreyer, Eisenstein,,) e que não era um bom aluno. Na escola aprendia pouco mas, em compensação, divertia-se muito, conforme afirmou a Giovanni Grazzini.

E desenhava. Caricaturas, nos cafés de Rimini, e também cartazes para o cinema Fulgor. Com dezassete anos arranjou emprego num jornal de Florença, o «420», onde foi «qualquer coisa entre contínuo e secretário de redacção". E ainda não tinha feito dezanove quando partiu para Roma, prometendo à mãe que havia de se inscrever na universidade mas, na realidade, prometendo a si mesmo qualquer coisa parecida com actor ou jornalista. Empregou-se no jornal satírico «Marc' Aurelio» e trabalha, trabalha muito (oitocentos artigos, entre 1939 e 1942, fora os desenhos que também ia publicando), enquanto vai sorvendo a vida às golfadas pelas noites da cidade. Conhece gente, gente do espectáculo, torna-se amigo de Aldo Fabrizi, começa a escrever apontamentos cómicos para o palco, «gags» para os filmes de Mario Mattàli. Eram os anos de guerra, a que o jovem Frederico consegue furtar-se, recorrendo a médicos amigos, a doenças inventadas. Quando, por fim, parecia que não havia nada a fazer senão marchar para um regimento qualquer e partir para um qualquer combate, os americanos desembarcam. Por essa altura já Fellini começara a trabalhar como argumentista em filmes menores e, em 1943, casara com Giulietta Masina.

O grande salto em frente acontece com o encontro entre Fellini e Rossellini. Através de Fabrizi, indigitado para protagonista de Roma Cidade Aberta, o jovem Frederico conhece Roberto e com ele vai iniciar uma estreita colaboração, como co-argumentista e assistente de realização que vai durar alguns anos. Entretanto torna-se argumentista profissional. Mas, para realizador, não se sente
"nem votado nem vocacionado".

O modo de Rossellini trabalhar convence-o, porém ("Instintivo, despreocupado, muito pouco dependente das codificações teóricas, das convenções férreas e vazias, precisamente porque era o seu / 11 / estilo que ele procurava seguir, a exactidão da sua expressão"). Em 1951 Lattuada convence-o a co-realizar Luci del varietà. E, no ano seguinte, tem a sua primeira experiência a solo com O cheik branco. "No primeiro dia de filmagens foi um fracasso total, não rodei sequer um enquadramento", confessará muitos anos depois.

O filme é um semi-fracasso e, no clima marcado pela pureza e dureza do neo-realismo do pós-guerra, um descentrado na sua sátira aos romances cor-de-rosa. Os inúteis, que roda logo a seguir é, todavia, um sucesso quer de bilheteira, quer de critica (Leão de Prata no Festival de Veneza). Fellini começa aí um trabalho de inventor de uma memória tristalegre que havia de marcar profundamente o conjunto da sua obra, através da história de um grupo de adultos adolescentes tardios, numa pequena cidade de província, perdidos à entrada do que deveria ser um princípio de maturidade. Mas foi preciso chegar A estrada para que a glória de Fellini verdadeiramente começasse. A estrada ganhará um prémio em Veneza, trará a Fellini um óscar da Academia de Hollywood (melhor filme estrangeiro), será exibido em praticamente todo o mundo com um êxito imenso.

Mas o grande cinema de Fellini, aquele que o consagraria como um mestre barroco da coral idade italiana, como demiurgo de um universo particularíssimo, grotesco e arrebatado, entre memórias, mitos, visões e o seu ego no coração de tudo, teria que esperar pelo fim dos anos 50. La dolce vita é a girândola inaugural. Nela Fellini inventa uma Roma decadente e belíssima e uma Via Veneto que só depois do filme feito começou a querer ter a realidade que o realizador lá pusera e faz, de Anita Ekberg, a mulher-mito da década. Depois vem Fellini 8 e 1/2, o filme-padrão de todas as introspecções: um cineasta, sem matéria para um filme, filma as suas próprias indecisões e fantasmas. Parece que, quando o começou a rodar, Fellini não sabia de facto que filme fazer...

A fama do realizador atinge o auge. De Leste a Oeste e de Norte a Sul ele é considerado o Artista maiusculado por excelência de uma forma de expressão onde a maior parte do público ainda só entrevê saltimbancos. Começam as obras da megalomania e da desmesura, os cenários imensos, a realidade moldada pelas luzes, pelos carpinteiros e pelos maquinistas dos maiores estúdios da Cinecittà. Começam a contar-se lendas sobre as exigências maníacas do cineasta, sobre os rios de dinheiro que os seus filmes custam, sobre a interminabilidade das rodagens. E ele vai edificando monumentos: Satiricon, Roma, Amarcord, Casanova, O navio... Mas também obras mais íntimas e comoventes (Os Clowns, Ensaio de Orquestra, Ginger e Fred). E Entrevista, provisória cúpula cinéfila, reencontro de amigos, profissão de fé no fascínio do cinema como edifício artificialista, entre o impulso circense, as luzes das variedades e os arcanos da memória, entre a verdade e a mentira, duas categorias que, vistas bem as coisas, não fazem nenhum sentido numa obra cuja matéria forte, primeira e indiscutível é a ficção, o gosto de contar as mais belas e insólitas histórias e nelas se meter por inteiro. No fundo, todos os ficcionistas fazem isso. Fellini apenas explicita o facto.
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Bibliografia Imagem do filme - Clicar para ampliar.

Quer sobre A estrada quer sobre Frederico Fellini a bibliografia publicada é imensa. Uma boa fonte repertoriando essa vasta bibliografia são as "entradas" referentes ao filme e ao realizador em The International Dictionary of Films and Filmmakers, edited by Christopher Lyon, Papermac, Londres, 1984, respectivamente nos volumes 1 (Films) e 2 (Directors), onde os mais interessados poderão encontrar detalhadas informações.

De qualquer maneira, sobre A estrada, consultar-se-á a planificação rigorosa publicada pela revista L'Avant-Scéne du Cinéma, Paris, Abril de 1970, bem como algumas das críticas da época, em particular as de Edoardo Bruno em Filmcritica, Agosto/Setembro de 1954, de Dominique Aubier em Cahiers du Cinéma, Julho de 1955, de Robert Benayoun em Positif, n.º 1, 1955, a de Guido Aristarco em Cinema Nuovo, 10 de Novembro de 1954, a de Gavin Lambert em Sight and Sound, Janeiro/Março de 1955.

Sobre Fellini poder-se-ão ler, com proveito, vários livros, desde o pioneiro Frederico Fellini de Renzo Renzi, Bolonha, 1956 a Frederico Fellini de Gilbert Salachas, Paris, q963 ou a Frederico Fellini: The Search for a New Mythology de Charles Ketcham, Nova lorque, 1976. Em português citem-se Fellini por Fellini, uma entrevista de Giovanni Grazzini, ed. Publicações D. Quixote, Lisboa, 1985 e a colectânea de textos do realizador Fellini conta Fellini, ed. Livraria Bertrand, Lisboa, 1982.

Quer as colecções das revistas, quer os livros citados poderão ser encontrados na Biblioteca da Cinemateca Portuguesa, aberta ao público todos os dias úteis, das 14h00 às 20h00, na Rua Barata Salgueiro, n.º 39 - 1200 LISBOA

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Filmografia

Como gagnan de Mario Mattàli:

1939 - Lo lo vedi come soi... lo vedi comme se?! de Mario Mattoli;
1940 - Non me lo direi de Mario Mattàli;
          II pirata sono io! de Mario Mattàli.

Como argumentista (quase sempre co-argumentista):

1941 - Documento Z3 de Alfredo Guarani (não creditado no genérico);
1942 - Avanti c'e posto de Mario Bonnard (não creditado no genérico);
          Chi I'ha vistro? de Godofredo Alessandrini;
          Quarta pagina / O mistério da quarta página de Nicola Manzarinii;
1943 - Apparizione de Limur (não creditado no genérico);
          Campo dei fiori de Mario Bonnard;
          Tuta la città canta de Riccardo Freda;
          L'ultima carrozzella de Mario Mattàli;
1945 - Roma, città aperta / Roma cidade aberta de Roberto Rossellini (neste
          filme é também assistente de realização);
1946 - Paisà / Libertação de Roberto Rossellini (neste filme é também assistente
          de realização);
1947 - Il delitto di Giovani Episcopo / A história do meu crime de
          Alberto Lattuada;
          II passatore de Duilio Coletti;
          La fumeria d'opio de Raffaello Matarazzo;
          L'ebreo errante de Goffredo Alessandrini;
1948 - II miracolo, episódio do filme L'amore de Roberto Rossellini (neste filme
          é também assistente de realização e actor);
          II mulino del Po / O moinho do Rio Pó de Alberto Lattuada;
          In nome deIla legge / Em nome da lei de Pietro Germi;
          Senza pietà / Sem piedade de Alberto Lattuada;
          La città dolente de Mario Bonnard;
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1941 - Francesco, giulare di Dio / O santo dos pobrezinhos de Roberto
          Rossellini (neste filme é também assistente de realização);
1950 - Il cammino della speranza / O caminho da esperança de Pietro Germi;
          Persiane chiuse / Persianas corridas de Luigi Comencini;
1951 - La città si defende / A cidade defende-se de Pietro Germi;
          Cameriera bella presenza offresi / Criada, oferece-se... de Giorgio
          Pastina;
1952 - Il brigante di Tocca del Lupo / O bandido da Toca do Lobo de
          Pietro Germi;
          Europa 51 / Europa 51 de Roberto Rossellini (não creditado no genérico);
1958 - Fortunella de Eduardo De Filippo;

Como realizador:

1951 - Luci dei varietà (co-realizador com Alberto Lattuada);
1953 - I vitelloni / Os inúteis;
          Un'agenzia matrimoniale, 3º episódio do filme Amore in città/ Retalhos da
          vida (restantes episódios realizados por Michelangelo Antonioni, Dino
          Risi, Francesco Maseli, Carlo Lizzani e Alberto Lattuada),
1954 - La Strada / A Estrada;
1955 - Il bidone / O conto do vigário;
1956 - Le notti di Cabiria / As noites de Cabíria;
1960 - La dolce vila / A doce vida;
1962 - La tentazioni del dottor Antonio, 2º episódio do filme
          Bocacio '70 / Boccacio 70, (restantes episódio realizados por Luchino
          Visconti e Vittorio De Sica);
1963 - Oito e mezzo / Fellini 8 e 1/2;
1965 - Giulietta degli spiriti / Julieta dos espíritos;
1968 - Tobby Dammit, 3º episódio do filme Histoires extraordinaires / Histórias
          extraordinárias (restantes episódios realizados por Louis Malle e
          Roger Vadim);
1969 - Block-notes di un regista / Diário de um realizador;
          Fellini Satyricon / Fellini Satyricon;
1970 - I clowns / Os clowns;
1972 - Roma / Roma de Fellini;
1974 - Amarcord / Amarcord;
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1976 - Il Casanova di Frederico Fellini / Casanova;
1978 - Prova d'orchestra / Ensaio de orquestra;
1980 - La cittá delle donne / A cidade das mulheres;
1983 - E Ia nave va / O navio;
1986 - Ginger e Fred / Ginger e Fred;
1987 - Intervista / Entrevista;
1989 - La voce dela luna;

Notas: 1. Os filmes estreados em Portugal têm, a seguir ao titulo original, uma barra seguida do titulo português;

2. Frederico Fellini é sempre co-argumentista dos filmes que realiza.

Videografia complementar

Infelizmente, dado o estado deprimentemente boçal que rege a maior parte do mercado videográfico português, não é possível encontrar videocassetes contendo outros filmes italianos da época que enquadrassem A estrada, em particular os momentos fortes do neo-realismo (Roma cidade aberta e Libertação de Roberto Rossellini, Umberto D e Ladrão de bicicletas de Vittorio De Sica, Arroz amargo de Giuseppe De Santis, La terra trema e Bellíssima de Luchino Visconti) e as grandes rupturas (Escândalo de amor e A dama sem camélias de Antonioni, Sentimento de Visconti, O santo dos pobrezinhos, Europa 51 e Viagem a Itália de Rossellini). Mas como grande parte destes filmes foram exibidos, nos anos mais recentes, na RTP, é possível que haja muitos coleccionadores privados que disponham de gravações...

Outros filmes assinados por Fellini também rareiam no mercado videográfico. Existem apenas:
- O navio (1983), ed. Lusomundo;
- Ginger e Fred (1986), ed. ITAD.


O Cinema Segundo Fellini

Nunca exerço juízos morais porque não me sinto capacitado para tanto. Não censor, nem padre, nem político. Não gosto de me analisar, não sou orador, nem filósofo, nem teórico. Sou apenas um contador de histórias, e o cinema é o meu ofício. − (1971)
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Não há nada mais triste do que o riso; nada é mais belo, magnífico, estimulante e enriquecedor do que o terror do desespero total. Acho que, enquanto vivem, todos os homens são prisioneiros deste medo terrível, no qual toda a prosperidade está votada ao fracasso, mas que preservam, mesmo no abismo mais fundo, essa liberdade esperançosa que lhes permite sorrir em situações aparentemente desesperadas. É por isso que o objectivo dos verdadeiros autores de comédia − quer dizer, dos mais profundos e honestos − não é de modo nenhum a simples diversão, mas rasgar feridas dolorosas com a crueldade de as tornar mais sentidas. − (1971)


Na minha opinião A estrada procura realizar a experiência que um filósofo, Emmanuel Mounier, muito bem definiu como a mais importante e básica para abrir qualquer perspectiva social: a experiência comunitária entre dois seres humanos. Quer dizer, para aprender a riqueza e a possibilidade da vida social, hoje que se fala tanto de socialismo, é antes de mais, importante aprender a estar, muito simplesmente, com outro homem: penso que isto é o que todas as sociedades devem aprender e que, se não se consegue superar este ponto de partida tão humilde mas necessário, talvez amanhã venhamos a estar perante uma sociedade exteriormente bem organizada e publicamente perfeita e sem mácula, na qual, porém, as relações privadas, as relações entre homem e homem, ou entre as pessoas, se mostrarão reduzidas ao vazio, à indiferença, ao isolamento, à impenetrabilidade. − (1955)


Cinéma-verité? Prefiro «cinema-mentira». Uma mentira é sempre mais interessante do que a verdade. A mentira é a alma da arte do espectáculo, e eu adoro espectáculo. A ficção pode sempre ter uma verdade maior do que a realidade óbvia de todos os dias. Não é preciso que as coisas que se mostram sejam autênticas. Em regra, são melhores quando o não são. O que tem de ser autêntico é a emoção que se sente e se quer exprimir. − (1971)


Giulietta é um caso especial. Ela não é apenas a artista principal de muitos dos filmes, é também, de uma maneira muito subtil, a inspiradora deles. Isto é compreensível porque ela é também a minha companheira de toda a vida. Giulietta, repito, não é a cara que escolhi, mas a verdadeira alma do filme. Por isso, no caso dos filmes de Giulietta, o tema é ela própria. − (1964)


O colaborador mais precioso que tive era Nino Rota. Tinha uma imaginação geométrica, uma visão musical de esferas celestes, pelo que não tinha necessidade de ver as imagens dos meus filmes. Quando lhe perguntava que motivos tinha em mente para comentar esta ou aquela sequência sentia claramente que as imagens não lhe diziam respeito: o seu era um mundo interior, a que a realidade tinha pouca possibilidade de acesso. Vivia a música com a liberdade e a facilidade de uma criatura viva numa dimensão que lhe é espontaneamente congenial. − (1983)


O cinema como negócio é macabro. Grotesco. É uma mistura de jogo de futebol e de bordel. − (1965)


Quando decido fazer um filme, o meu estimulo inicial é a assinatura do contrato. − (1971)
 

Ficha técnica

J. Leitão Ramos
Licenciado em Engenharia Electrotécnica pelo IST
Professor Efectivo da Escola Secundária Marquês de Pom
bal (2º Grupo B)

Crítico de cinema e televisão do "Expresso"

Publicou os livros Sergei Eisenstein, ed. Livros Horizonte, 1982
e Dicionário do Cinema Português 1962-1988, ed. Editorial Caminho, 1989

 

Paginação e Grafismo

Cândida Teresa

Gabinete de Meios Técnicos e Materiais

da Direcção Geral de Extensão Educativa
Dim. 21x14,5 cm


Edição

Secretaria de Estado da Reforma Educativa

 

Composto e impresso
 na Editorial do Ministério da Educação

Algueirão


Reconversão para HTML
Henrique J. C. de Oliveira
Espaço Aveiro e Cultura
Secundária J. Estêvão
Projecto Prof2000
Aveiro - 2012

 


    O Filme

    Sinopse

    Análise do filme

    Hipótese de mapa para explorar "A estrada"

    Relações interdisciplinares

    Fellini

    Bibliografia

    Filmografia

    O cinema segundo Fellini
   Ficha Técnica

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Data de inserção
18-03-2012