Acesso à hierarquia superior.

João Paulo Freire e Carlos de Passos, Mafra, Col. Monumentos de Portugal, nº 1, Porto, Ed. Litografia Nacional, 1933

BREVE NOTÍCIA DO LANÇAMENTO DA 1.ª PEDRA DA BASÍLICA

Afim de se cumprir esta cerimónia com o maior esplendor, quer litúrgico quer mundano, mandou João V armar em madeira a basílica. De tecto serviram velas de navio forradas interiormente com panos de brim, cobertos de tafetás encarnados e amarelos. Razes pendiam das paredes. As portas e janelas foram guarnecidas com cortinas de damasco, de franjas e galões doirados. Mais tafetás vermelhos decoravam a fachada.

Na capela-mor erguiam-se dois sitiais de preciosa tela branca. O do evangelho, sobre seis degraus e com dossel, destinava-se ao rei; o da epístola, sobre três e sem dossel, era para o patriarca D. Tomás de Almeida. O deste era ladeado por credências cobertas de sumptuosos paramentos, destinados à missa de pontifical, e de opulentas peças de prata. Noutra credência estavam a pedra que devia ser benzida, de jaspe, marcada com cruzes, medindo 55 cms de comprimento, e a portadora da inscrição comemorativa(1), / 72 / além duma urna de mármore, na qual ficariam encerrados: um cofre de prata dourada com os pergaminhos do voto régio e do benzimento da 1.ª pedra e da cruz erecta na igreja, dois frascos com os santos óleos, duas caixas de prata doirada com o Agnus Dei de Inocêncio XI e o de Clemente XI e doze medalhas (quatro de oiro, quatro de prata e quatro de bronze). Das primeiras, uma tinha os retratos do rei e da rainha, gravados a buril, no anverso e no reverso a planta do templo; outra, no anverso St.º António e o rei ajoelhado ante ele e no reverso a perspectiva de todo o edifício; outra, o retrato de Clemente XI e o seu brasão; a última, o do patriarca D. Tomás e o seu escudo. Em todas havia legendas. Tanto as de prata como as de bronze eram iguais.

Para o monarca havia mais, junto à coluna do cruzeiro, uma tribuna em forma de leito, com balaústres de ébano e cortinas de brocado vermelho. Juncos e espadanas recobriam o chão, dos quais serviam panos verdes de alcatifas.

Destinara-se o dia 19 de Outubro de 1717 para realização de tal cerimónia, mas, por não ser possível o concluir-se a tempo o trabalho dos alicerces e da armação da basílica, teve de ser adiada para 17 de Novembro. A escolha daquele dia derivava do facto de ser consagrado a S. Pedro de Alcântara, o qual, por causa da sua dura penitência, foi o elemento mais activo da reforma da província da Arrábida.

Aos 14 de Novembro partiu para Mafra D. João V, em coche de estado e acompanhado por luzida tropa de cavalos. Antes de se recolher ao palácio dos viscondes de Vila Nova de Cerveira, custosamente preparado para seu alojamento, passou revista às obras e, entusiasmado com o zelo manifesto pelos artífices, demais que uma tempestade fizera cair a armação da igreja, gratificou os oficiais das mesmas com moedas de oiro.

Às 8 1/2 da manhã do dia solene chegou o rei ao terreiro do templo, seguido pela corte, todos a cavalo, cuja pompa dos jaezes se equiparava à das galas dos cavaleiros. Acompanhavam-nos lateralmente a real guarda alemã e atrás a cavalaria com seus clarins. Logo se organizou a procissão para entrar na igreja. À frente / 73 / marchava a comunidade dos 64 frades arrábidos; depois, sucessivamente, o clero local, os músicos, capelães de sobrepelizes, acólitos patriarcais, subdiáconos, capelães de capa magna com capelos de arminho e pluviais, beneficiados, cónegos de pluviais de tela branca e mitras bordadas com pedras preciosas (cada um precedido pelos seus criados nobres e seguido por caudatários de sobrepelizes sobre os hábitos patriarcais), o patriarca vestido com peças riquíssimas e coberto com mitra de pedras, os protonotários patriarcais com raquetes e capas magnas, o rei, a corte, o juiz e o corregedor, os vereadores e, por fim, o povo, à volta de 3.000 pessoas. Era, decididamente, um espectáculo grandioso.

Feita a bênção, cujo cerimonial o rei acompanhou com o ritual nas mãos, dirigiu-se a procissão para o local em que a pedra devia ser colocada, o do altar-mor, da qual foi portador o patriarca. Aí depostas, essa e a da inscrição, e também a dita urna de mármore, na cova lançou o geral de S. Bernardo, esmoler-mor, doze moedas de cada espécie de dinheiro corrente no reino: doze de oiro, de 4800 reis, doze meias moedas, doze quartinhos e assim do real e meio de cobre.

Este acto executado, regressaram todos à igreja, na mesma forma processional, para assistirem às restantes funções e à missa, da qual disse D. Gabriel Chimbali, mestre de cerimónias da Patriarcal, que nunca vira tanta magnificência em paramentos e cópia de sacerdotes, tão pomposo rito, nas missas pontifícias. Só em lugar de cardiais eram cónegos os celebrantes.

Acabada, finalmente, a função, quis o rei dar uma prova pública do seu amor à obra empreendida e da sua portentosa devoção. Num cesto dourado estava uma pedra de palmo e meio.

Pegou nela o Senhor D. João V e, carregando com ela, foi depositá-la piedosamente junto da que fora benzida. Os fidalgos de sua corte, estimulados por esse acto de pia humildade, agarraram noutras pedras iguais, assentes em cestos prateados, e acompanharam o soberano, levando a sua à cabeça o nobre visconde de Ponte de Lima. Não houve quem não ficasse estarrecido com tão submissa piedade.
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No regresso ao palácio dos viscondes deu também sua majestade prova pública da sua munificência, quer distribuindo moedas de oiro pela tropa e pelos pobres quer mandando franquear a sua ucharia a todos que dela quisessem aproveitar.

Ao erário custou tão faustoso dia a bagatela de 200.000 cruzados.(2)
 

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NOTAS

(1)Eis os seus dizeres:

Deo Optimo, Maximo
Divoque Antonio Lusitano
Templum hoc dicatum
Joannes V Lusitanorum Rex
Voti compos ob susceptos Liberos
Primumque fundavit Lapidem
Thomas I Patriarcha Olyssip. Occidentalis
SoIemni ritu
Sacravit, posuitque
Anno Dom. MDCCXVII
XIV KaI. Decembris

(2)Extracto do Gabinete Histórico, de Fr. Cláudio da Conceição.

 

 
 

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