Aos lados da basílica estendem-se dois vastos e singelos corpos,
rematados pelas massas enormes e quadrangulares dos torreões.
Compõem-se
aqueles de dois andares, além do térreo, que mezzaninos ou misolinos(1), encimados por áticos balaustrados, separam dos terraços. Em três
partes os dividem pilastras elevadas até aos áticos, das quais as do
meio sobressaem levemente e um tanto se elevam sobre as laterais. Cada
andar é aberto por treze janelas, mas só as das partes centrais do
andar nobre se cobrem com frontões circulares e triangulares(2).
Flanqueiam as portas principais duas colunas toscanas, cujo entablamento
triglifado suporta frontões triangulares.
São os torreões uns colossos de mármore, bastante
desgraciosos, o que
Baretti já deplorou. Medem 26 m por lado, 50 de projecção vertical e
cercam-nos muros baixos; os alicerces inferiores passam de 4 m de largo.
Caracteriza-os também a sobriedade ornamental das fachadas principal e
laterais, de cujos alinhamentos
muito se afastam. O andar térreo tem as paredes obliquadas, em
escarpa; pilastras toscanas separam as janelas simples do 1.º e
compósitas, as do 2.º ou nobre, correspondente ao 2.º dos corpos.
Todavia, as janelas deste são balaustradas e guarnecidas com frontões(2). Mostram-se, depois, os mezzaninos, de cornija denticulada no
sófito, com o remate dum ático balaustrado. Neles assentam
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as coberturas – que Watson qualificou de horríveis –, compostas de
cúpulas bolbosas, de quatro faces, rasgadas por óculos elípticos. Cumpre
notar, quer nos torreões quer nos corpos, a pobreza das cornijas e a
baixura dos áticos(3).
Passadas as portas, encontram-se os vestíbulos, com 17,30x12
m; quatro
arcos, firmes em grossos pilares dórico-romanos (cujas molduras e
proporções denunciam Vignola), sustêm a abóbada. Deles partem as amplas
escadarias de acesso a todos os andares do palácio. Ficam-lhes contíguos
os claustros, de 27 m por lado. Compõem cada galeria abobadada sete
arcos formalotes, assentes em pilares iguais aos dos vestíbulos e com
colunas dórico-romanas embebidas no exterior, sobre as quais corre um
entablamento de friso triglifado e com gotas pendentes, rematado por uma
balaustrada. Sóbria é esta obra, mas correcta.
Divide-se o andar nobre em salas vastas. A meio fica a chamada De
Benedictione, rectangular, com 26,50x6,60 m; cobre-a uma abóbada
cilíndrica, apainelada e diversos mármores a revestem. Das suas
três
tribunas se domina o interior da igreja e o terreiro dos três balcões balaustrados(4). No magnifico tempo de outrora todas as salas estavam
pomposamente decoradas com sumptuárias do mor preço e relevo artístico –
de que só há minguadas lembranças. Até 1807 ainda os razes e outras
tapeçarias pendiam das paredes; cobriam os sobrados alcatifas da Pérsia
e França. Com a partida para o Brasil começou o formidável saque. No
bojo dos navios havia lugar para tudo e lá foram neles por água abaixo
paramentos, ourivesarias, mobiliário, louças e porcelanas, colchas e
tapeçarias, quadros de Cunha Taborda, Sequeira, Volkmar Machado,
Archangelo Foschini, Vieira Portuense e Bartolomeu Calixto(5),
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preciosidades estas que em parte desapareceram e se danificaram. Depois,
a extinção das Ordens religiosas acabou com o resto, pois de vulto foram
as pilhagens dos bons patriotas. Graças a Deus, em Portugal, os conventos
chegaram para tudo e para todos. De bodo maior não reza a história.
Do torreão setentrional, hoje abandonado, (assim como a sua capela, cujo
painel, A Sagrada Família, pintou Inácio Bernardes de Oliveira),
penetra-se nas salas da audiência, da tocha e da guarda, já na ala do
norte. Na primeira, de chão de tijolos, avulta um grupo de belos
trabalhos de Sequeira, o das pinturas de
cenas guerreiras em
claro-escuro(6), e a sumptuosa alegoria do Olimpo por Wolkmar Machado(7) pintada na abóbada; nas paredes há outras alegorias pintadas, mas de
somenos valor. É também pintada a fresco, com alegorias mitológicas, a
sala da tocha; todavia, de notável sobressai um quadro de Conca (A
Virgem da Conceição), embora seja apreciável o de André Gonçalves.
As dependências do palácio continuavam pela ala do sul, na mesma
sucessão de salas; nenhuma delas, porém, com grandeza correspondente à
fábrica do edifício e da igreja, exceptuada a De Benedictione – facto já
notado por Licknowsky. Pertencem agora ao Museu, criado em 1910. Até aí,
com os objectos guardados em armários envidraçados, a exposição de arte
ornamental efectivava-se na Casa da Fazenda. Através de superabundantes
esbulhos e degradações, ainda subsiste um recheio mui apreciável,
mormente em espelhos de Veneza, pinturas, modelos, torêutica e
tapeçarias. No Museu estão distribuídas as peças por espécies, cujo
catálogo se esgotou e cuja falta é lamentável. Guarda-se o melhor nas
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salas da frontaria principal e eis a sua disposição geral(8): Sala A –
luminária, baixela de latão, estanho e barro – Sala B(9) –Mobiliário do
séc. XVIII, concoidal e de embutidos, panos de raz – Sala C – Mobiliário
do séc. XIX, princípios, faianças Império,
tapete de Aubusson – Sala D – Indumentária e torêutica eclesiástica: paramentos,
dalmáticas, casulas,
capas, custódias, relicários, facistois, cruz de cristal de rocha – Sala
E – banqueta de bronze doirado(10), frontal de cetim verde, bordado – Sala
F ou De Benedictione modelos de madeira, barro e gesso, de obras da
igreja, incluso o do Crucifixo do altar-mor – Sala H – tecidos, rendas,
bordados, louças da Índia, Estremoz e Rato, tapeçarias da Pérsia,
Arraiolos e Arrás – Sala I – pintura do séc. XVIII,
na qual avultam obras de Quillard(11), escultura, presépio colorido –
Sala J
– pintura moderna – Sala K
(12) – desenhos, aguarelas e gravuras, de D.
Carlos, D. Fernando de Saxe, Casanova, etc.
Da ala meridional coisa alguma se distingue. Por simples curiosidade
registam-se três salas (a de jantar, cujo mobiliário e decorado com
galhos de veado e gamo, a das armações destes animais, que também
compõem o lustre da iluminação, e a da
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colecção dos lampiões de latão, de suspensão e parede) e a cela
reconstituída (catre com dossel, cadeirão de costas, disciplinas,
lâmpada
de azeite, etc.).
Passa-se daqui à
Biblioteca,
na ala do nascente (na retaguarda), que ocupa a parte central. Eis o
salão mais belo e majestoso de todo o edifício, quer pelo equilíbrio das
proporções e boa combinação da luz quer pela sóbria e correcta
ornamentação rococó, assim como pela área. Construiu-a o arquitecto
Manuel Caetano de Sousa. Tem a forma crucial, com 88 m por 9,50 e 13 de
alto e iluminam-na 50 janelas.
Cobre-a uma abóbada de estuques apainelados, a qual no meio se levanta
em cúpula fechada por lâmina de mármore cingida de festões e com o sol
radiante e colorido, ao centro. Mármores azuis e brancos formam o xadrez
do pavimento; os da parte central, dispostos geometricamente, são pretos
e amarelos. Ao longo das paredes fixam-se as estantes em duas secções,
entre as quais corre uma galeria balaustrada e apoiada em mísulas.
Rematam a secção superior, alternadamente, frontões, elípticos, ladeados
por piras flamígeras ou fogaréus. Graciosa e delicada talha, através do
exuberante desenho, guarnece as janelas centrais (que no alto ostentam
a coroa real), os frontões, as mísulas, os frontais da secção inferior e
as faces inferiores das galerias, tudo feito com madeiras do Brasil.
Não foi destinado para biblioteca este salão e ainda hoje se ignora ao
que o votou o rei, embora se julgue que devia servir para receber os
embaixadores. Em 1794 nele os cónegos regrantes estabeleceram a
livraria, até aí montada numa sala distante. Grande e de relevo é a sua
riqueza bibliográfica, tanto na qualidade como na quantidade, e
admirável é a sua conservação(13) Comporta 30.000
volumes (com inclusão
de incunábulos(14), edições princeps,
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iluminuras, manuscritos(15) e guarda as músicas de J. J. Baldi, Marcos
Portugal, A. L. Moreira, J. de Sousa, J. J. Santos, L. F. Leal (o que
constitui um recheio magnífico para o estudo da música portuguesa dos
séculos XVIII e XIX)(16).
Com agravo de tantas preciosidades, quase completamente abandonada foi,
até ao ponto de nela chover à vontade em 1877 (prova clara da clara
inteligência portuguesa). Todavia não se registam faltas graves de
livros, como noutras bibliotecas(17), o que não obstou
à tentativa de,
após 1910, a quererem incorporar na Biblioteca Nacional – o que seria
injusto e erro graúdo(18).
Horas joviais na Biblioteca fruíram os seráficos arrábidos. Em 4-XI-1801
celebrou-se nela, durante três dias, a paz geral, com serenatas
nocturnas, nas quais cantaram alguns artistas do teatro S. Carlos – a Catalani, Crescentini, Angeleli e Perdegil. Num palco armado executou
Pinet as suas habilidades. Ligeiros motins, derivados do contacto
galhofeiro de frades e seculares, perturbaram as festas.
Em 18-1-1807 folgança rija determinou o
baptizado da infanta Ana de
Jesus Maria, com representação, à noite, da comédia O Criado de dois
amos. Foram convidados os frades que, com escândalo de Sua Alteza,
recusaram o convite, na mor parte.
Cumpre lembrar, para fecho, a fiação de seda
criada no palácio por
Carlota Joaquina. Tinha oferecido à princesa dois vasos encarnados e
floridos de casulos de seda, da criação do Quintela (nas Laranjeiras), o
Dr. José António Sá, director da Real Companhia de Fiação e Tecidos de
Seda. Tanto a regozijou a oferta que não parava em fazê-la admirar à
corte, ficando D. Ana Margarida da Silveira com o encargo de tratar
os casulos. Constituiu então o recreio da corte a criação dos bichos e o
assoalho dos
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casulos. Em 1807 trabalhou na fiação da seda obtida nos três últimos
anos, cujo serviço durou nove dias e nos quais copiosas meadas dobraram
Carlota Joaquina e os seus reais meninos. Ao peito das nobres fiandeiras
prendeu ela as medalhas criadas pelo marido, em 1802, para os
beneméritos da cultura da seda. Frutificou o exemplo, pois em Queluz e
em 1805 se fundou outra criação do género. Nem tudo é mau, portanto, na
vida de Carlota Joaquina. Com a partida para o Brasil da corte, em 1807,
os casulos doirados apodreceram nos ramos e os bichos morreram de
fome
nas salas abandonadas(19).
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NOTAS
(1) –
Entre-ferros ou águas furtadas construídos, decerto, para abrigar o
andar nobre do calor e da humidade. Habitam-nos hoje os guardas da
igreja e do palácio.
(2) –
Triangulares os laterais, circular o central.
(3) –
Nos subterrâneos eram as cozinhas; no pavimento térreo, as ucharias,
no 1.º andar, os aposentos do pessoal e no nobre, os régios – os do
norte, do rei e os do sul, da rainha.
(4) –
A repisa do central tem 22,3 m e o peso 2.112 arrobas (vid. pg. 34).
(5) –
Da colecção alusiva aos descobrimentos, cujos
assuntos, respectivamente, eram estes: António da Silveira obriga a levantar o
cerco de
Diu – Os Almeidas derrotam Cutial em Panane – Albuquerque constrói a
fortaleza de Cochim – Vasco da Gama desembarca em Calecut – Duarte
Pacheco defende o passo de Cambalão – D. João de Castro triunfa em Jusar-Kan.
(6) –
Este género de pintura promove a ilusão plena de baixos relevos. É
feita por um processo de contrastes, de pardo sobre pardo (realço, preto
e branco, grisaille). Diz Francisco de Holanda, na Pintura Antiga que
foi o pai, António de Holanda, quem o descobriu. Afinal, foi bastante
usado na Idade Média e os Van Eick também o empregaram. No séc. XVII
vulgarizaram-no os holandeses.
(7) –
Com ele outros trabalharam na pintura das salas:
Manuel da Costa,
Bernardo de Oliveira Góis e Vieira Lusitano. Este habitou uns quartos
hoje ocupados por um empregado, em cuja abóbada ainda existe uma cena
campestre por ele pintada. É de crer que no resto dessa abóbada haja
outras pinturas, encobertas pelo fasquio dum tecto recente.
(8) –
Para mais Informes veja O Museu de Mafra, de
Luís Chaves, In O Archeologo, de 1916, pág. 231.
(9) –
Pinturas doiradas nas paredes.
(10) –
Feita no Arsenal do Exército.
(11) –
Pedro António Quillard veio a Portugal no tempo de João V,
induzido por um médico
suíço para o auxiliar na reprodução pelo desenho das
peças ilustrativas do livro História Natural de Portugal, que tencionava
escrever. Mostrando Quillard a João V um quadro seu tão satisfeito ele
ficou que o nomeou desenhador e pintor da sua Academia de História. Na
maneira de Quillard há vislumbres de Watteau.
(12) –
Pintada com alegorias pagãs.
(13) –
Superior à de todas as bibliotecas nacionais, o que se
atribui à
natureza das madeiras, contrária aos parasitas bibliófagos.
(14) –
Edições dos clássicos latinos, de 1470 e 1480 (Orações de
Cícero,
1472, Vidas de Laercio, 1475, Livro de Bondoni, 1478, Homero, 1488,
Crónica de
Nuremberga, 1493).
(15) –
De encadernações com ferros notabilíssimos.
(16) –
Contém ainda algumas espécies mui curiosas, de carácter pompeiano,
reservadas.
(17) –
Há cerca de 25 anos dalgumas bibliotecas nacionais roubou várlas
espécies raras o francês Gaston Spire. Em Mafra conseguiu pilhar a
Crónica do
Cid e O Cancioneiro Geral; à saída, porém, foi preso, porque o guarda
não deixara dormir o zelo do serviço.
(18) –
Ignara, bruta, egoísta, é a pecha lusa das centralizações.
(19) –
No tempo da feliz regência de Matos Sequeira (In
Terra Portuguesa,
n.º 7).
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