Acesso à hierarquia superior.

João Paulo Freire e Carlos de Passos, Mafra, Col. Monumentos de Portugal, nº 1, Porto, Ed. Litografia Nacional, 1933

O PALÁCIO

Aos lados da basílica estendem-se dois vastos e singelos corpos, rematados pelas massas enormes e quadrangulares dos torreões. Compõem-se aqueles de dois andares, além do térreo, que mezzaninos ou misolinos(1), encimados por áticos balaustrados, separam dos terraços. Em três partes os dividem pilastras elevadas até aos áticos, das quais as do meio sobressaem levemente e um tanto se elevam sobre as laterais. Cada andar é aberto por treze janelas, mas só as das partes centrais do andar nobre se cobrem com frontões circulares e triangulares(2). Flanqueiam as portas principais duas colunas toscanas, cujo entablamento triglifado suporta frontões triangulares.

São os torreões uns colossos de mármore, bastante desgraciosos, o que Baretti já deplorou. Medem 26 m por lado, 50 de projecção vertical e cercam-nos muros baixos; os alicerces inferiores passam de 4 m de largo. Caracteriza-os também a sobriedade ornamental das fachadas principal e laterais, de cujos alinhamentos muito se afastam. O andar térreo tem as paredes obliquadas, em escarpa; pilastras toscanas separam as janelas simples do 1.º e compósitas, as do 2.º ou nobre, correspondente ao 2.º dos corpos. Todavia, as janelas deste são balaustradas e guarnecidas com frontões(2). Mostram-se, depois, os mezzaninos, de cornija denticulada no sófito, com o remate dum ático balaustrado. Neles assentam / 58 / as coberturas – que Watson qualificou de horríveis –, compostas de cúpulas bolbosas, de quatro faces, rasgadas por óculos elípticos. Cumpre notar, quer nos torreões quer nos corpos, a pobreza das cornijas e a baixura dos áticos(3).

Passadas as portas, encontram-se os vestíbulos, com 17,30x12 m; quatro arcos, firmes em grossos pilares dórico-romanos (cujas molduras e proporções denunciam Vignola), sustêm a abóbada. Deles partem as amplas escadarias de acesso a todos os andares do palácio. Ficam-lhes contíguos os claustros, de 27 m por lado. Compõem cada galeria abobadada sete arcos formalotes, assentes em pilares iguais aos dos vestíbulos e com colunas dórico-romanas embebidas no exterior, sobre as quais corre um entablamento de friso triglifado e com gotas pendentes, rematado por uma balaustrada. Sóbria é esta obra, mas correcta.

Divide-se o andar nobre em salas vastas. A meio fica a chamada De Benedictione, rectangular, com 26,50x6,60 m; cobre-a uma abóbada cilíndrica, apainelada e diversos mármores a revestem. Das suas três tribunas se domina o interior da igreja e o terreiro dos três balcões balaustrados(4). No magnifico tempo de outrora todas as salas estavam pomposamente decoradas com sumptuárias do mor preço e relevo artístico – de que só há minguadas lembranças. Até 1807 ainda os razes e outras tapeçarias pendiam das paredes; cobriam os sobrados alcatifas da Pérsia e França. Com a partida para o Brasil começou o formidável saque. No bojo dos navios havia lugar para tudo e lá foram neles por água abaixo paramentos, ourivesarias, mobiliário, louças e porcelanas, colchas e tapeçarias, quadros de Cunha Taborda, Sequeira, Volkmar Machado, Archangelo Foschini, Vieira Portuense e Bartolomeu Calixto(5), / 59 / preciosidades estas que em parte desapareceram e se danificaram. Depois, a extinção das Ordens religiosas acabou com o resto, pois de vulto foram as pilhagens dos bons patriotas. Graças a Deus, em Portugal, os conventos chegaram para tudo e para todos. De bodo maior não reza a história.

Do torreão setentrional, hoje abandonado, (assim como a sua capela, cujo painel, A Sagrada Família, pintou Inácio Bernardes de Oliveira), penetra-se nas salas da audiência, da tocha e da guarda, já na ala do norte. Na primeira, de chão de tijolos, avulta um grupo de belos trabalhos de Sequeira, o das pinturas de cenas guerreiras em claro-escuro(6), e a sumptuosa alegoria do Olimpo por Wolkmar Machado(7) pintada na abóbada; nas paredes há outras alegorias pintadas, mas de somenos valor. É também pintada a fresco, com alegorias mitológicas, a sala da tocha; todavia, de notável sobressai um quadro de Conca (A Virgem da Conceição), embora seja apreciável o de André Gonçalves.

As dependências do palácio continuavam pela ala do sul, na mesma sucessão de salas; nenhuma delas, porém, com grandeza correspondente à fábrica do edifício e da igreja, exceptuada a De Benedictione – facto já notado por Licknowsky. Pertencem agora ao Museu, criado em 1910. Até aí, com os objectos guardados em armários envidraçados, a exposição de arte ornamental efectivava-se na Casa da Fazenda. Através de superabundantes esbulhos e degradações, ainda subsiste um recheio mui apreciável, mormente em espelhos de Veneza, pinturas, modelos, torêutica e tapeçarias. No Museu estão distribuídas as peças por espécies, cujo catálogo se esgotou e cuja falta é lamentável. Guarda-se o melhor nas / 60 / salas da frontaria principal e eis a sua disposição geral(8): Sala A – luminária, baixela de latão, estanho e barro – Sala B(9)Mobiliário do séc. XVIII, concoidal e de embutidos, panos de raz – Sala C – Mobiliário do séc. XIX, princípios, faianças Império, tapete de Aubusson – Sala D – Indumentária e torêutica eclesiástica: paramentos, dalmáticas, casulas, capas, custódias, relicários, facistois, cruz de cristal de rocha – Sala E – banqueta de bronze doirado(10), frontal de cetim verde, bordado – Sala F ou De Benedictione modelos de madeira, barro e gesso, de obras da igreja, incluso o do Crucifixo do altar-mor – Sala H – tecidos, rendas, bordados, louças da Índia, Estremoz e Rato, tapeçarias da Pérsia, Arraiolos e Arrás – Sala I – pintura do séc. XVIII, na qual avultam obras de Quillard(11), escultura, presépio colorido – Sala J – pintura moderna – Sala K (12) – desenhos, aguarelas e gravuras, de D. Carlos, D. Fernando de Saxe, Casanova, etc.

Da ala meridional coisa alguma se distingue. Por simples curiosidade registam-se três salas (a de jantar, cujo mobiliário e decorado com galhos de veado e gamo, a das armações destes animais, que também compõem o lustre da iluminação, e a da / 61 / colecção dos lampiões de latão, de suspensão e parede) e a cela reconstituída (catre com dossel, cadeirão de costas, disciplinas, lâmpada de azeite, etc.).

Passa-se daqui à Biblioteca, na ala do nascente (na retaguarda), que ocupa a parte central. Eis o salão mais belo e majestoso de todo o edifício, quer pelo equilíbrio das proporções e boa combinação da luz quer pela sóbria e correcta ornamentação rococó, assim como pela área. Construiu-a o arquitecto Manuel Caetano de Sousa. Tem a forma crucial, com 88 m por 9,50 e 13 de alto e iluminam-na 50 janelas.

Cobre-a uma abóbada de estuques apainelados, a qual no meio se levanta em cúpula fechada por lâmina de mármore cingida de festões e com o sol radiante e colorido, ao centro. Mármores azuis e brancos formam o xadrez do pavimento; os da parte central, dispostos geometricamente, são pretos e amarelos. Ao longo das paredes fixam-se as estantes em duas secções, entre as quais corre uma galeria balaustrada e apoiada em mísulas. Rematam a secção superior, alternadamente, frontões, elípticos, ladeados por piras flamígeras ou fogaréus. Graciosa e delicada talha, através do exuberante desenho, guarnece as janelas centrais (que no alto ostentam a coroa real), os frontões, as mísulas, os frontais da secção inferior e as faces inferiores das galerias, tudo feito com madeiras do Brasil.

Não foi destinado para biblioteca este salão e ainda hoje se ignora ao que o votou o rei, embora se julgue que devia servir para receber os embaixadores. Em 1794 nele os cónegos regrantes estabeleceram a livraria, até aí montada numa sala distante. Grande e de relevo é a sua riqueza bibliográfica, tanto na qualidade como na quantidade, e admirável é a sua conservação(13) Comporta 30.000 volumes (com inclusão de incunábulos(14), edições princeps, / 62 / iluminuras, manuscritos(15) e guarda as músicas de J. J. Baldi, Marcos Portugal, A. L. Moreira, J. de Sousa, J. J. Santos, L. F. Leal (o que constitui um recheio magnífico para o estudo da música portuguesa dos séculos XVIII e XIX)(16).

Com agravo de tantas preciosidades, quase completamente abandonada foi, até ao ponto de nela chover à vontade em 1877 (prova clara da clara inteligência portuguesa). Todavia não se registam faltas graves de livros, como noutras bibliotecas(17), o que não obstou à tentativa de, após 1910, a quererem incorporar na Biblioteca Nacional – o que seria injusto e erro graúdo(18).

Horas joviais na Biblioteca fruíram os seráficos arrábidos. Em 4-XI-1801 celebrou-se nela, durante três dias, a paz geral, com serenatas nocturnas, nas quais cantaram alguns artistas do teatro S. Carlos – a Catalani, Crescentini, Angeleli e Perdegil. Num palco armado executou Pinet as suas habilidades. Ligeiros motins, derivados do contacto galhofeiro de frades e seculares, perturbaram as festas.

Em 18-1-1807 folgança rija determinou o baptizado da infanta Ana de Jesus Maria, com representação, à noite, da comédia O Criado de dois amos. Foram convidados os frades que, com escândalo de Sua Alteza, recusaram o convite, na mor parte.

Cumpre lembrar, para fecho, a fiação de seda criada no palácio por Carlota Joaquina. Tinha oferecido à princesa dois vasos encarnados e floridos de casulos de seda, da criação do Quintela (nas Laranjeiras), o Dr. José António Sá, director da Real Companhia de Fiação e Tecidos de Seda. Tanto a regozijou a oferta que não parava em fazê-la admirar à corte, ficando D. Ana Margarida da Silveira com o encargo de tratar os casulos. Constituiu então o recreio da corte a criação dos bichos e o assoalho dos / 63 / casulos. Em 1807 trabalhou na fiação da seda obtida nos três últimos anos, cujo serviço durou nove dias e nos quais copiosas meadas dobraram Carlota Joaquina e os seus reais meninos. Ao peito das nobres fiandeiras prendeu ela as medalhas criadas pelo marido, em 1802, para os beneméritos da cultura da seda. Frutificou o exemplo, pois em Queluz e em 1805 se fundou outra criação do género. Nem tudo é mau, portanto, na vida de Carlota Joaquina. Com a partida para o Brasil da corte, em 1807, os casulos doirados apodreceram nos ramos e os bichos morreram de fome nas salas abandonadas(19).
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   NOTAS

(1) Entre-ferros ou águas furtadas construídos, decerto, para abrigar o andar nobre do calor e da humidade. Habitam-nos hoje os guardas da igreja e do palácio.

(2) Triangulares os laterais, circular o central.

(3) Nos subterrâneos eram as cozinhas; no pavimento térreo, as ucharias, no 1.º andar, os aposentos do pessoal e no nobre, os régios – os do norte, do rei e os do sul, da rainha.

(4) A repisa do central tem 22,3 m e o peso 2.112 arrobas (vid. pg. 34).

(5) Da colecção alusiva aos descobrimentos, cujos assuntos, respectivamente, eram estes: António da Silveira obriga a levantar o cerco de Diu – Os Almeidas derrotam Cutial em Panane – Albuquerque constrói a fortaleza de Cochim – Vasco da Gama desembarca em Calecut – Duarte Pacheco defende o passo de Cambalão – D. João de Castro triunfa em Jusar-Kan.

(6) Este género de pintura promove a ilusão plena de baixos relevos. É feita por um processo de contrastes, de pardo sobre pardo (realço, preto e branco, grisaille). Diz Francisco de Holanda, na Pintura Antiga que foi o pai, António de Holanda, quem o descobriu. Afinal, foi bastante usado na Idade Média e os Van Eick também o empregaram. No séc. XVII vulgarizaram-no os holandeses.

(7) Com ele outros trabalharam na pintura das salas: Manuel da Costa, Bernardo de Oliveira Góis e Vieira Lusitano. Este habitou uns quartos hoje ocupados por um empregado, em cuja abóbada ainda existe uma cena campestre por ele pintada. É de crer que no resto dessa abóbada haja outras pinturas, encobertas pelo fasquio dum tecto recente.

(8) Para mais Informes veja O Museu de Mafra, de Luís Chaves, In O Archeologo, de 1916, pág. 231.

(9) Pinturas doiradas nas paredes.

(10) Feita no Arsenal do Exército.

(11) Pedro António Quillard veio a Portugal no tempo de João V, induzido por um médico suíço para o auxiliar na reprodução pelo desenho das peças ilustrativas do livro História Natural de Portugal, que tencionava escrever. Mostrando Quillard a João V um quadro seu tão satisfeito ele ficou que o nomeou desenhador e pintor da sua Academia de História. Na maneira de Quillard há vislumbres de Watteau.

(12) Pintada com alegorias pagãs.

(13) Superior à de todas as bibliotecas nacionais, o que se atribui à natureza das madeiras, contrária aos parasitas bibliófagos.

(14) Edições dos clássicos latinos, de 1470 e 1480 (Orações de Cícero, 1472, Vidas de Laercio, 1475, Livro de Bondoni, 1478, Homero, 1488, Crónica de Nuremberga, 1493).

(15) De encadernações com ferros notabilíssimos.

(16) Contém ainda algumas espécies mui curiosas, de carácter pompeiano, reservadas.

(17) Há cerca de 25 anos dalgumas bibliotecas nacionais roubou várlas espécies raras o francês Gaston Spire. Em Mafra conseguiu pilhar a Crónica do Cid e O Cancioneiro Geral; à saída, porém, foi preso, porque o guarda não deixara dormir o zelo do serviço.

(18) Ignara, bruta, egoísta, é a pecha lusa das centralizações.

(19) No tempo da feliz regência de Matos Sequeira (In Terra Portuguesa, n.º 7).

 

 

 

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