Que o ódio,
infelizmente,
quando o clima é de horror,
é forma inteligente
de se morrer de amor
António Gedeão, Máquina de Fogo
Mais alto
que vós grita o vento e ninguém lhe acode...
Manuel da Fonseca, Poemas Dispersos (A casa no vento)
Não sei quantas vezes li Seara de Vento de Manuel da Fonseca
(1). Embora leitor da sua poesia desde os anos 60, foi a sua ficção
o que da sua obra mais me tocou. Do neo-realismo retenho hoje na
memória poucas obras: O Barranco de Cegos do Redol, toda a
obra de Carlos de Oliveira (poesia e ficção) e o autor que me serve
de pretexto a esta comunicação. Tinha fama de grande contador de
estórias (e proveito, acrescento eu, que tive ainda a felicidade de
o ouvir).
Sabia captar a atenção de quem o ouvia fazendo esticar a parlenga
ou encurtando-a conforme lhe parecesse melhor, “mudando de
velocidade” e nunca perdendo de vista que demorar não significa
perder tempo (2) Ouvi-lo era um acto de cultura naquele sentido
em que noutros tempos se contavam as estórias à lareira onde
personagens retiradas da vida eram elevadas à condição de tipos
humanos (heróis, bandidos, lobisomens, etc.).
Ora ao ler agora, uma vez mais, Seara de Vento de Manuel da
Fonseca começo por me espantar com o título; na verdade, eu nunca
tinha pensado bem nele. Ora uma seara é um campo semeado de trigo ou
outros cereais, o vento é o ar em movimento. Então seara de vento é
um campo semeado de coisa nenhuma, é uma contradição em si, é um
oximoro mas é simultaneamente uma metáfora com a consequente
transferência de sentido ou de significado. Por outro lado, desta
releitura, dois personagens se me impuseram desde logo: o vento
(antropomorfizado) e Amanda Carrusca, mulher pequena, esquelética,
mas indomável na força anímica que desde o inicio evidencia.
João de Oliveira Lopes (3) traça dela este perfil psicológico (p.
98): a violência do ódio acumulado, a rapidez felina dos
movimentos, o olhar faiscante de uma intuição invulgar, tudo se
exprimindo numa fragilidade física inquebrantável.
Esta mulher não tem nada: vive num casebre, trabalhou toda a vida e
agora sente-se um “farrapo”, um peso para o resto da família, mas é,
malgré tout, uma lutadora. Dir-se-ia que espera a sua morte
como quem espera uma libertação mas nem essa lha deixam aguardar com
tranquilidade pois luta até final porque lutar é para esta mulher um
destino. Apetecia-me chamar-lhe uma vocação mas receio que isso
pudesse ser interpretado como uma apologia do sofrimento. E esta
mulher aceita o sofrimento mas não o deseja. Não é para matar
(...) que a gente deve unir-se, é para podermos viver
(p.247).
Velha e vento andam tão próximos que por vezes temos quase a
tentação de os identificar. Curiosamente, o vento já assumia uma
importância primordial no poema Toada de Portalegre de José
Régio com referência ao Alto Alentejo. Aqui, toda a acção se
desenrola no Baixo Alentejo, nas proximidades das Minas de S.
Domingos.
A
esta obra se referiu Mário Sacramento (4) nos seguintes termos “É
esse vento a personagem reflexiva da obra-prima que Manuel da
Fonseca agora produziu, vento que isola o casebre miserável,
cercando-o e batendo-o da telha vã ao forno da cal; vento que
acompanha a intriga duma ponta à outra contraponteando-a de lance em
lance, através dum fundo musical, lúgubre e sinistro, que só
ensurdece no curto lapso em que o contrabando traz àquele lar
(...) um breve hiato de desafogo (...), para recrudescer
pelo suicídio de Júlia (...) e desfraldar os crepes da
tragédia, enfumando os andrajos escuros de Amanda Carrusca e
modelando-lhe um corpo seco e chato, só ossos.
Mas se o vento ascendeu, finalmente, ao topo da simbologia que a
obra anterior de Manuel da Fonseca lhe preparava, todos os
personagens deste livro são tipos depurados que vêm ocupar lugares
inconfundíveis na galeria das nossas letras. Amanda Carrusca
(...) é o ódio milenário da fome: uma face imperativa
num molho de ossos”.
Há logo na primeira página da obra um primeiro cotejo entre o vento
e a velha; a ventania corre livremente e em toda a obra é a
única coisa que é livre. Todos os outros, exploradores e explorados
se encontram ligados por elos suficientemente fortes para que o
movimento de uns afecte de alguma maneira o movimento dos outros. O
motor dessa ligação é o ódio (o ódio milenário da fome
como lhe chamou Sacramento). Essa ligação fica selada desde o início
quando a velha Amanda diz: Raios partam esse vento.
A
força anímica desta velha só ossos é excepcional e
dificilmente se encontrará outra do mesmo quilate na ficção
portuguesa do século XX. Ela representa a todo o momento o não
que é preciso opor em certas situações embora para isso seja
precisa a coragem que falta à grande maioria dos mortais. Veja-se a
p. 29, quando todos se recusam a pedir para o neto, um deficiente
mental, cujo nome nunca chegaremos a saber pois em boa verdade ele
não é nada, ela enfrenta o genro, um gigante: Amanda Carrusca
ergue-se, bruscamente, de cabeça empinada. Pequeninos e negros, os
olhos reluzem-lhe, intensos. Pois vou eu! – grita ela, afastando-se,
de perfil adunco inclinado para a frente. – Vou eu pedir para o meu
neto!
Permito-me chamar a atenção para a contenção com que M. Fonseca
caracteriza a energia da velha: Pequeninos e negros, os olhos
reluzem-lhe, intensos. Não é preciso acrescentar mais nada.
Este acto de coragem não significa que a velha tenha consciência
política. Quem a tem é Mariana, a neta. A prova disso é que quando
resolvem os camponeses unir-se e ir à vila pedir trabalho, Amanda
Carrusca censura a neta com ironia (p. 118): - Juntem-se todos,
juntem-se, e vão-se meter na cova do lobo! – agoira Amanda Carrusca,
levantando os braços, com um sorriso azedo. – Depois, se lhes
acontecer alguma, não se queixem!
Apesar dessa falta de consciência política, a velha defende os seus
sem medos nem tibiezas pois não tem mais nada a perder. Quando a
guarda vem para prender António de Valmurado, o Palma, genro de
Amanda, só encontra esta e Júlia, a filha, que é levada não sem que
a velha se lhes oponha (p. 165): Amanda Carrusca consegue
libertar-se. Rápida, atira-se para diante com todo o peso do corpo,
e dá um empurrão ao sargento.
– Se lhe tocas, (na filha Júlia), o meu genro mata-te,
cão. E quando o polícia pretende levar a filha, o elemento mais
frágil da família: -Vou eu! – Amanda Carrusca atira uma punhada
contra o peito. – Prende-me a mim, vá! Prende-me, se és capaz! E
como não consegue evitar a detenção de Júlia volta-se para a neta e
diz: - Cuida aí no teu irmão. Eu vou encher as ruas de gritos,
vou acordar a vila toda!
É
talvez altura de dizer que os Palmas na sequência de um empréstimo
feito por Elias Sobral ao pai de António Valmurado ficam sem a sua
única courela por não poderem pagar a dívida. Este, que trabalha
para o Elias Sobral vai confrontar-se com o suicídio do seu pai e
logo a seguir é preso durante alguns meses sob a acusação de ter
roubado umas sacas de cevada, roubo (viremos a sabê-lo quase no fim
da obra a p. 214) que foi feito por Diogo, filho do latifundiário
Elias Sobral.
Feito aqui este parêntese para que se perceba todo o ódio acumulado
no seio da família Palma contra Elias Sobral, prossigamos o
comentário que vimos fazendo a esta obra.
O
Palma ainda não foi preso pela segunda vez e é Júlia que é detida
para interrogatório como dissemos.
Entretanto, Júlia, ao dar-se conta de que afinal traiu o marido (p.
175-176) quando o queria salvar, suicida-se no calabouço e há um
momento em que avó e neta estão juntas. Poucas palavras. M. da
Fonseca narra esses momentos (p.207): O ar frio que as envolve,
como que se confrange, arrepiado. Amanda Carrusca começa a
erguer-se. Todo o corpo lhe treme.
– Estou cheia de ódio. (palavras de Amanda
Carrusca)
– Não diga isso!... (são palavras da neta)
A velha dá um passo em frente, de punho esticado para o chão.
– Digo, sim, digo!
E, algumas linhas adiante (p. 208), mas agora num tom de
assumida derrota:
Vê, filha, vê! O que esta vida fez de mim!... Ódio, só ódio!
Finalmente quando a família fica encurralada com a polícia a tentar
prender o Palma, Amanda Carrusca faz um curativo ao genro e
propõe-se fazer cartuchos , isto é, pretende ainda dar algum sentido
à sua vida, solidarizar-se com (p. 236):
– Queres que te ajude? Eu sei fazer cartuchos, e atirar. O meu
marido também era caçador e mais adiante quando se processa o
assalto final ao casebre com o sargento Gil a tentar atirar sobre o
Palma através de uma abertura feita no telhado, Amanda compromete-se
definitivamente neste jogo sem disfarce de vida e morte (p. 239):
– Olha quem é ele... cicia ela. – O sargento Gil...
A inesperada aparição rasga-lhe um sorriso feroz na face
escaveirada. Rápida, pega na arma, leva-a ao ombro apoiado contra a
parede da lareira. O ribombar do tiro estremece o casebre.
Todas as contradições decorrentes do conflito: respeitar uma lei que
foi feita pelos ricos ou subverter a ordem estabelecida Amanda
Carrusca, ainda assim, aceita colocar-se ao lado do genro e morrer
com ele se for caso disso.
Diz o Palma (p. 247):
– Ainda aí, mulher?
–Fico – rouqueja ela, inteiriçada. – Quero ficar contigo.
– Não a percebo... Você, há pouco, achava que a Mariana tinha razão
– E ainda acho. Ainda acho, embora ela fale noutro sentido. Não é
para matar que ela sustenta que a gente deve unir-se, é para
podermos viver. Todos unidos para podermos viver, percebes? Mas...
isto aconteceu-te, e eu fico. Poderei ajudar-te, já não estarás tão
só.
A cena final, teatral, com a guarda de um lado e
os camponeses do outro (p. 252):
Por
todos os lados, o confuso clamor de imprecações, apelos, pragas,
aumenta cada vez mais. Exaltados, os camponeses tentam vencer a
barreira formada pelos guardas.
–
Oiçam!
O grito
obriga-os a levantarem a cabeça. No alto do cerro, junto da orla das
estevas, Amanda Carrusca aparece, de mãos erguidas.
– Digam
à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão! Um homem só não vale
nada!
Ouve-se
como que um gemido soltado por dezenas de bocas, e os camponeses
atiram-se para diante.
Com a
coronha da carabina no ar, um guarda avança para Amanda Carrusca.
A velha
volta-se, cresce, firme sobre as pernas entesadas, e os andrajos
negros, batidos pelo vento, modelam-lhe o corpo seco e chato, só
ossos.
O vento é
uma metáfora da mudança, é um agente destruidor, um agente da
erosão. Maria Alzira Seixo (5) diz a propósito do vento (p. 92):
numa palavra [o vento] é a metáfora da agressão. Mas essa
agressão tem um valor ambíguo: mais imediatamente identificável com
a fúria do poder, com o ataque do rico sobre o pobre, ela indica
também a cólera pura, o anúncio do dies irae que se
irá abater sobre o pecado e a iniquidade. Amanda Carrusca é a
ponte entre o passado e o futuro que não será o seu, mas será talvez
o da sua neta. Quem sabe?
Estamos
perante uma narrativa diacrónica, linear, parca de adjectivos porque
ali tudo é essencial, tudo é substantivo. As pessoas (os
personagens) vivem no limite da subsistência mínima, no limiar da
fome.
Esta
mulher está só no meio da desolação alentejana, num tempo de “vacas
magras”: tem de aturar um neto, atrasado mental, que de quando em
vez a morde, com frequência opõe-se ao genro, a filha é uma mulher
frágil com a qual não se pode contar muito, a neta (a única que tem
consciência política) não é entendida pela velha que desconfia das
reuniões em que ela participa e que podem comprometer o único
ganha-pão da família.
Apesar
disso, Amanda Carrusca, esse vento que varre um certo Alentejo, tira
dos sobreiros que não lhe pertencem aquela postura vertical que é o
que resta de uma dignidade afrontada e porventura quixotesca embora
os guardas não sejam, propriamente, moinhos de vento e o vento
continue a sibilar.
Ambos (o
vento e Amanda Carrusca) estão ali para “desarrumar”, para pôr tudo
em questão, para dizer que, apesar de tudo, o mundo pula e avança
(6). Daí o título provocatório (?) que dei a esta comunicação.
Mas não
deixa de ser, apesar de tudo e sempre, uma luta contra uma certa
forma de solidão. A paisagem alentejana, de algum modo condiciona o
carácter dos conflitos sociais, sobretudo o das décadas de 40 e 50,
conflito entre um proletariado rural e os terratenentes na sua
grande maioria absentistas.
As raízes
mais fundas destes conflitos encontram-se não apenas no clima mas
também no modo como desde há séculos se fez a divisão da
propriedade, problema sobre o qual se debruçou Orlando Ribeiro (7)
com a enorme competência que todos sempre lhe reconheceram.
Resta-nos
aceitar esta forma de intervenção quando ela se fundamenta com
seriedade na observação e no estudo dos fenómenos reais (passe o
pleonasmo) e é esse o caso de Manuel da Fonseca que conhecia como
ninguém o drama do homem alentejano.
É possível
(e desejável, acrescento eu) encará-los não só pela vertente
científica mas também pela via polissémica da arte. É possível
encarar a suja realidade recriando essa mesma realidade e dando-lhe
a maioridade estética a que tem direito. O que, porventura perde em
objectividade ganha em humanidade e por conseguinte não só equaciona
os problemas dos homens como os aproxima.
Quando
Palma está irremediavelmente perdido, Amanda Carrusca está mais
próxima dele do que alguma vez esteve. Quando os camponeses fazem
frente à guarda em manifesta insubordinação, Amanda Carrusca está
mais próxima deles e é através deles que envia a sua mensagem,
aquela que constitui o recado do autor, de que a personagem é, pelo
menos em parte, o seu alter-ego.
Amanda
Carrusca é um símbolo, não apenas da resistência mas também da
velhice menosprezada, vilipendiada, aquela que se atira fora porque
definitivamente se esgotou. Nesse sentido, o seu alcance ultrapassa
largamente as fronteiras do Alentejo e do país para se erguer a um
estatuto de universalidade que não é possível destruir mau grado os
outros ventos que não são de bom agoiro e com que já nos vamos
confrontando.
________________________
Bibliografia:
(1)
FONSECA, Manuel da – Seara de Vento,
Forja, 3ª edição, 1975. A 1ª edição é de 1958.
(2)
ECO, Umberto – Seis passeios nos
bosques da ficção, Difel, 2ª edição, 1997
(3)
LOPES, João de Oliveira – Estruturas da
narrativa na “Seara de Vento” de Manuel a Fonseca, INIC, Coimbra,
1980, 160 p.
(4)
SACRAMENTO, Mário, Vértice, v. XIX, 1959,
p. 140-143.
(5)
SEIXO, Maria Alzira et al. – O Romance
rural na perspectiva neo-realista: “Seara de Vento” de Manuel da
Fonseca in Três ensaios sobre a obra de Manuel da Fonseca,
Seara Nova, 1980, p.77-106.
(6)
GEDEÃO, António – Poesias Completas
(Pedra Filosofal), Portugália Editora, 1964. A 1ª edição (Movimento
Perpétuo) é de 1956.
(7)
RIBEIRO, Orlando – Mediterrâneo –
Ambiente e Tradição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição,
1987.
Luís Serrano,
Nov.
2004. |