Afinal
Amarante não é apenas a terra de Teixeira de Pascoaes e de
Alexandre Pinheiro Torres. É também a terra de Manuel Amaral.
Estamos perante uma obra cujo título logo nos indicia a
ideia de estabelecimento de ponte(s), quanto mais não seja por
recurso àquelas pedras que se colocam de uma margem à outra de um
curso de água. Bem necessitados estamos todos delas, já que
estamos num tempo que apesar de ser de globalização e de
incremento dos meios de comunicação, a verdade é que cada vez
comunicamos menos uns com os outros. E a razão é simples: o tempo
que perdemos com os meios de comunicação não nos deixam tempo
para comunicar.
Ainda assim M. Amaral não desiste de lançar a sua corda
ao outro, de se interessar pelo outro numa tentativa séria de
perceber o mundo em que vive. E para isso serve-se da literatura.
Escrevendo, provoca a realidade se assim me posso exprimir,
extraindo dela (ou seja seleccionando) os aspectos que de algum modo
sublinham uma realidade quer no seu espaço, quer no tempo que lhe
tem sido dado viver, quer ainda pela atenção que tem prestado às
contradições sociais, contradições sociais que têm desenvolvido
nele um elevado sentido de militância ética.
Definição
de Conto
Feito este preâmbulo introdutório digamos que o conto,
porque é de contos que esta obra é feita, partilha com o romance e
a novela o facto de ser um género de modo narrativo. De maneira
geral, constitui-se como um relato pouco extenso (a short story
dos autores anglo-saxónicos). Como corolário, arrasta consigo e
para citar o Dicionário de Narratologia de Carlos Reis e Ana
Cristina Macário Lopes um reduzido elenco de personagens, um
esquema temporal restrito, uma acção simples ou pelo menos apenas
poucas acções separadas, e uma unidade de técnica e de tom.
Eu creio que estas condições se verificam nesta obra, ou neste
conjunto de contos, se preferirem, e também, no que me parece ser
predominante no conto, o narrador é o autor, narrador omnisciente,
que vai puxando os cordelinhos e desvendando aos olhos do leitor
aquilo que só ele sabe.
São dez contos e uma pequenina peça teatral que M.
Amaral quis reunir neste seu livro.
O
General Espanhol
Logo no primeiro conto, de resto muito bem conseguido, O
General Espanhol (onde se percebe o triste comportamento das
autoridades portuguesas face a um dos maiores horrores do século
XX), Manuel Amaral vai buscar um episódio que se terá passado aí
por volta de 1938 ou 1939. Um general espanhol ilude a polícia
portuguesa (o sr. Administrador) apresentando-se à própria polícia
como andando à procura de si mesmo (o outro).
Não faltam neste conto alguns ingredientes adequados: a
casa de fado, o bar frequentado por gente avessa ao regime,
frequentemente devassado pela polícia.
E, finalmente o logro, espécie de compensação para quem
vinha de uma guerra perdida e deste modo, conseguia escapar à
perseguição da polícia portuguesa ao serviço de Francisco
Franco.
É
uma linguagem enxuta, sem decorativismos, reduzida ao essencial,
austera como a paisagem castelhana, palco das lutas fratricidas da década
de 30 mas paisagem reduzida ao essencial, paisagem de linhas rectas
ou como dizia João Cabral de Melo Neto, esse grande poeta da língua
portuguesa mas brasileiro de nacionalidade, no poema Medinaceli:
... que poeta daqui escreveu
com a dureza de mão
com que hoje a gente daqui
diz em silêncio seu não.
O que João Cabral de Melo Neto diz de Medinaceli, creio
que se pode generalizar a toda a Meseta Castelhana sem falsear a
verdade.
Xota-Moscas
Constitui um painel de algumas personagens típicas do ancien
régime desde o nacionalista suficientemente inteligente para
saber quem mexe os cordéis da política até ao capacho mais
subserviente a quem a mulher põe os cornos. O próprio título não
deixa de ser sugestivo, trata-se de um daqueles sustentáculos do
regime, indivíduo medíocre, que nem o respeito dos grandes a quem
prestava serviço, tinha e por isso ao fim de algum tempo devia ser enxotado,
quando a sua presença era mais um estorvo do que uma bengala. Aí
passam neste conto os Saavedras, gente de teres e haveres, marialvas
no sentido que José Cardoso Pires tão bem caracterizou, e sempre
em pano de fundo o clima salazarento com reminiscências de
franquismo. Estamos no final da II Guerra Mundial, aí por 44,
quando a Alemanha dá claros sinais de derrota. Diz o autor: O
Eixo nas últimas. Os distintivos flor-de-lisados da Legião, pouco
a pouco, tinham já desaparecido das lapelas.
A derrota não é apenas política, é também moral, lança
uma nódoa na brancura dos costumes. E há sempre uma Égua Loira
ou Cavalão ou Eva Braun a sapar os alicerces
morais em que assenta o conservadorismo, tanto mais quanto mais retrógrado
e mais hipócrita for.
A Senhora Maria
Belo conto onde se fala de afectos e de solidariedade a
contrapor-se ao crime político de que infelizmente tivemos exemplos
suficientes. Um eco do que acontecia a quem tinha um parente na
cadeia e que de tempos a tempos recebia a notícia da próxima
libertação do mesmo e isso muitas vezes tinha apenas a intenção
de desmoralizar, não passava de um boato posto a circular de propósito
para achincalhar e minar a esperança, bem único e último que era
dado ter.
Documentário Envenenado
Neste conto, Manuel Amaral mostra-nos como nesses
tempos idos, era muitas vezes necessário dar o dito pelo não dito,
engolir sapos (uns maiores, outros mais pequenos); e até por coisas
tão mesquinhas como chegar tarde ao cinema para não ter que gramar
(permita-se-me o plebeísmo) os chamados documentários de
actualidades que eram sistematicamente utilizados para a
propaganda do regime. Frequentemente, as pessoas, sobretudo as que não
tinham vocação para serem heróis viam-se obrigadas a afirmar
convicções que o seu coração repudiava. Não podemos deixar de
recordar a retractação de Galileu: E pur si muove, isto é
a Terra continua a rodar quer os regimes queiram quer não. A
verdade é que não deixava de constituir uma humilhação ter de
assinar as tristemente célebres declarações anti-comunista e
anti-maçónica para se poder entrar na função pública. Tristes
tempos, mais negros do que cinzentos, esses em que as pessoas tinham
muitas vezes que fingir para poderem sobreviver, ou então era o exílio
como aconteceu com algumas personalidades e de que é bem conhecido
o caso de Agostinho da Silva que se recusou a assinar tais papéis.
Não
é, pois, por acaso que o conto termina assim, nas palavras da
personagem principal: - Ah! Quem
foi que disse que, se fôssemos todos verdadeiros, estaríamos na
cadeia?
A
Operação dos Apitos
O fascismo foi muita coisa: foi o crime, foi a mentira mas
foi também o ridículo e o Manuel Amaral dá isso muito bem em A
Operação dos Apitos. Os censores faziam coisas tão idiotas
que as gerações mais novas terão dificuldade em acreditar. Mas
elas existiram.
Ora,
justamente, eu acho que o Manuel Amaral não desprezou este aspecto
tão significativo do que foi, entre nós, o fascismo: a falta de
inteligência de muitos dos serventuários do regime, ou para
utilizar uma expressão do quotidiano, a burrice chapada.
O
conto debruça-se sobre um qualquer centro de informações posto ao
serviço de um regime e dá conta, entre outras coisas, de como a
comunicação contém em si a sua própria contradição: ao
comunicar, nem sempre é possível filtrar e então a comunicação
pode ser apropriada pelo inimigo, auto-subverte-se se assim me posso
exprimir. A história captada em Alverna (Centro de Informações)
respeitava a uma manifestação numa qualquer cidade italiana,
manifestação que a polícia se preparava para reprimir. Mas nesse
momento, os manifestantes utilizaram uma arma que não estava apenas
nas mãos dos agentes da autoridade: o apito. Milhares de apitos
tocados ao mesmo tempo puseram em debandada os cavalos da polícia
anulando-lhe o efeito repressor. Eu não sei se o autor de Praganas
se inspirou num episódio passado em Coimbra numa das crises académicas
(69?) em que os estudantes tentaram anular o trabalho de um árbitro
num desafio de futebol. A Academia de Coimbra estava de luto e o
futebol era um dos suportes ideológicos do regime.
Daí
a uma operação de grande envergadura para recolher todos os apitos
que se encontrassem à venda ia um passo. A paranóia dos inimigos
da Pátria tinha expressões do género desta e Manuel
Amaral tem idade suficiente para as ter conhecido bem. Muitas outras
se poderiam contar.
Confins
de Abril
(Teatro)
Trata-se
de uma peça em um acto ou se se preferir de um exercício dramático,
de resto bem conseguido, sobre um tema que nos recorda Quando os
Lobos Uivam de Aquilino Ribeiro. Nesta peça há uma série de
indivíduos que são presos por se terem recusado a ir para o
trabalho nos Serviços Florestais apenas por solidariedade com um
colega porque este tinha pedido dois dias para ajudar a mãe o que o
capataz recusou. A prisão é a consequência lógica desse acto de
rebelião. Estes homens nada sabiam de política mas eram solidários
como é de norma na vida dos pequenos povoados que vivem num equilíbrio
próximo do limite de subsistência. O 25 de Abril vem libertá-los
como se depreende da última nota do autor: Pode ouvir-se a
“Vila Morena” e o pano cai lentamente..
Da
Ensinança de Bem Pescar
Aqui
se fala dos tempos logo a seguir ao 25 de Abril de 74 com todos os
seus entusiasmos mas também com todos os equívocos que se foram
gerando, as promessas logo ignoradas, as grandes e legítimas
esperanças logo traídas, também alguma pressa em resolver
problemas que demoram anos ou décadas. Esse clima de perturbação,
em parte resultado da inexperiência de vida democrática, tudo está
dado neste conto. E até está lá, implicitamente pelo menos, como
as forças do capital souberam tirar partido do clima de democracia
que foi ponto de honra dos obreiros da revolução. Mas, como o título
insinua, ninguém ensinou este povo a pescar, o que certamente daria
outras possibilidades a esse mesmo povo, a acreditar na velha história
chinesa. Tudo isto a propósito de um teatro (para o povo) que virou
banco.
O
Isqueiro do Almeida
Gosto de todos os contos embora alguns me tenham tocado
mais do que outros como é natural. Provavelmente, a estória que
mais me comoveu terá sido a d’ O Isqueiro do Almeida.
Recordo bem esse tempo onde se despia um homem de tudo, às vezes até
da sua dignidade. Era necessária uma licença para se poder usar um
isqueiro!!! Creio que esta exigência ridícula só existia em
Portugal e dava o tom do carácter saloio (sem ofensa para os
naturais da região saloia) do sr. Salazar. Era um homem inculto,
desconfiado e reaccionário. Não ouso chamar-lhe de jesuíta porque
houve bons e dignos jesuítas (o P. António Vieira, por exemplo);
era, pura e simplesmente um hipócrita, que nunca teve a coragem de
assumir uma relação amorosa. Vingava-se em coisas como este
imposto ridículo, o do isqueiro.
Que poderia um homem responder a esta forma vil de
humilhar? Quando não se possui mais nada do que um isqueiro como
luxo, há que protestar quando se põe em dúvida a qualidade do
mesmo. Como dizia a personagem Macedo: Com a chama a vencer na
torcida do isqueiro, tu, Almeida, ergueste o que fica muito caro, o
último reduto de ti...
Acho que o Manuel Amaral pegou muito bem neste fait
divers e fez dele um belíssimo conto, porventura repito, o
melhor do livro.
A
Procissão do Seixas
É certamente um dos melhores contos deste livro. Manuel
Amaral pegou numa personagem típica da terra, como os há quase
sempre nestas pequenas cidades do interior, e contou algumas dessas
estórias que nos fazem lembrar o Lazarillo de Tormes, esse pícaro
tão conhecido. Pois este pícaro Seixas é um homem que nos dias em
que não há trabalho e em que portanto, não há ganho se vira para
o Sol e diz: Só tu, meu estupor, tens trabalho certo todos os
dias. Sirva esta citação de apresentação do Seixas, homem de
muitos recursos com os quais enfrentava a vida e enganava a morte
São várias as estórias que Manuel Amaral nos conta do
Seixas e eu só tenho pena que o autor não tenha feito destas estórias
quatro ou cinco contos porque a riqueza desta personagem dava
perfeitamente para isso. Preferiu gastar tudo num único conto e
assim os vários episódios aparecem-nos diluídos o que no meu
entender é uma pena.
Não resisto a contar a estória das alminhas: Vieram
os homens da rica confraria de Aboadela ou Bustelo, tanto faz:
- Senhor Seixas, queríamos que nos pintasse umas
alminhas, claro, baratas.
- E como as querem?
- Bem, o senhor é entendido, mas assim a fugir para o céu...
Ora,
para encurtar razões, digo eu: o Seixas não podia, pelo preço
acordado, utilizar materiais de primeira qualidade pelo que, quando
uns dias depois caiu uma das chuvadas de outono, as alminhas
desapareceram. Demos a palavra ao autor:
- É que das alminhas, nem uma! diz um dos da
Confraria
- Não me digam! Já todas no céu? Ora vêem, isto é que
foram alminhas a sério! Bem me poderiam pagar agora mais alguma
coisa, pois estão todas na Santa Glória! responde o Seixas.
A
estória que dá o título ao conto tem a ver com a preparação de
uma procissão e foi obra do Seixas, desde pintar a Santa Ana de
vermelho e verde já que a santa era republicana (!!!) até à
suspeita de que o padre que integrou a procissão era ele mesmo, o
maroto do Seixas. Maroto mas com sentido de humor, aquele sentido de
humor com que a plebe se vinga do poder e denuncia as suas
artimanhas.
- Ó Seixas de onde era o padre?
- Não sabem o trabalhão que tive para desencantar aquele
padre de tanta santidade! Demorou algum tempo a paramentar-se mas os
paramentos dele eram de uma riqueza nunca vista!
Tiro
o meu chapéu ao autor por não deixar morrer esta e outras estórias
que certamente foi encontrando ao longo da vida através desta ou
daquela pessoa que se calhar até conheceu pessoalmente ou de que
teve conhecimento por interposta pessoa. Seria uma pena e ficaríamos
todos mais pobres se não viéssemos a ter conhecimento destas
aventuras levadas a cabo, às vezes por um marginal, isto é, por
alguém que não se enquadra convenientemente na pirâmide social e
que de uma forma ou de outra e de um modo gozoso ousa pôr essa
mesma hierarquia em questão.
Alto
da Serra
Uma viagem à serra no carro dos Castros, um carro de
luxo, onde a pequena e modesta família (o marido, a mulher e o
filho que tem a seu cargo fazer um trabalho para a escola sobre
ecologia) se acoita para gozar o ar fresco das altitudes. Afinal, um
sonho legítimo e inocente por concretizar mas que necessita de
transporte. O Castro acede a levá-los mas não os vai buscar de
regresso como prometido. Nunca chegamos a saber porquê. Iniciam o
regresso a pé sempre atentos a qualquer carro branco que poderá
aparecer na curva da estrada de um momento para o outro. Mas o
marido corta-lhes as ilusões quando julgam avistar o carro dos
Castros.
-
Vamos continuar, faltam duas horas a pé. Não é só o Castro. Há
mais carros de luxo, todos branquinhos...
Esta estória é um fait divers, dir-se-á mas pode
ser visto como uma metáfora de claras ressonâncias sociais: os
pobres não têm o direito a subir mas se acaso o tentam, hão-de
ter de regressar (descendo) e a pé.
O
Senhor Manuel
O último conto/crónica relaciona-se com uma viagem a
terras gandaresas pela mão do nosso comum amigo, o escritor Idalécio
Cação.
Nesse paraíso terreal, entre dunas e pântanos, de visita
a velhos moinhos, Manuel Amaral teve o ensejo de ver de mais perto a
tremenda contenção desta paisagem pobre onde se vivia ao nível da
subsistência mínima ainda não há muitos anos. Neste espaço
aberto viveu Carlos de Oliveira, poeta e ficcionista, que não teve
outro tema na vida que não fosse a sua Gândara, onde de resto ia
raramente, segundo consta. Mas isso não o impediu de tratar essa
realidade gandaresa, suas paisagem e povoamento, para
utilizar o subtítulo dessa obra fascinante que é Finisterra, através
do filtro da memória. Contar os grãos de areia destas dunas é
o meu ofício actual, diz em
Sobre o Lado Esquerdo.
Uma outra abordagem tem sido feita nos últimos anos por
Idalécio Cação através dos seus contos e da novela Os Sítios
Nossos Conhecidos.
Não
quis Manuel Amaral perder esta oportunidade de homenagear esta região
através da figura hospitaleira de Manuel, falecido por
atropelamento alguns dias após esta visita do autor: Entre ficção
e realidade daquele dia não haverá discrepâncias mas o que faz
protestar o “bicho da terra tão pequeno”, com punhos erguidos
contra os deuses é, poucos dias passados, como numa fileira mítica
de séculos de Prometeus e Sísifos, quatro pneus, circulares e
negros, terem trucidado o senhor Manuel, na própria passadeira dos
peões! diz o autor em nota final.
Conclusão
O seu livro é, pois, na minha modesta opinião, um
retrato rigoroso e esteticamente conseguido, do mais recente período
negro da nossa história com duas ou três incursões no pós 25 de
Abril.
Fico sempre muito feliz quando vejo alguém (um amigo,
neste caso) utilizar tão bem os recursos da nossa língua para
dizer de sua justiça. Os escritores não mudam o mundo mas podem
contribuir seguramente para a consciencialização daqueles que por
uma razão ou por outra andam afastados da vida cívica que é a
vida colectiva enquadrada pelas normas que a própria sociedade vai
definindo ao longo dos tempos.
Também não tenho dúvidas de que o seu posto de observação
é um posto de observação privilegiado: no meio das fragas, um pé
no Minho, outro em Trás-os-Montes, um olhar sobre o Tâmega e outro
lá mais adiante sobre o Douro, ao autor não podiam escapar certos
detalhes em que a geografia humana e a geografia física são
aspectos da mesma realidade.
Estou certo que o Alexandre Pinheiro Torres ficaria feliz
de ver estes contos em letra de forma. Infelizmente para nós, ele já
não faz parte do número dos vivos ou melhor dizendo, ele só está
vivo em nós pelo muito que deixou escrito e por esse sentido de
generosidade e de solidariedade que eu também encontro em Manuel
Amaral.
Luís Serrano - 14-06-2002
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