1.
Constitui lugar comum dizer que toda a obra (poesia e prosa) de
Carlos de Oliveira não tem senão um tema: a Gândara. Se isto não
é rigorosamente verdadeiro, também, convenhamos, não se desvia
muito da verdade.
E
pelo que a Micropaisagem se refere, eu creio que é particularmente pertinente
em relação aos dois primeiros títulos: Estalactite
e Árvore.
E
era, justamente, sobre esses dois poemas que eu gostaria de tecer
algumas considerações.
É
que em ambos há preocupações que têm a ver com a definição de
uma Arte Poética e em
ambos há também um sentido de metamorfose, de transformação
(reversível no 1º caso, onde se pode falar de um ciclo do cálcio
que se inicia com a dissolução do calcário e termina pela sua
precipitação para recomeçar de novo e irreversível no 2º caso
onde pela presença do homem a árvore acaba por se transformar em pranchas
de soalho, em móveis e baús que na melhor das hipóteses
passarão a funcionar como um signo que a memória registará).
2.
Vejamos, então, o poema Estalactite.
A
estalactite é uma formação colunar de carbonato de cálcio que é
comum em grutas calcárias e que aparece na zona de Cantanhede-Ançã,
precisamente no limite oriental da Gândara, que o escritor bem
conhecia.
Que
a poesia de Carlos de Oliveira pretende dar conta das transformações
e ser ela própria mimética em relação a elas é o que julgo
poder deduzir-se do modo como as alusões à escrita poética se
imbricam com a alusão ao fenómeno natural da dissolução e
precipitação dos calcários.
Há
uma verdadeira intersecção dessas duas áreas que as aproxima até
quase à identificação. Vejam-se a título de exemplo:
[...]
para / a cal / florir / nesta caligrafia / de pétalas / e letras /(p.
35); o pulsar / das palavras /
atraídas / ao chão / desta colina (p. 37); olhá-las
[as palavras] / como
imagens / no espelho / que as reflecte / de novo / compreensíveis /
e tornar / a juntá-las/ obsessivamente / ao ritmo da pedra /
dissolvidas /(p. 43); [...] o cristal / incerto do poema / entre / a água / e a cal / (p. 50).
O
poema apresenta-se dividido em 24 partes (estâncias numeradas de I
a XXIV), contendo cada uma 14 versos sem ruptura de continuidade,
qualidade que me parece ser de destacar. Ainda que algumas das estâncias
terminem por um ponto (I a XI), a maioria termina ou por vírgula,
ou por dois pontos ou, pura e simplesmente, a estância liga-se à
seguinte sem nenhum sinal de pontuação a separá-las,
explicitando, assim, a meu ver, essa solução de continuidade, de
relacionamento que outros aspectos confirmam.
Tal
relacionamento ou diálogo traduz, quanto a mim, o aspecto mais
interessante de Estalactite e faz-se, por um jogo de acções e reacções
veiculadas por um conjunto de 10 substantivos, muito frequentes, a
saber: água (aparece 11
vezes), cal (10 vezes), colina (7 vezes), espaço
(4 vezes), flores (9
vezes), gotas (8 vezes), milénios (4 vezes) e pedra (7
vezes).
Este
núcleo lexical define um campo semântico em que se pode
distinguir: de um lado, um agente activo, a água
(que promove a dissolução, a degradação, a destruição, em
suma); do outro, três agentes passivos que possuem entre si relações
(do particular para o geral: cal, pedra, colina).
O
agente activo, a água, fonte
de vida, meio de purificação, centro de regeneração (2),
processa a sua acção sob a forma de gotas
e tendo em conta o seu peso, qualidades
que, de resto, a própria pedra possui, como se pode ver pelos
seguintes exemplos:
[...]
gotas de água / ou pedra /
levadas / pelo seu peso / (p. 35 e 49); [...]
o peso / da água / a tal distância / é quase imperceptível, /
porém pesa, / (p. 41).
Significa
isto que gotas e peso estabelecem a ponte entre o agente activo, a água,
e os agentes passivos, a cal, a pedra e a colina e
contribuem decisivamente para a reversibilidade desta acção: a
dissolução da pedra e a
precipitação da pedra sob a forma de flores ou de estalactites, como o título
refere.
Trata-se
de acções e reacções que se processam num certo espaço ao longo
de períodos de tempo que se medem em milhares e em milhões de
anos, o que no poema é traduzido quer pela palavra
tempo, quer, e sobretudo, pela palavra milénios.
A
recriação de todo este conflito, pois que de um conflito se trata,
com as suas degradações e agradações (no sentido do inglês agradation)
constitui o poema.
Esquematicamente, poderíamos
representá-lo assim.
???????????????
Diríamos,
então, que numa primeira fase haveria a pedra
(afirmação) a que se seguiria a dissolução da pedra
(negação) e finalmente a precipitação das flores
calcárias (negação da negação), síntese que é
simultaneamente, como o próprio poeta diz, água
e pedra: sombra / som [...], material de que se faz o próprio
poema, ele também a síntese possível (o
aproveitamento da explosão, em O Aprendiz de Feiticeiro, p.
265) ou de Estalactite:
[...] o crepúsculo / entrando / poro a poro / pela mão / que escreve /
encaminhando-as / entre / a pouca luz / do texto / à sílaba
inicial / da única palavra / que é / ao mesmo tempo / água e
pedra: sombra, / som [...] (p. 53).
É
difícil não ver no poema uma espantosa metáfora de todo o ciclo
da vida humana (apesar da reversibilidade apontada no início) e ao
mesmo tempo uma mal disfarçada Arte Poética. Senão, vejamos (p. 44 e 45):
[...] perdê-las [as palavras] / entre
a cal e a água / espaço / de tensões obscuras / [...] reavê-las / num grau de pureza / [...] quando / o poema / atinge / tal /concentração/ que transforma / a própria
/ lucidez / em energia / e explode / para sair / de si [...].
Há
aqui, creio eu, uma clara semelhança entre a construção do poema
(pela purificação das palavras) e a construção-destruição
(agradação-degradação) da paisagem.
O
poema nasce quando o limite /
da estabilidade, / o equilíbrio / é transgredido e que
coincide no espaço, coberto por um céu calcário, com a génese
das flores calcárias.
Ambos
os acontecimentos não pode(m)
/ com mais silêncio / oculto [...] e representam a superação
possível num espaço de óbvias tensões
obscuras.
Cabe
referir ainda a utilização de certos sinais gráficos como setas,
chavetas, parênteses rectos (incomuns em poesia) e que servem
para acrescentar significado do modo mais condensado e mais aparente
significado e relação.
Sirvam de exemplo:
água
cal; cal
colina
a cal
a água
entre
entre
som(bra)
e a água
e a cal
Ao
que atrás se disse acrescente-se ainda o emprego de versos
extremamente curtos (às vezes mono-, di- e trissilábicos) e de
aliterações que mais nos comunicam essa sensação de gotas de água
caindo de um tecto.
Como
exemplo, vejam-se as aliterações em [p]
e em [k] da p. 41: imperceptível / porém pesa, / paira, / poisa no papel / um passado /
de pedra / [cal colina] / que queima / quando / cai.
3.
Em relação ao poema Árvore,
que de uma forma tão conseguida traduz a ligação à terra (à
areia) da própria família do poeta, poder-se-ão fazer comentários
muito semelhantes aos anteriores. Vale a pena, julgo eu, ler ou
reler o capítulo Na floresta,
de O Aprendiz de Feiticeiro
(3), a este propósito.
"A
árvore é símbolo da vida, em perpétua evolução, em ascensão
para o céu e evoca todo o simbolismo da verticalidade. Por outro
lado, simboliza o carácter cíclico da evolução cósmica:
morte e regeneração, sendo assimilada à mãe, à fonte, à
água primordial da qual possui toda a ambivalência (fálica e
matricial)" (4).
Neste
poema, o poeta exprime o real e simultaneamente o modo de o passar
à escrita poética; dessa ambivalência nos fica, como característica
masculina, a penetração das raízes da árvore (no chão, nas páginas
do livro, na própria linguagem:
as
raízes da árvore / rebentam / nesta página / [...] invadem o poema (p.
55); [...] que as raízes /
procuram / de página / em página / [...] trespassando
o papel / (p. 56); [...]
como podem / crescer [as raízes]
/ de tal modo / no poema, / se a árvore / foi dispersa [...]
(p. 58); [...] procuram /
instalar-se [as raízes] /
no interior da linguagem / (p. 59); e
como característica feminina a dispersão da árvore nas areias
onde repousam para sempre os ossos da família: [...]
e pressinto / as raízes / através da sílica / onde a família
dorme / com os ossos dispostos / nessa arquitectura / duvidosa / de
símbolos / [...] (p. 61).
A
árvore não é aqui mais o agente fecundante; é a matriz a que
finalmente se regressa e assim a árvore (o real) transforma-se em
puro símbolo, é um registo na memória sob a forma de [...]
baú ponteado / como o céu / por tachas amarelas, / por estrelas /
pregadas na madeira / da árvore (p. 62).
Também
aqui é visível essa intersecção/identificação entre o mundo
real e a escrita.
E
também aqui há uma árvore
(afirmação) que morre (negação) e se transforma em pranchas
de soalho e em baús
(negação da negação), caminho que o poema acompanha com as suas
contradições; recorde-se que o baú
assume ainda uma especial importância enquanto sustentáculo de um
passado de que guarda a memória, tema, de resto, tão caro ao
poeta.
4.
Se podemos falar de uma linguagem rigorosa na poesia de Carlos de
Oliveira, em geral, e nestes dois poemas, em particular é que
alguns filtros se interpuseram entre a realidade e o escritor, o
primeiro dos quais é o tempo.
Tem-se
a sensação de que o poeta escreveu os seus poemas, não a partir
de uma análise visual directa do real mas por recurso à memória
onde esse real estava já reordenado e reclassificado.
O
grande esforço de contenção, de condensação do vocabulário ao
seu essencial, faz desta poesia a expressão de uma linguagem
fortemente ascética e plurissignificativa mas é também a expressão
de aturado trabalho oficinal. Raras
vezes a poesia me deu qualquer coisa de graça, dirá em O Aprendiz de Feiticeiro.
___________________________________
Bibliografia:
(1)
- OLIVEIRA, Carlos de, Trabalho Poético, v. 2, Livraria Sá da
Costa, s/d (1976?)
(2)
- CHEVALIER, J. - e GHEERBRANT, A. -, Dictionnaire des Symboles, Paris, Seghers, 1973, vol. 2
(3)
- OLIVEIRA, Carlos de, O Aprendiz de Feiticeiro, Publicações Dom Quixote, 1971
(4)
- CHEVALIER, J. - e GHEERBRANT, op. cit., vol. 1
.
Luís Serrano
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