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Artigos Publicados


Homenagem a Fernando Assis Pacheco
a propósito de Respiração assistida

"Região Bairradina", n.º 803, Abril 2004

 

O Fernando era um ano e tal mais velho do que eu. Conhecemo-nos, ainda adolescentes, nas militâncias católicas à procura de um enquadramento para as nossas vidas. A nossa procura manteve-se até ao fim. Era de uma moral que tornasse as relações entre os homens mais justas que andávamos à procura. E para ter essa moral não precisávamos da religião como ambos concluímos mais ou menos aquando da entrada na Universidade.

As nossas preocupações passaram a ter um carácter mais cívico do que outra coisa e traduzia-se entre outras coisas no desejo veemente que o antigo regime ruísse.

Caído Salazar (por doença) e Marcelo Caetano e o seu governo por acção do 25 de Abril de 1974, a esperança de um mundo melhor e mais humano foi para ambos motivo de grande contentamento mas não foi necessário passar muito tempo para que ambos nos déssemos conta que afinal a política e os políticos eram outra coisa: uma operação de carreirismo que podia levar uns tantos ao poder mesmo atropelando os mais lídimos interesses da população.

Por isso não é de admirar que no seu último livro nos apareçam poemas como este:

 

Este ministro é um mentiroso
que agonia quando ele discursa
e se fosse só isso: bale sem jeito
às meias horas seguidas – e não pára!

 

bem-aventurados os duros de ouvido
a quem o céu abrirá as portas
desliguem p. f. o microfone
ou então tirem o país da ficha

 

Foi escrito em 06.05.95, isto é, a menos de 6 meses da sua morte. De resto, este livro, Respiração Assistida é um livro póstumo e dá-nos bem a medida do seu talento mas dá-nos também a medida do seu desencanto, as contínuas alusões à morte que ele sabia estava próxima. Há neste livro alguns poemas eróticos ou para  ser mais rigoroso e como diz Manuel Gusmão, autor de um inteligente posfácio, licenciosos. É como se por essa via, ele nos quisesse dizer que ,apesar de tudo, a vida vale a pena ser vivida. Mas a grande maioria, para além de ser um conjunto muito belo, é tremendamente melancólico.

O poema que dá o título ao livro corrigiu-o Fernando Assis Pacheco três dias antes de morrer (Eu vi a morte / de noite – névoa branca - / entre os frascos do soro / rondar a minha cama (...).

Outros são poemas de inexcedível ternura como aquele cujo tema é o seu próprio pai:

O dia em que nasci meu pai cantava / versos que inventam os pastores do monte / com palavras de lã fiada fina / cordeiro lírio neve tojo fonte // esta é uma velha história de família / para dizer como ele e eu chegámos / à raiz mais profunda do afecto / da qual nunca jamais nos separámos // nem Deus feito menino teve um pai / que o abraçasse e lhe cantasse assim / desde a primeira hora até ao fim // fui vê-lo ao hospital quando morria / olhos parados num sorriso leve / tojo cordeiro lírio fonte neve

Meu caro Fernando, há quantos anos deixámos de nos ver? A última vez que estivemos na mesma sala foi numa homenagem ao Prof. Paulo Quintela e não chegámos a conversar. Nem sequer te cheguei a ver. Foi a mulher que me veio dizer: olha estive a conversar com um grupo de pessoas entre as quais se encontrava o Fernando Assis Pacheco que te manda um grande abraço. São partidas que a vida nos prega, Fernando: éramos amigos e tão poucas vezes nos encontrámos depois que foste para Lisboa e eu para o Porto e depois para Aveiro. E eu não arranjei tempo para te retribuir o abraço e só eu sei quanto apreciei sempre a tua poesia, quanto apreciei sempre a tua generosidade, a tua disponibilidade para os outros.

Olha Fernando, partiste vai para nove anos e o mundo não está melhor. Pelo contrário, são os medíocres que triunfam , os oportunistas, aqueles que são capazes de vender o pai e a mãe por um lugar ao sol. Por isso, deixa-me fazer minhas aquelas tuas palavras do poema das p. 43-44: (...) qualquer um do teu tempo / está bastante melhor do que tu /deputado administrador de empresa / ministro da maioria / puta (alguns chegaram a isso) // só tu meu inocente brincas com a neta / açulas o cão pedindo / à família que te ature / o tipo um dia destes morde-te / que é para aprenderes // mas aqui entre amigos / vou-te dizer também / uma coisa importante não cedas / à tentação de mudar / fica nesta pele que é tua // como é que tu escrevias / merdalhem-se uns aos outros // o país mete dó // guarda o último tesão / para mandares / meia dúzia de canalhas à tábua.

Da tua vida fica-me uma saudade imensa e este conselho (tu que não gostavas de dar conselhos a ninguém): não cedas à tentação de mudar fica nesta pele que é tua. Obrigado, Fernando.

 


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