Vilar, Doce e Poético Cantinho

COZINHA(1)

Não se pode afirmar que a cozinha em Vilar é rica em tradições. No dia a dia a alimentação era pobre. Normalmente os trabalhos do campo obrigavam a tarefas diárias de sol a sol e a comida era levada logo de manhã ou então a mãe de família ia levá-la ao local de trabalho. De manhã o alimento mais vulgar era à base de carne de porco frita, especialmente o toucinho. No campo era o caldo de hortaliça com feijão e carne de porco. A broa era um alimento rico por excelência que se comia com azeitonas, toucinho frito ou sardinha de barrica. A fruta, o leite e os ovos raramente entravam na alimentação diária pois esses produtos eram fonte de receita para aquisição de outras necessidades. À noite era vulgar ver enormes famílias à volta duma mesa comendo todos dum enorme prato de barro vermelho, onde as batatas e hortaliça com toucinho frito, sardinha de barrica e raramente bacalhau ou ovo e um ténue fio de azeite era a comida de todos os dias.

A refeição da noite chamada de ceia era como uma solenidade, comida em silêncio e respeito finda a qual se agradecia a Deus a sua dádiva.

A broa era cozida de oito em oito dias conservando-se normalmente numa tábua pendurada duma trave com uma toalha por cima, e o pão de trigo só pelas festas era confeccionado.

É natural que nas casas mais abastadas houvesse outra alimentação mais rica, mas não era a regra.

No entanto, nas festas da Nossa Senhora da Vitória e do Santo Amaro as pessoas esmeravam-se pois, além de ser um dia festivo, tinham convidado familiares e outros que às vezes vinham da cidade “cobrar favores”.

Falando das receitas propriamente ditas começamos por referir as mais usuais no dia a dia.

 

Carne frita com batatas
(Pequeno-Almoço)

Ingredientes: Toucinho salgado, unto de pingue, cebola, batatas.

Coze-se as batatas com a pele. Frita-se em lume brando o toucinho intermeado ou não, cortado em finas fatias numa sertã com o pingue.

Quando estiver quase frito junta-se a cebola cortada às rodelas deixando alourar.

Tirada a pele das batatas junta-se o toucinho tapando a bacia de barro durante alguns minutos antes de servir.

 

Caldo de Feijões
(Jantar)

Ingredientes: Feijão, toucinho, chouriça ou morcela, couve e arroz e, no tempo deles, nabos.

Coze-se o feijão demolhado com a chouriça e um naco de toucinho.

Depois de bem cozidos juntar água e deixar ferver. Acrescenta-se então o arroz e a couve migada.

 

Berças (Escoado ou Escorrido)
(Ceia)

Coze-se hortaliça (que pode ser nabiças, rabiços, vagens, nabos, couve de cortar ou outras — no período do Natal usa-se grelos de brócolos) com batatas e o conduto que pode constar de toucinho frito, sardinha, carapau salgado ou bacalhau. Depois de escorrido, rega-se com azeite.

 

Como recurso em muitas casas faziam-se as chamadas “migas cegas” e as “migas de cavalo cansado”. No primeiro caso, migava-se a bola quente de milho juntando-se uma colher de pingue, alhos e um pouco de água a ferver. No segundo, juntava-se numa malga migas de miolo de broa, açúcar, vinho e um ovo cru misturando bem.

Quando da matança do porco que sucedia uma ou duas vezes por ano, era a altura de encher a salgadeira e dar azo a pratos menos usuais. Na salgadeira ficava para governo do ano inteiro o toucinho, costeletas e ossos com carne. No fumeiro as chouriças e morcelas, e na panela do pingue ou azeite os rojões. Na altura da matança é a ocasião para comer carne fresca, as fêveras, e também o sarrabulho que se compõe de sangue cozido com fatias de fígado e os chamados rojões das tripas. Bocadinhos de alho e folhas de louro enfeitam os pratos que normalmente são para oferecer a famílias amigas.

Também os “vinhos d’alhos” são um aproveitamento das tripas grossas que lavadas em água corrente são depois esfregadas com sal e limão e escaldadas em água a ferver. Depois de frias são colocadas num alguidar com bastantes alhos sendo cobertas com vinho tinto conservando o alguidar em local fresco durante oito dias.

Podem ser cozidas ou guisadas.

 

Rojões

No dia seguinte à matança escolhe-se carne do lombo e das costelas. Parte-se em bocados salgando-os ligeiramente. Deixa-se marinar durante umas horas. Num tacho de cobre onde previamente se colocou um pouco de água para a carne não se pegar, mantém-se ao lume brando durante pelo menos duas horas. Mexe-se de vez em quando com o meichão de madeira.

Os rojões são retirados do tacho quando estiverem bem louros e rijos.

Para conservar os rojões durante muito tempo devem ser colocados dentro dum pote de barro vermelho vidrado, cobertos com pingue da sua própria cozedura, ou azeite.

 

Particularmente na altura das festas confeccionam-se os pratos de chanfana e aletria. Era ver nas vésperas das festas os rebanhos do Ti Sarrano, do Cabreiro e dum homem da Forca atravessarem as ruas da aldeia para serem escolhidos e marcados para os interessados.

Nas lojas de Vilar e em especial na do Vieira que depois foi do Martinho e na do Agnelo Reca os fregueses das redondezas estavam lá caídos, mas bom mesmo parece que era no Jandana de Aradas.

No dia da festa vinham a pé desde Aveiro grupos de conhecidos e desconhecidos que se insinuavam com o fito de serem convidados pela hospitalidade dos vilarenses e entrarem para provarem o carneiro e beberem um copo de vinho!...

 

Chanfana de Carneiro

Ingredientes: Carneiro, cebolas, salsa, alhos, sal, azeite, unto, vinagre, vinho tinto maduro, colorau, pimenta, cravinho, toucinho.

Coloca-se no fundo duma caçoila de barro preto (que depois é óptima para fazer arroz) cebola às rodelas, salsa, toucinho da salgadeira, alho, colorau, pimenta e cravinho.

Põe-se a carne em pedaços por cima. De seguida colocam-se os mesmos condimentos por cima da carne temperando com sal a gosto.

Cobre-se com vinho tinto maduro acrescentando umas gotas de vinagre e um pouco de azeite e pingue junto aos bordos da caçoila. Deve ser assado em forno aquecido a lenha.

A partir do momento em que a caçoila entra no forno a carne não deve ser mexida, acrescentando se necessário um pouco de vinho.

 

Aletria

Ingredientes: 1,5 l de água ou leite, 1/4 kg de massa de aletria, 3 gemas de ovo, 100 gramas de manteiga, 300 gramas de açúcar, casca de limão, sal, canela.

Coloca-se a água (ou leite diluído a gosto) a ferver já com sal, a manteiga e a casca de limão. Batem-se as gemas com um pouco de água morna (para ao serem lançadas no tacho não cozerem). Quando a água estiver a ferver, coloca-se a massa de aletria desfiada, deixando-se cozer.

Depois de cozida junta-se o açúcar deixando ferver mais um pouco.

Retira-se o tacho do lume e adiciona-se em fio as gemas mexendo sempre. Coloca-se a aletria em travessas e quando estiver quase fria decora-se com canela fazendo quadrículas, flores ou os nomes de homenageados de ocasião.

 

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Pela Páscoa é a altura de cozer os folares lindos e ornamentados, bolos que se comem comemorando a ressurreição de Cristo, ou servem como prenda do padrinho ao afilhado ou dos paroquianos ao seu pároco. Também originava longas passeatas até à Senhora da Alumieira ou ao S. Brás da Quinta do Gato onde eram comidos à sombra dum pinhal.

 

Folares

Ingredientes: 1 kg de farinha, 300 grs. de açúcar, 6 ovos, manteiga, raspa de limão, canela, (erva doce — folhas por baixo), 1 colher de sal, 20 gramas de fermento de padeiro.

Numa amassadeira de madeira junta-se a farinha, o fermento previamente derretido em água morna, gemas de ovos e os restantes ingredientes amassando e adicionando aos poucos água morna até a massa ficar mole e elástica fazendo bolhas de ar. Deixa-se a repousar e a levedar durante umas horas cobrindo a amassadeira com um pano e um cobertor. Depois de levedada tendem-se pequenos bolos, aí com 20 cm de diâmetro em média, que se colocam sobre folhas de couve polvilhadas de farinha para que as pequenas brasas não se colem.

Os folares são ornamentados, antes de irem para o forno com ovos cozidos com folhas secas de cebola de forma a sua casca ficar com uma cor acastanhada. São ligados ao folar por finos rolos de massa a que se chamam correias cruzando por cima dos ovos e à volta do folar. Os folares devem ser cozidos de preferência em fornos a lenha.

 

O Pão

A broa ou boroa era por excelência o alimento base da dieta alimentar dos nossos pais e avós. O mendigo apenas pedia um bocado de broa e toda a casa que se prezasse cozia pelo menos uma vez por semana uma fornada de tão rico e acessível alimento. As crianças andavam de manhã à noite com um naco de broa na mão chegando às refeições sem apetite (ia-se para o campo e por falta de tempo ou dos necessários, um bocado de broa com azeitonas ou outros condimentos resolvia a questão). Mantinha-se fresca e gostosa durante uma semana.

Ingredientes: farinha de milho, fermento, sal.

O fermento é resultante de um pouco de massa da fornada anterior, deixada a azedar durante oito dias sendo guardado numa malga dentro da salgadeira.

Faz-se primeiro o “crescente” com um pouco de farinha, água e fermento amassando-os, e deixando-os repousar durante aproximadamente uma hora.

Com a farinha (peneirada por peneira de pano) na amassadeira, escaldar com um pouco de água a ferver, mexendo sempre de baixo para cima (com o “meichão”). Deixa-se arrefecer durante uns minutos.

Junta-se o crescente amassando e adicionando um pouco de água morna com sal.

Deixa-se em repouso para levedar durante algum tempo, tende-se numa escudela de madeira e coloca-se na pá de ir ao forno depois de bem varrido.

A porta de ferro do forno será calafetada com restos de farinha para conservar o calor. Também se costuma deixar brasas acesas na base da tampa pela mesma razão.

 

Bola

A bola é feita com a mesma massa da broa, mas dando-­lhe uma forma achatada, aí com 5 cm de altura de forma a ficar cozida à volta de 15 minutos. Coloca-se à entrada do forno para mais facilmente ser retirada. Deve ser comida quente. Antigamente servia muitas vezes de ceia fazendo-se com ela as chamadas “migas cegas”. Migava-se a bola num recipiente vidrado juntando uma colher de pingue, alhos e água a ferver.

 

Bola Doce

A massa é achatada misturando-se previamente açúcar e canela cozendo o mesmo tempo da broa.

 

Bola com sardinha

A massa é achatada numa camada fina distribuindo a sardinha e tapando-a com outra camada cozendo o mesmo tempo da broa.

 

Bola com chouriça

A massa é achatada numa camada fina distribuindo bocados pequenos de chouriça e fatias finas de toucinho, cobrindo com outra camada fina de massa e deixando cozer o mesmo tempo da broa.

 

Iguarias diárias: Leite tirado da vaca com migas de broa, broa com figos, café de cevada com azeitona e broa, pêras de Inverno cozidas, bolos só aqueles que a Senhora Conceição da Costeira dava em troca da dádiva de carne que algumas casas faziam quando da matança e alguma “triga-milha” que as mães traziam da praça após a venda da hortaliça.

 

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Matança do Porco

...Caberá aqui falar da matança do Porco, pois está directamente ligada à alimentação. Como em todo o Portugal, é um autêntico ritual festivo desde os preparativos, preparando a salgadeira, arear os tachos de cobre, a própria gamela de amassar o pão, os alguidares, os panos, os ramos de loureiro, a dispensa limpa, o varal do carro, o afiar das facas, etc.

Na véspera o porco não come, que gordo está ele entre as 9 e 14 arrobas. Manhã cedo vem o matador, homem habituado àquelas andanças.

Os mais novos da casa, sem coragem para verem a morte bárbara do bicho, ou ouvirem os seus impressionantes guinchos, metem a cabeça debaixo dos cobertores, dedos enfiados nos ouvidos e vão perguntando cá para fora “Já está?”

Entretanto o porco contrariado é arrastado com uma corda desde o curral, sendo içado e deitado de lado no varal do carro de bois, ou carroça da vaca. Três ou quatro pessoas seguram o animal, enquanto o matador, com pre­cisão milimétrica, espeta a grande faca no pescoço entre as espáduas e com inclinação de forma a atingir o coração.

O animal vai perdendo sangue que cai num alguidar previamente posto por baixo, e vai-se extinguindo durante alguns minutos até morrer.

Posto num chão liso e limpo, é atiçada uma fogueira com agulhas de pinheiro, e já com a presença dos mais jovens que vêm ajudar a chamuscar (ultimamente já há quem use a chama do “maçarico de soldar” para queimar a pele). Queimada a primeira pele, é raspada com as arestas duma telha de barro de meia-cana, e uma escova de piaçaba adicionando água.

O “rojão do carro”, excremento do porco que o larga ao morrer, era destinado bem embrulhado para o mais novo e ingénuo ajudante!...

Na despensa iça-se o porco através dum adival pendente duma trave do teto, ligando aos jarretes do animal atravessados pelo chambaril de madeira.

Com uma faca afiada e com multa precisão, levanta­-se um avental” de forma a poder extrair as tripas e os res­tantes órgãos. Mas antes, os pais chamando os filhos inte­ressados em anatomias escolares diziam-lhes: “Queres ver o teu corpo? Mata um porco”...

Depois de limpo, o animal é arreado e procede-se então ao desmanchar.

As febras, postas na gamela, destinam-se a rojões e a chouriças.

O toucinho, as costelas, as pernas e a cabeça são seccionados e armazenados em sal na salgadeira que pode ser em madeira ou em cimento.

Há vários derivados aproveitados para os chamados “vinhos d’alhos”. O sarrabulho que é uma mistura de sangue cozido, fígado, rins e rojões das tripas enfeitado com alho e folhas de louro. Não há o costume de se fazerem presuntos.

O acto da lavagem das tripas para fazerem os enchidos também faz parte do ritual, deslocando-se as mulheres para as lavarem em água corrente que dantes corria límpida nas valas do Vale de Vilar.

Ao desmanchar o porco logo se retiram umas fêveras fresquinhas que assadas na brasa servem de almoço e paga ao matador e ajudantes.

São uns dias de canseiras compensadas. Nos primeiros dias com umas fêveras e rojões quentinhos, e durante o ano a salgadeira cheia e o fumeiro com as chouriças e morcelas que depois de secas com fogueiras de ramo de loureiro são postas dentro de um saco e “escondidas” no caixão do milho ou conservadas, assim como os rojões, dentro duma vasilha de barro vermelho vidrado, e cheia de unto de pingue.

Agora há que ir à Feira comprar um porquinho das ervas que mais tarde comerá, para entrar na ceva, abóboras, milho, farinha e, claro, a lavagem dos restos da cozinha.


(1) Compilado parcialmente a partir da publicação da edição de Julho de 1990 da Acção Católica de Vilar — Grupo Santa Rita.


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