Não se pode
afirmar que a cozinha em Vilar é rica em tradições. No dia a
dia a alimentação era pobre. Normalmente os trabalhos do campo
obrigavam a tarefas diárias de sol a sol e a comida era levada
logo de manhã ou então a mãe de família ia levá-la ao local
de trabalho. De manhã o alimento mais vulgar era à base de carne
de porco frita, especialmente o toucinho. No campo era o caldo de
hortaliça com feijão e carne de porco. A broa era um alimento
rico por excelência que se comia com azeitonas, toucinho frito ou
sardinha de barrica. A fruta, o leite e os ovos raramente entravam
na alimentação diária pois esses produtos eram fonte de receita
para aquisição de outras necessidades. À noite era vulgar ver
enormes famílias à volta duma mesa comendo todos dum enorme
prato de barro vermelho, onde as batatas e hortaliça com toucinho
frito, sardinha de barrica e raramente bacalhau ou ovo e um ténue
fio de azeite era a comida de todos os dias.
A refeição da
noite chamada de ceia era como uma solenidade, comida em silêncio
e respeito finda a qual se agradecia a Deus a sua dádiva.
A broa era
cozida de oito em oito dias conservando-se normalmente numa tábua
pendurada duma trave com uma toalha por cima, e o pão de trigo só
pelas festas era confeccionado.
É natural que
nas casas mais abastadas houvesse outra alimentação mais rica,
mas não era a regra.
No entanto, nas
festas da Nossa Senhora da Vitória e do Santo Amaro as pessoas
esmeravam-se pois, além de ser um dia festivo, tinham convidado
familiares e outros que às vezes vinham da cidade “cobrar
favores”.
Falando das
receitas propriamente ditas começamos por referir as mais usuais
no dia a dia.
Carne frita com
batatas
(Pequeno-Almoço)
Ingredientes:
Toucinho salgado, unto de pingue, cebola, batatas.
Coze-se as
batatas com a pele. Frita-se em lume brando o toucinho intermeado
ou não, cortado em finas fatias numa sertã com o pingue.
Quando estiver
quase frito junta-se a cebola cortada às rodelas deixando
alourar.
Tirada a pele
das batatas junta-se o toucinho tapando a bacia de barro durante
alguns minutos antes de servir.
Caldo de Feijões
(Jantar)
Ingredientes:
Feijão, toucinho, chouriça ou morcela, couve e arroz e,
no tempo deles, nabos.
Coze-se o feijão
demolhado com a chouriça e um naco de toucinho.
Depois de bem
cozidos juntar água e deixar ferver. Acrescenta-se então o arroz
e a couve migada.
Berças (Escoado
ou Escorrido)
(Ceia)
Coze-se hortaliça
(que pode ser nabiças, rabiços, vagens, nabos, couve de cortar
ou outras — no período do Natal usa-se grelos de brócolos) com
batatas e o conduto que pode constar de toucinho frito, sardinha,
carapau salgado ou bacalhau. Depois de escorrido, rega-se com
azeite.
Como
recurso em muitas casas faziam-se as chamadas “migas
cegas” e as “migas de cavalo cansado”. No primeiro caso,
migava-se a bola quente de milho juntando-se uma colher de pingue,
alhos e um pouco de água a ferver. No segundo, juntava-se numa
malga migas de miolo de broa, açúcar, vinho e um ovo cru
misturando bem.
Quando da matança
do porco que sucedia uma ou duas vezes por ano, era a altura de
encher a salgadeira e dar azo a pratos menos usuais. Na salgadeira
ficava para governo do ano inteiro o toucinho, costeletas e ossos
com carne. No fumeiro as chouriças e morcelas, e na panela do
pingue ou azeite os rojões. Na altura da matança é a ocasião
para comer carne fresca, as fêveras, e também o sarrabulho que
se compõe de sangue cozido com fatias de fígado e os chamados
rojões das tripas. Bocadinhos de alho e folhas de louro enfeitam
os pratos que normalmente são para oferecer a famílias amigas.
Também os
“vinhos d’alhos” são um aproveitamento das tripas grossas
que lavadas em água corrente são depois esfregadas com sal e limão
e escaldadas em água a ferver. Depois de frias são colocadas num
alguidar com bastantes alhos sendo cobertas com vinho tinto
conservando o alguidar em local fresco durante oito dias.
Podem ser
cozidas ou guisadas.
Rojões
No dia seguinte
à matança escolhe-se carne do lombo e das costelas. Parte-se em
bocados salgando-os ligeiramente. Deixa-se marinar durante umas
horas. Num tacho de cobre onde previamente se colocou um pouco de
água para a carne não se pegar, mantém-se ao lume brando
durante pelo menos duas horas. Mexe-se de vez em quando com o
meichão de madeira.
Os rojões são
retirados do tacho quando estiverem bem louros e rijos.
Para conservar
os rojões durante muito tempo devem ser colocados dentro dum pote
de barro vermelho vidrado, cobertos com pingue da sua própria
cozedura, ou azeite.
Particularmente
na altura das festas confeccionam-se os pratos de chanfana e
aletria. Era ver nas vésperas das festas os rebanhos do Ti
Sarrano, do Cabreiro e dum homem da Forca atravessarem as ruas da
aldeia para serem escolhidos e marcados para os interessados.
Nas lojas de
Vilar e em especial na do Vieira que depois foi do Martinho e na
do Agnelo Reca os fregueses das redondezas estavam lá caídos,
mas bom mesmo parece que era no Jandana de Aradas.
No dia da festa
vinham a pé desde Aveiro grupos de conhecidos e desconhecidos que
se insinuavam com o fito de serem convidados pela hospitalidade
dos vilarenses e entrarem para provarem o carneiro e beberem um
copo de vinho!...
Chanfana de
Carneiro
Ingredientes:
Carneiro, cebolas, salsa, alhos, sal, azeite, unto, vinagre, vinho
tinto maduro, colorau, pimenta, cravinho, toucinho.
Coloca-se no
fundo duma caçoila de barro preto (que depois é óptima para
fazer arroz) cebola às rodelas, salsa, toucinho da salgadeira,
alho, colorau, pimenta e cravinho.
Põe-se a carne
em pedaços por cima. De seguida colocam-se os mesmos condimentos
por cima da carne temperando com sal a gosto.
Cobre-se com
vinho tinto maduro acrescentando umas gotas de vinagre e um pouco
de azeite e pingue junto aos bordos da caçoila. Deve ser assado
em forno aquecido a lenha.
A partir do
momento em que a caçoila entra no forno a carne não deve ser
mexida, acrescentando se necessário um pouco de vinho.
Aletria
Ingredientes:
1,5 l de água ou leite, 1/4 kg de massa de aletria, 3 gemas de
ovo, 100 gramas de manteiga, 300 gramas de açúcar, casca de limão,
sal, canela.
Coloca-se a água
(ou leite diluído a gosto) a ferver já com sal, a manteiga e a
casca de limão. Batem-se as gemas com um pouco de água morna
(para ao serem lançadas no tacho não cozerem). Quando a água
estiver a ferver, coloca-se a massa de aletria desfiada,
deixando-se cozer.
Depois de cozida
junta-se o açúcar deixando ferver mais um pouco.
Retira-se o
tacho do lume e adiciona-se em fio as gemas mexendo sempre.
Coloca-se a aletria em travessas e quando estiver quase fria
decora-se com canela fazendo quadrículas, flores ou os nomes de
homenageados de ocasião.
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Pela Páscoa é
a altura de cozer os folares lindos e ornamentados, bolos que se
comem comemorando a ressurreição de Cristo, ou servem como
prenda do padrinho ao afilhado ou dos paroquianos ao seu pároco.
Também originava longas passeatas até à Senhora da Alumieira ou
ao S. Brás da Quinta do Gato onde eram comidos à sombra dum
pinhal.
Folares
Ingredientes:
1 kg de farinha, 300 grs. de açúcar, 6 ovos, manteiga,
raspa de limão, canela, (erva doce — folhas por baixo), 1
colher de sal, 20 gramas de fermento de padeiro.
Numa amassadeira
de madeira junta-se a farinha, o fermento previamente derretido em
água morna, gemas de ovos e os restantes ingredientes amassando e
adicionando aos poucos água morna até a massa ficar mole e elástica
fazendo bolhas de ar. Deixa-se a repousar e a levedar durante umas
horas cobrindo a amassadeira com um pano e um cobertor. Depois de
levedada tendem-se pequenos bolos, aí com 20 cm de diâmetro em média,
que se colocam sobre folhas de couve polvilhadas de farinha para
que as pequenas brasas não se colem.
Os folares são
ornamentados, antes de irem para o forno com ovos cozidos com
folhas secas de cebola de forma a sua casca ficar com uma cor
acastanhada. São ligados ao folar por finos rolos de massa a que
se chamam correias cruzando por cima dos ovos e à volta do folar.
Os folares devem ser cozidos de preferência em fornos a lenha.
O Pão
A broa ou boroa
era por excelência o alimento base da dieta alimentar dos nossos
pais e avós. O mendigo apenas pedia um bocado de broa e toda a
casa que se prezasse cozia pelo menos uma vez por semana uma
fornada de tão rico e acessível alimento. As crianças andavam
de manhã à noite com um naco de broa na mão chegando às refeições
sem apetite (ia-se para o campo e por falta de tempo ou dos necessários,
um bocado de broa com azeitonas ou outros condimentos resolvia a
questão). Mantinha-se fresca e gostosa durante uma semana.
Ingredientes:
farinha de milho, fermento, sal.
O fermento é
resultante de um pouco de massa da fornada anterior, deixada a
azedar durante oito dias sendo guardado numa malga dentro da
salgadeira.
Faz-se primeiro
o “crescente” com um pouco de farinha, água e fermento
amassando-os, e deixando-os repousar durante aproximadamente uma
hora.
Com a farinha
(peneirada por peneira de pano) na amassadeira, escaldar com um
pouco de água a ferver, mexendo sempre de baixo para cima (com o
“meichão”). Deixa-se arrefecer durante uns minutos.
Junta-se o
crescente amassando e adicionando um pouco de água morna com sal.
Deixa-se em
repouso para levedar durante algum tempo, tende-se numa escudela
de madeira e coloca-se na pá de ir ao forno depois de bem
varrido.
A porta de ferro
do forno será calafetada com restos de farinha para conservar o
calor. Também se costuma deixar brasas acesas na base da tampa
pela mesma razão.
Bola
A bola é feita
com a mesma massa da broa, mas dando-lhe uma forma achatada, aí
com 5 cm de altura de forma a ficar cozida à volta de 15 minutos.
Coloca-se à entrada do forno para mais facilmente ser retirada.
Deve ser comida quente. Antigamente servia muitas vezes de ceia
fazendo-se com ela as chamadas “migas cegas”. Migava-se a bola
num recipiente vidrado juntando uma colher de pingue, alhos e água
a ferver.
Bola Doce
A massa é
achatada misturando-se previamente açúcar e canela cozendo o
mesmo tempo da broa.
Bola com sardinha
A massa é
achatada numa camada fina distribuindo a sardinha e tapando-a com
outra camada cozendo o mesmo tempo da broa.
Bola com chouriça
A massa é
achatada numa camada fina distribuindo bocados pequenos de chouriça
e fatias finas de toucinho, cobrindo com outra camada fina de
massa e deixando cozer o mesmo tempo da broa.
Iguarias diárias:
Leite tirado da vaca com migas de broa, broa com figos, café de
cevada com azeitona e broa, pêras de Inverno cozidas, bolos só
aqueles que a Senhora Conceição da Costeira dava em troca da dádiva
de carne que algumas casas faziam quando da matança e alguma
“triga-milha” que as mães traziam da praça após a venda da
hortaliça.
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Matança do Porco
...Caberá aqui
falar da matança do Porco, pois está directamente ligada à
alimentação. Como em todo o Portugal, é um autêntico ritual
festivo desde os preparativos, preparando a salgadeira, arear os
tachos de cobre, a própria gamela de amassar o pão, os
alguidares, os panos, os ramos de loureiro, a dispensa limpa, o
varal do carro, o afiar das facas, etc.
Na véspera o
porco não come, que gordo está ele entre as 9 e 14 arrobas. Manhã
cedo vem o matador, homem habituado àquelas andanças.
Os mais novos da
casa, sem coragem para verem a morte bárbara do bicho, ou ouvirem
os seus impressionantes guinchos, metem a cabeça debaixo dos
cobertores, dedos enfiados nos ouvidos e vão perguntando cá para
fora “Já está?”
Entretanto o
porco contrariado é arrastado com uma corda desde o curral, sendo
içado e deitado de lado no varal do carro de bois, ou carroça da
vaca. Três ou quatro pessoas seguram o animal, enquanto o
matador, com precisão milimétrica, espeta a grande faca no
pescoço entre as espáduas e com inclinação de forma a atingir
o coração.
O animal vai
perdendo sangue que cai num alguidar previamente posto por baixo,
e vai-se extinguindo durante alguns minutos até morrer.
Posto num chão
liso e limpo, é atiçada uma fogueira com agulhas de pinheiro, e
já com a presença dos mais jovens que vêm ajudar a chamuscar
(ultimamente já há quem use a chama do “maçarico de soldar”
para queimar a pele). Queimada a primeira pele, é raspada com as
arestas duma telha de barro de meia-cana, e uma escova de piaçaba
adicionando água.
O “rojão do
carro”, excremento do porco que o larga ao morrer, era destinado
bem embrulhado para o mais novo e ingénuo ajudante!...
Na despensa iça-se
o porco através dum adival pendente duma trave do teto, ligando
aos jarretes do animal atravessados pelo chambaril de madeira.
Com uma faca
afiada e com multa precisão, levanta-se um avental” de forma
a poder extrair as tripas e os restantes órgãos. Mas antes, os
pais chamando os filhos interessados em anatomias escolares
diziam-lhes: “Queres ver o teu corpo? Mata um porco”...
Depois de limpo,
o animal é arreado e procede-se então ao desmanchar.
As febras,
postas na gamela, destinam-se a rojões e a chouriças.
O toucinho, as
costelas, as pernas e a cabeça são seccionados e armazenados em
sal na salgadeira que pode ser em madeira ou em cimento.
Há vários
derivados aproveitados para os chamados “vinhos d’alhos”. O
sarrabulho que é uma mistura de sangue cozido, fígado, rins e
rojões das tripas enfeitado com alho e folhas de louro. Não há
o costume de se fazerem presuntos.
O acto da
lavagem das tripas para fazerem os enchidos também faz parte do
ritual, deslocando-se as mulheres para as lavarem em água
corrente que dantes corria límpida nas valas do Vale de Vilar.
Ao desmanchar o
porco logo se retiram umas fêveras fresquinhas que assadas na
brasa servem de almoço e paga ao matador e ajudantes.
São uns dias de
canseiras compensadas. Nos primeiros dias com umas fêveras e rojões
quentinhos, e durante o ano a salgadeira cheia e o fumeiro com as
chouriças e morcelas que depois de secas com fogueiras de ramo de
loureiro são postas dentro de um saco e “escondidas” no caixão
do milho ou conservadas, assim como os rojões, dentro duma
vasilha de barro vermelho vidrado, e cheia de unto de pingue.
Agora há que ir
à Feira comprar um porquinho das ervas que mais tarde comerá,
para entrar na ceva, abóboras, milho, farinha e, claro, a lavagem
dos restos da cozinha.
(1) Compilado
parcialmente a partir da publicação da edição de Julho de 1990
da Acção Católica de Vilar — Grupo Santa Rita.
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