António de
Lemos, proprietário e experimentado mestre de naus, passara uma
noite cheia de insónias. Sonhos de mau presságio incomodavam-no.
Acordou excitado e levantou-se cedo, mal o sol despontara. Sua
esposa, D. Maria Josefa, bem tentava adivinhar o que provocava
aquele estado d’alma. O esposo fechava-se num mutismo pouco
usual. Sobrolho carregado, raras palavras e pouca vontade de
confidenciar. A Confraria de Sá, da qual era membro, acudia a
tempo e horas às necessidades dos mareantes e até a todos
aqueles que recorriam aos seus préstimos. O filho estava quase
com três anos e era um criança linda e feliz.
Da grande frota
que possuía, composta de barcaças, naus e caravelas, poucas
tinham naufragado ou sido atacadas pelos piratas. Os negócios
floresciam.
Sem quase se
despedir, dirigiu-se à cavalariça, arreou o seu cavalo
predilecto, um garanhão pigarço a que pomposamente chamava
“Navegante” e que tinha resistido à viagem de caravela de uma
das suas idas à Flandres, mais propriamente a Le Havre. Os
alquiladores da região diziam não haver cavalo igual, o que
envaidecia o dono. Nessa manhã nem pediu ajuda ao jovem
palafreneiro que dormia a sono solto por cima da cavalariça.
O dia estava
pardacento, e quando António de Lemos saiu de sua casa na Rua de
S. Paulo, muito próximo do cruzeiro da Senhora da Alegria, o céu
ameaçava borrasca.
Fora das
muralhas da Vila de Aveiro, começara a fervilhar de actividade
mal o sol despontou a medo no recorte da serra. Eram seis horas e
meia. Pelo caminho encontrou alguns conhecidos, mas ia tão
absorto que apenas se limitava a acenar num gesto breve. Passou
por várias mulheres vestidas de negro que se dirigiam para a
ermida da Vera Cruz, situada na Granja dos Laçarotes. Desceu a
calçada a medo, pois o caminho era irregular. Passou por
debaixo dos arcos do aqueduto da fonte da Ribeira, atravessou a
Ponte dos Arcos e, como era seu hábito, não passou pela porta da
Ribeira, onde a falta de sol não projectava a sombra do ponteiro
sobre as horas da meridiana. Seguiu pela Rua das Barcas
contornando as muralhas, esperando chegar às Portas da Vila com
os portões já abertos.
É que as Portas
da Vila só se abriam quando o sol atingia o Largo de S. Miguel.
Esperaria e, então, dirigia-se à casa do íntimo amigo, o
mercador de ferro Estêvão Lopes, morador na confluência da
Rua Direita com a Rua do Caneiro.
Esta amizade
vinha quase do berço e continuava, hoje, através das frequentes
visitas que se faziam, dos negócios com os fretes para dentro e
fora da Vila e, sobretudo, por comungarem das mesmas ideias
libertadoras. Seu pai, Jerónimo de Lemos, também ele mestre das
naus, filho de Pêro de Lemos, mestre da caravela “Cadramoz
Novo” e sobrinho de Duarte de Lemos que descobriu o Benin, foi o
“culpado” dessa amizade ao trazer para Aveiro o pai de Estêvão
Lopes, o cristão-novo Saúl “Lopes” também ele mercador.
Quando em Abril de 1506 os cristãos-novos estavam a ser
massacrados em Lisboa, Jerónimo de Lemos que já fazia fretes
para Saúl, através de uma acção combinada, embarcou-o assim
como toda a família na caravela “Senhora de Sá” e trouxe-os
para Aveiro, onde se radicaram.
O alcaide-mor
Pedro Moreira, homem sensato, viu com bons olhos a chegada de
homem tão rico e talvez porque o anti-judaísmo ainda não estava
exacerbado na Vila. Apenas algum clero, os fidalgos na sua maioria
e, em especial, a família Lara e Menezes mostraram alguma
animosidade, pois os terrenos dos Lopes confinam com o terreno
pretendido para a construção dum palácio há muito desejado.
Mas o que agora
trazia preocupado António de Lemos era a crescente animosidade
contra os cristãos novos fomentada com a proibição de os judeus
ocuparem lugares de responsabilidade e exercerem a sua actividade
de médicos e boticários ou serem membros de associações e
confrarias.
D. Isabel de Ataíde,
esposa de Estevão, andava prenhe, estava prestes a dar à luz e
isso mais preocupava aquele verdadeiro amigo da família Lopes.
Por isso, a visita tinha a intenção de minorar os receios de uma
nova vaga anti-cristãos-novos.
A Vila
amuralhada é triste e insalubre. Os muros com os seus trinta e
dois pés geométricos só deixam entrar o sol já
este vai alto,
em especial nas casas próximo da muralha, e o ocaso parece mais
cedo. O vento também não circula à vontade, e as moscas e
outros insectos desenvolvem-se com rapidez. Quando chove muito, a
água encaminha-se para a porta da Ribeira tornando-a intransponível.
Como não há
fontes dentro das muralhas, cada morador tem poço próprio. Os do
lado de fora das muralhas, têm várias fontes como a das Almas, a
da Racha, a da Macieira e a da Ribeira ou da Cale. Os vizinhos
de dentro andam sempre em rixas, desprezando a limpeza das ruas.
Para cúmulo os esterqueiros salpicam as ruas com o sugo, pois a
calçada irregular baldeia as domas. O esterco é espalhado por
grandes áreas de terrenos cultiváveis, originando um odor
nauseabundo.
Todos sabiam
que, quando as muralhas foram concluídas em 1440, após 22 anos
de construção, elas não serviam para defender a Vila de
qualquer ataque e que a sua configuração foi uma vaidade ou uma
promessa do Infante D. Pedro, pois até pretendeu que fossem
semelhantes às de Jerusalém. O facto de as muralhas terem doze
portas e quatro postigos e só as portas da Vila de Vagos e da
Ribeira serem duplas, as torna vulneráveis a qualquer ataque,
pois é impossível a guarnição acudir a tantos pontos frágeis
e, por isso, os sitiantes teriam a tarefa facilitada. Os nobres
e o clero apoiaram a sua construção, porque pensavam poderem
livrar-se das pestes, dos pobres e mendigos. Na altura não viviam
dentro das muralhas mais de três mil almas, que se distribuíam
por nobres, clérigos, homens da governação, agricultores,
mercadores e outros negociantes.
Os cães, os
gatos e o rato negro da Ásia proliferam, dando origem a pestes
que dizimam muita gente.
Não há torre
de menagem e nem toda a muralha tem adarves. Em alguns trechos o
muro só tem uma fiada, e a pedra vermelha de Eirol é aplicada de
forma irregular e mal aparelhada, sendo os blocos colados com
andoa recolhida na margem esquerda do rio Vouga; lioz, só no
lajeamento, colunas, frisos, lápides, túmulos e brasões. Alguma
vem de Outil. Só no local das portas, portões, postigos e torreões
os muros são reforçados, e casamatas só há na porta da Ribeira
e na da Vila, aquela tendo adjacentes o palácio dos Tavares e a
Casa do Bispo. Também não possuem balestreiros e barbacãs para
disparar as bestas em segurança; cubelos, só existem em cada
canto das muralhas.
Em 1500 começaram
as muralhas a ameaçar ruína e o seu conserto importou em 10.000
reis, apesar de o vedor de obras nos muros, Lourenço Eanes de
Morais, muito as cuidar. Após 85 anos da sua conclusão, já ameaçam
novamente ruína, o que não sucede por exemplo, com os castelos
de Guimarães e de Leiria e outros muito antigos levando a
concluir que a ideia de construir as muralhas apenas visou
satisfazer um capricho pessoal e isolar os nobres, o clero, os
“homens bons”, alguns mercadores e mesteirais, os
representantes da lei e da ordem e a expulsar gradualmente os
judeus, os cristãos-novos e os confessos hereges apóstatas, como
sucedeu a Lopo Dias que foi condenado. Os de origem árabe e os
mosaicos tiveram de se mudar para fora das muralhas e construir as
suas casas entre as portas de Vagos, da Vila e ao longo da Rua do
Passeio. Os pobres e os mendigos, por serem de pouco crédito,
também foram expulsos. Leis contra a mendicidade decretam que os
mendigos se têm de afastar por um raio de 10 léguas e se são
apanhados sem licença serão açoitados em praça pública e
metidos a baraço.
Há muita
famulagem composta quase só por servos e escravos. As profissões
predominantes são os veadores, tropeiros, raçoeiros,
espingardeiros e tratantes, arneiros, surradores, alquiladores,
tosadores e almocreves, pregoeiros, ourives e tabeliães,
carniceiros, cutileiros, ferradores e sombreireiros, tintureiros,
alfaiates e marceneiros, atafoneiros e espadeiros, sirgueiros,
taberneiros e marchantes, boticários, físicos, cirurgiões e
até cabalistas.
Mas, para além
dos ociosos fidalgos que recebem tenças, e que distribuem o seu
tempo entre caçadas, esporádicas guerras, jogos de recreio,
adestramento e tabulagem, há os homens que cuidam das leis e da
ordem. Como autoridades máximas residentes, há o alcaide-mor, o
alcaide pequeno, o procurador, o juiz, o desembargador, o
corregedor, o almotacel, o contador, o secretário, o tabelião, o
provedor, o escrivão, o vereador, o valido, o juiz de fora, o
juiz da alfândega, o almoxarife, o definidor e o meirinho. Entre
os militares, o capitão-mor, o tenente-mor, o condestabre, o
couraceiro, o besteiro, o charameleiro, o anadel, o espingardeiro,
o quadrilheiro e o escudeiro. No clero, o arcipreste, o prior, o
presbítero, o ecónomo, o provisor, o prioste, o mordomo e o
menino de coro.
Dentro das
muralhas, o domingo é respeitosamente guardado, e em todas as
igrejas há vários ofícios divinos durante o dia. É a
oportunidade para se encontrarem os amigos e conhecidos e,
sobretudo, para as mulheres saírem de casa.
Da parte da
tarde, a nobreza joga o xadrez ou os dados, muito embora este jogo
seja proibido, assim como outros jogos de azar. Os tavolageiros
perdem o dinheiro e a roupa, e vão 15 dias para a prisão. Até
quem esteja a assistir vai uma noite para a prisão e perde a
roupa. No entanto, os nobres estão bem resguardados e nunca são
incomodados. No largo do Terreiro, ampliado com a destruição
total do que restava da Judiaria, jogam aos saltos, alarde,
corridas, às canas ou bafordo, jogo perigoso com o lançamento de
canas afiadas em vez de lanças, aléu, badalassa, conca com pela
e marcas no chão.
A pela mobiliza
muitos interessados. Munidos de uma raquete, três de cada lado
jogam com uma bola de couro cheia de ar.
Há ainda outros
jogos como o truque, a laranjinha e o toque-emboque. As mulheres
adoram sobretudo o jogo das prendas que os homens não toleram o
jogo do truque ou da choca com um pau a impelir uma bola é, porém,
o jogo mais popular.
A caça também
é um privilégio dos nobres que podem caçar com esmerilhão. Na
Ria há imensas espécies. Lavancos, caturros, negras, maçaricos,
marrecas, rábis-coelhas, ajájas e outras espécies proliferam. A
caça do monte nunca mais acaba, tanta ela é. E a caça grossa
como o javali, o corço, o lobo, a raposa e até o urso, são caçados
nas matas de Anadia. O povo só pode utilizar armadilhas e
artimanhas de rede, podendo no entanto caçar de dia e de noite.
Mas o direito de
caçar está sujeito a regras bem definidas que já vêm de há
quarenta e cinco anos no reinado de D. Afonso.
O coutamento de
Mira e das Gândaras de Aveiro até Casal-Comba, Quiaios até ao
Mondego e à Lagoa de Mira, é destinado aos coelhos, caça
maior e peixe, e quem correr monte, é preso e paga seiscentos
reis.
Se matar veado
ou corso, paga por cabeça mil e duzentos reis e é degredado para
Arzila.
Quem for achado
a pôr armadilhas é degredado um ano para Tanger.
Quem for
apanhado com cães, paga setecentos reis por cada coelho morto.
Quem andar à caça
dos negrões e mate alguma truta, paga setecentos reis e é
degredado.
Quem tiver pele
de veado, e não justifique a sua origem, paga quinhentos reis.
Quem for achado
com besta ou outra arma fora das estradas públicas, perde a
arma e é preso.
Quem agasalhar
em sua casa besteiro de monte, paga quinhentos reis.
O Couteiro-Mor
que tem quatro guardas às suas ordens, pode prender os que nas
ditas penas incorrerem, sendo presentes ao almoxarife que lhe
aplica a sentença. Se houver apelação, será enviada aos
veadores da Fazenda.
O próprio
Couteiro-Mor, se autorizar alguém a caçar, paga três mil reis
para a chancelaria da sua Câmara.
Os dias são monótonos,
e as festas do calendário litúrgico não passam do costumado
“Te Deum”.
A 25 de Maio, a
festa do “Corpo de Deus” é o ponto alto da Vila. Todos os
aveirenses colaboram, não havendo diferenças entre nobres e
plebeus. Estas manifestações, que têm tanto de religiosas
como de profanas e pagãs, só são igualadas ou pela morte do
Rei, como sucedeu com a morte de D. Manuel em 1521, ou com a
subida ao trono, passados seis dias, do seu filho D. João. Mas
estas são manifestações impostas pelo poder, e em que a adesão
do povo é irrelevante.
Na festividade
do “Corpo de Deus” tudo é espontâneo e sentido, muito embora
as autoridades eclesiásticas e civis elaborem um plano, quanto
ao trajecto e composição do cortejo. As ruas estão atapetadas
de junco, erva doce, flores de sabugueiro e de mimosas; há
mastros com pendões ao longo do percurso e as janelas têm
colgaduras penduradas.
Todos os homens
da governança e vereadores, com o mais velho destes à frente
empunhando a bandeira da Vila, estão presentes, assim como os
almotaceis que com as varas abrem a procissão, seguidos de seis
homens armados que ladeiam a charola com o Santíssimo
Sacramento. Estes homens armados representam os barbeiros, os
ferreiros, os ferradores, os cutileiros e os besteiros. A charola
é acompanhada por oito clérigos recebendo cada um duzentos reis
que são pagos pelos alfaiates, oitocentos reis; pelos
canastreiros, quinhentos reis e pelos tanoeiros, quatrocentos e
cinquenta reis. Os almotaceis têm também a obrigação de ir
buscar os frades de São Domingos para acompanharem a procissão.
Os mercadores de
retalho dão duas tochas que são empunhadas por dois homens da
governação, que se colocam atrás da charola.
Os mercadores de
bacalhau, os de ferro e outras mercadorias são obrigados a dar
dezasseis tochas, tendo de as levar junto à charola.
As contadeiras são
obrigadas a dar a dança das ciganas pagando também, para isso,
as regateiras de sardinha e fruta.
As padeiras da
Vila Nova são obrigadas a participar duas.
As da outra
banda da Vila pagam para elas, incluindo as tecedeiras, horteloas
e alfaiates.
Os oleiros e os
calafates são obrigados a levar a sua bandeira e dar uma dança
bem concertada.
Os carpinteiros
das naus e navios levam uma nau em miniatura, mas muito bem feita.
Os carpinteiros
e pedreiros levam a sua bandeira de S. José.
Os almocreves e
trabalhadores são obrigados a levar uma folia bem organizada.
Os taberneiros e
azeiteiros são obrigados a dar a festa do dragão.
Os sapateiros são
obrigados a ir todos e dar a festa da mourisca.
Os sombreireiros
e os sirgueiros são obrigados a dar a dança dos romeiros.
Os medidores dão
os chocalhos.
Os marceneiros
levam Nossa Senhora numa charola.
Os forneiros são
obrigados a ir todos e a levar a serpente.
Os carniceiros e
os lavradores dão cada um o seu toiro.
Os cordoeiros
fecham o corro.
A procissão vai
à Vera Cruz, torna pela Rua Direita onde se prega. À volta,
entra em Jesus e vai pela Rua Nova direita a São Miguel, onde se
recolhe.
Todos os anos é
preciso consertar e engalanar o alpendre, junto a São Domingos,
de onde se faz a pregação e se dá a bênção.
Também são
imponentes as procissões de Santa Isabel e a do Anjo Custódio.
Na de São Sebastião são retirados os homens armados e as
tochas. Vai pela Rua Direita até S. Sebastião onde se diz missa
e há pregação. À volta vem pela Rua Nova. A 26 de Julho
realiza-se a festa de Santa Ana, padroeira de Aveiro. A 8 de
Dezembro, a de Nª Sr.ª da Conceição. A 29 de Setembro, a Festa
de S. Miguel onde, na procissão, é exibida a relíquia do mártir
S. Sebastião oferecida por D. João, aquando da peste de 1524. A
22 de Janeiro, a festa de S. Vicente Mártir. A 3 de Fevereiro, em
honra de S. Brás, e a 13 de Dezembro, em honra de Sta. Luzia, que
é também celebrada em Vilar.
Todos os de
Aveiro, os de dentro e fora das muralhas, gostam das festividades
a S. João. Nas vésperas de S. João Baptista, o vereador mais
velho mais os restantes vereadores e o Juiz, pelas cinco horas da
tarde, vão a cavalo com o primeiro a empunhar a bandeira da Vila
passando junto ao esteiro de S. Roque, assim chamado porque muitos
carpinteiros navais ali trabalharam e escolheram o santo como seu
patrono. Seguem até ao Roxio do Corpo Santo e dali pela Rua
Direita até ao campo de S. Domingos e tornam pela Rua Nova,
levando o vereador até sua casa. E ao outro dia, muito cedo, e
sendo dia de S. João, tornam a fazer os mesmos passos, com todos
os homens da governança montados a cavalo acompanhando a
bandeira.
Aquando da morte
de algum soberano, a Vila e arrabaldes cobrem-se de luto,
quebram-se os escudos e fazem-se ofícios.
Em altas vozes o
alferes a cavalo, acompanhado dos fidalgos e escudeiros, e após o
toque de seis trombetas, faz a apologia do rei falecido. Percorrem
as ruas mais importantes da Vila e param várias vezes repetindo a
cerimónia da quebra do escudo e gritam: — real, real, real.
O povo,
silencioso e triste, conforme o seu amor ou desdém pelo falecido,
assiste obrigatoriamente...
De fora das
muralhas e encostados a estas, junto à Fonte da Macieira, ou
seja, desde a esquina nascente das muralhas, à rua que vai para
Vilar e a Rua do Espírito Santo, moram e trabalham os oleiros.
Mal a claridade rompe, já vários homens acompanhados de juntas
de bois amassam o barro em enormes eiras feitas de lajedo. Ao
lado, tanques de repouso do barro. Os fornos já crepitam de lenha
e ramagem de pinheiro. Os pequenos recipientes em gesso para os
ladrilhos estão a ser limpos e engordurados; as anilinas e o
vidro moído são agitados nos tinões. As rodas dos oleiros estão
a ser limpas e o moente oleado. Outros homens abrem os fornos, e
de rosto tapado por uma serapilheira molhada, retiram ladrilhos,
louça vária e telha.
O barro vem da
encosta do pinhal dos Frades entre o local da Forca e Vilar.
Fernão Afonso, filho do mestre João Afonso, e Antão Martins,
filho do mestre Fernão Martins, dirigem com sabedoria os seus
oleiros a fabricarem telhas e ladrilhos de barro vermelho e os
malegueiros, malgas de barro branco.
Os oleiros têm
sido acusados de devassarem a privacidade das freiras dominicanas
do Convento de Jesus. Na verdade, os oleiros utilizam a porta do
seu bairro, que tem por cima a imagem em madeira de S. António
para, subindo as escadas de acesso às ameias e ao mirante,
tomarem sol, pois as suas pobres casas encostadas à muralha são
húmidas e sombrias depois do meio dia. O acesso à Vila muralhada
pode ser feito pelos portões da Vila e do Sol com acesso à Rua
Direita, Rua da Nora, Rua da Corredoura e Rua de Jesus, que
circundam o Mosteiro de Jesus. Por esta razão, as freiras podem pôr-se
a bom recato na sua cerca que é alta, ou tapando as frestas das
suas celas com cortinados. Por outro lado, é impossível, de cima
das ameias, ver o que se passa no convento que fica a cento e
catorze passos de distância.
As ameaças de
fechar a porta dos oleiros não se têm concretizado devido ao bom
senso dos da governança, apesar de a pressão das madres
priorezas, D. Maria de Ataíde, Beatriz Leitão e Antónia de
Noronha, ter sido uma constante. Já este ano a prioreza do
Mosteiro conseguiu que a Rainha mandasse derrubar umas casas junto
à cerca.
A fama de os
oleiros serem devassos e rudes tem a ver com famas antigas, mas no
caso presente só procuram o calor do sol.
Muita louça e
outras peças de barro vidrado vêm de navio de fora do Reino,
mas nas cercanias da Vila também há olarias como as de Aradas
junto à fonte próxima do salgueiral do Gonçalo Pais. Ali se
fazem panelas e caçarolas de barro preto, sendo os oleiros
obrigados a dar três panelas de foro ao Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra se trabalharem ao domingo.
Em Ouca, que
fica a duas léguas daqui, D. Brites Leitoa, viúva de Diogo de
Ataíde, mais uma companheira foi ajudar a fazer telha, tijolo e
ladrilho, que transportou em barcas pelo rio Boco até Aveiro para
aplicar na casa da Rua Direita, onde se tinha recolhido com as
filhas.
Mais para sul, e
à volta da Igreja do Espírito Santo, vive um aglomerado muito
activo com muitos lavradores que amanham as terras
circunvizinhas de entre a Vila e Aradas, Vilar e Presa. Também os
carniceiros, padeiros, marchantes, ferradores, atafoneiros,
carpinteiros, pedreiros, merceeiros e cordoeiros moram e têm os açougues
e oficinas nesta zona. Desde a Porta de Vagos, e entre a Rua do
Passeio, a Rua do Caneiro e a alameda de S. António, moram os de
origem arábica e mourisca que tinham sido obrigados a morar
naquela zona. Ocupam-se, para além dos trabalhos serviçais, dos
ofícios de apavonadores, correeiros, esteireiros, maleiros,
missangueiros e outras ocupações artesanais. Muitos são
aforrados e vivem de tenças e esmolas dos seus antigos senhores.
As Arribas,
pouco cultivadas, não são habitadas, havendo um denso arvoredo e
um riacho ao longo do vale que desagua na cale do Paraíso e que
limita o casario.
Junto à Ribeira
há o Alboi, aglomerado onde habitam famílias inglesas,
irlandesas, holandesas e de outras nacionalidades que são quase
na sua totalidade mercadores e marinheiros. É frequente as naus
trazerem na tripulação mareantes das mais diversas
nacionalidades que, encantados pela Vila, pelo ambiente
aparentemente próspero e pelo clima, fugiram e se fixam na zona
da Ribeira. É uma aljamia constante, e só se entendem por
gestos. No trapiche em madeira, desde a Rua das Barcas até ao
Esteiro do Paraíso ou da Promaceira, atracam as barcaças da
trasfega das naus carregadas de bacalhau, ferro, aduelas, esparto,
linho, alcatrão, breu, vidro e pólvora. Paus de carga são
manobrados com mestria. Armazéns acolhem as cargas. Envolvem o
aglomerado das casas estendais para secar o bacalhau. O Alboi,
devido à composição dos seus habitantes, tem um comportamento
diferente do da Vila. Há casas de tavolagem, tavernas, casas de
mulheres devassas, e as ruas são alvorotadas pelas rixas
nocturnas de mareantes ébrios e barulhentos.
Do lado norte
das muralhas há uma rampa até à Ribeira. Não está habitada
nem cultivada, e a água salgada que vai até às Cilhas, apenas
faz crescer junco e canízia. Mas no início do esteiro do Côjo e
em frente à Rua do Postigo e encostado às muralhas, há um
moinho de maré que Álvaro Gonçalves, escrivão da Câmara de D.
João I, mandou construir no esteiro do mar que entra pela ponte e
que mói com água do mar mediante autorização do Monarca,
concedida a 8 de Janeiro de 1406. Depois de passarem para D.
Pedro, a seguir para o Conde de Odemira e, por aforamento, para
Gonçalo Tavares, pertencem agora desde 1500, a D. Margarida Neto,
esposa de Gaspar Coelho, que tira delas bons proventos.
Do outro lado da
ribeira, há uma pequena faixa de terreno a que chamam Roxio, onde
há uma marinha de sal. Está-se a construir uma capela dedicada
a S. João. Junto aos Arcos, há uma fonte e as casas, já de boa
construção, pertencem quase todas a cristãos-novos que foram
pressionados a deixarem
a Vila
muralhada. São também mercadores e muitos são ourives,
violeiros, caldeireiros e douradores. Mais sobre o lado do mar,
moram os pescadores, marnoteiros, anzoleiros e construtores navais
de barcaças que são utilizadas na trasfega e transporte ao
longo da laguna. Vivem miseravelmente em casas de torrão de lama
e cobertas de canízia.
Dos Arcos para a
Rua de S. Paulo, a não ser as casas da Vila Nova quase todas
pertencentes a cristãos-novos expulsos de dentro das muralhas, há
poucas casas importantes até chegar à ermida da Vera-Cruz, e
daqui até Sá.
Na Rua de S.
Paulo há algumas boas casas construídas em adobo e rodeadas de
searas e vinhas, como a do tabelião Afonso Vicente, de alguns
mestres de naus e a do fidalgo Gil Homem da Costa, “o Velho”,
provedor dos metais do reino, casado com D. Brites Nunes
Cardoso. Instalado em Aveiro, tornou-se comerciante e possuidor
de navios da pesca do bacalhau, doando, há doze anos, o terreno
para o convento franciscano de Santo António. Este benemérito é
filho de Pedro Homem, morto numa batalha naval em 1446, e é
bisneto de D. Pedro Pires Homem. Muito embora Diogo Rebelo possua
parte da Granja que comprou há quase sessenta anos, o prazo, foi
conhecido por Granja da Vila Nova, ou Campo do Frade, mas todos
a conhecem por Prazo de Gil Homem, a qual vem desde Sá e vai até
ao esteiro de S. Roque. Próximo da ermida da Vera Cruz e do Largo
do Cruzeiro, há a casa do forno da poia de Margarida Annes, filha
de Andresa Annes.
A iluminação
dentro das muralhas é produzida por um feixe de palha apertada
por sarapilheira e envolvido em azeite e cebo. Em cada esquina e
em distâncias iguais de 120 palmos craveiros, estão colocados
cestos de ferro com um espigão enfiado num suporte chumbado na
parede. Os quadrilheiros acendem-nas quando começam a ronda
nocturna, e após se ouvir o som dolente do sino de correr. O
cheiro é nauseabundo, mas é pior quando o vento roda para
nordeste e trás o cheiro da fábrica de sabão que fica no
caminho das Pereiras para Vilar, aí a uns seiscentos e sessenta
palmos craveiros. O cozimento das gorduras animais, cinzas, cal,
vegetais e borras de
azeite, exala um cheiro pestilento que se entranha nas casas e na
roupa. Tal como as outras fábricas de sabão que existem no
reino, as de Aveiro são de Nuno da Cunha, a quem o Rei deu o
monopólio.
O abastecimento
de alimentos da Vila, dentro das muralhas, tem de ser comprado
pelos termos dos lugares, pois muito embora a maior parte do
terreno amuralhado seja dedicado ao cultivo, especialmente ao
longo da Rua da Corredoura, a produção é escassa. Pelas sete
horas e meia os portões de Vagos abrem-se e as carroças
carregadas de hortaliças dirigem-se ao largo do Terreiro onde se
faz a praça de terça a sexta-feira. Os carniceiros afadigam-se
na compra do gado que marchantes adquiriram noutras jurisdições
e termos de outras vilas e concelhos como Ílhavo, Vagos e Angeja,
que ficam a várias léguas de distância. O trigo vem da Feira
para Ovar e de barco para Aveiro.
Os negociantes têm
de andar bem armados, pois são frequentemente assaltados nos
caminhos por ladrões que aproveitam os ermos e as matas densas. O
próprio Rei ordenou que não fossem impedidos no caminho, nem
lhes fossem comprados por ninguém até chegarem à praça.
Dentro da Vila a
ordem é mal assegurada pelos quadrilheiros que são
constantemente enxovalhados. São nomeados pelo alcaide e dependem
da Câmara. Cada quadrilheiro tem vinte homens às suas ordens e
empunha uma vara verde com o escudo real; possuem insígnias e
fazem juramento. Não podem ser estrangeiros, vadios ou de má
fama. São mal remunerados e servem num período certo. Além de
acenderem as iluminárias ao pôr do sol, têm de manter a ordem
intervindo nas assuadas, prender os malfeitores nos casos de homicídios,
raptos , assaltos, furtos e ferimentos a alguém.
O problema da saúde
está relacionado com a falta de higiene. Poucos são os que tomam
banho e os que tomam, têm a regra de só tomarem sete banhos por
ano. Apenas os de origem judaica, os mareantes que visitaram
outros povos, e os homens próximos da laguna o fazem. Estes últimos
porque nadam desde criança. As pestes são frequentes, sendo de
assinalar as de 1479, 1520 e a de 1524 que ainda deixou rastros até
hoje. Os médicos e os boticários sendo poucos, são menos
aceites do que os curandeiros; o prognóstico através da
astrologia , a superstição, a magia, o ocultismo, a alquimia e a
panaceia imperam. Os padres exorcizantes são muito procurados e
acredita-se na cura através das palavras. A feitiçaria é
proibida com a pena capital, mas cada vez existem mais homens e
mulheres feiticeiros. A farmacopeia indicando drogas de origem
vegetal é bem aceite. As feridas são curadas com mel, urina,
vinho ou vinagre e cobertas com teias de aranha. Masca-se a casca
de salgueiro para combater as dores de dentes...
Nos Hospitais de
Santa Cruz ou de S. Catarina, de S. Jacinto, ou no Hospital de
Jesus Rei Salvador ou Albergaria de S. Brás ou no Hospital de Sá,
para além da invocação das relíquias dos santos, pelo recurso
à água benta, à comunhão e aos Santos Ofícios, os médicos, já
formados no Hospital de Todos os Santos em Lisboa, utilizam a
trepanação e os medicamentos à base de plantas e ao láudano
para adormentar. Muitos destes médicos seguem os princípios de
Hipócrates que defendia que as doenças tinham origem em causas
naturais; outros a teoria de Galeno em que a saúde era
determinada por quatro humores contidos num corpo organizado.
Os médicos e os
barbeiros têm o seu ponto alto na Páscoa, S. João, Setembro e
Natal, que se julga serem as épocas ideais para se fazer as
sangrias.
A Albergaria de
S. Brás é de reduzida capacidade, pois só possui seis camas e
algumas esteiras. O convento de S. Domingos, desde a sua fundação
em 1423, e o Mosteiro de Jesus, desde 1465, também acodem às
enfermidades, especialmente em tempos de epidemias como a de 1524,
ministrando remédios da sua botica e sob a orientação do médico
privativo do Mosteiro, o cristão novo Mestre Luís.
O físico
Francisco Feliciano foi requerido à capital do reino para
resolver o problema higiénico da Vila, mas nunca mais chega.
A grande riqueza
da Vila é o sal, o pescado e as setenta e duas naus que compõem
a frota marítima, para além de centenas de pequenas embarcações
que aproveitam a via natural que é a imensa laguna e os rios que
a ela vêm desaguar. O sal, produzido em grande quantidade, é
consumido no Reino e exportado para Espanha. Ao peixe pescado na
laguna e no mar, e que abastece a Vila e os seus termos, junta-se
o bacalhau pescado na Terra Nova por quarenta navios.
Para a construção
dos navios, os enormes troncos de pinheiro são conduzidos pela
água ou desde o vale de Vilar ou da mata de Taboeira. Estes
descem o rio Vouga, contornando pelo Espinheiro, chegam ao
estaleiro da Grã-Caravela e são içados à força de braços e
paus de carga para a Troncalhada. As caravelas, que variam entre
150 e 180 toneis, e as naus de 80 toneis precisam de águas
fundas e largas para saírem com o berço das carreiras.
Dentro das
muralhas e apesar das pragmáticas contra o luxo, os fidalgos e os
homens da governança vestem luxuosamente usando a dalmática, o
tabardo, cintos com bolsa, o pelote e até as clâmides e o
brial. Usam sapatos bicudos de cordovão. Na cabeça usam gorros
ou barretes e à cinta o talim. Podem andar armados de espada,
punhal e mosquete.
As mulheres usam
vestidos subidos ao pescoço com gorjeias nos pulsos e vasquinha,
usando na cabeça toucas, coifas ou rolo torcido.
O povo usa
vestidos simples com um cinto e meias altas, calçando sapatos de
cabedal ou andando descalço como a maioria. No Inverno usa gibão
ou o tabardo.
A “arraia-miúda”,
os solarengos, os cavões ou malados andam andrajosos, assim como
os escravos, os domésticos, os marginais, os vagabundos e a gente
sem ocupação. Mas estes vivem fora das muralhas.
Poucos são
instruídos e a maioria não sabe ler. Os fidalgos, os homens da
governação, os cristãos-novos e alguns navegadores que já
tinham visitado outros países têm para os filhos varões um
mestre de ensinar moços, utilizando a cartilha para aprender a
ler de João de Barros de Viseu. Os navegadores trazem obras do
estrangeiro e recrutam mestres do bairro do Alboi. O latim e também
o grego, é ministrado por alguns mestres que seguem os
ensinamentos do esgueirense Aires Barbosa, assim como a Gramática
da Linguagem Portuguesa do aveirense Fernão de Oliveira.
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