João Pereira de Lemos, Os Gafos da Ilha de Sama, Aveiro, C.M.A., 2001, pp. 5-7.


Prefácio

“Os Gafos da Ilha de Sama”, porquê? O título deste livro singular tem a ver com um trecho desta narrativa que a Câmara Municipal de Aveiro acaba de dar à estampa, e que, havendo concorrido à primeira edição do Prémio Literário Vasco Branco, fora re­comendado para publicação pelo Júri do respectivo certame.

Expliquemos a sua origem. Gafos era a designação que se dava às pessoas atacadas pela gafa, uma espécie de lepra mais comum entre as populações marítimas; por sua vez, Sama era o nome atribuído ainda hoje àquela que é mais conhecida por ilha do Rebocho, local para onde se enviavam os portadores deste mal, que se tinha por contagioso, isolando-os assim num verda­deiro gueto, bem perto da então vila de Aveiro.

Quem conheça como eu o cidadão João Lemos, o autor da obra de que venho ocupar, não há-de estranhar a sua apetência por esta temática ligada à laguna aveirense, o que, aliás, já tinha acontecido também com o seu livro “Ria de Aveiro, um olhar res­vés”, publicado em 1996. Só que, enquanto este é um autêntico roteiro dos canais, esteiros e demais dédalos que balizam e ligam entre si as ilhas e as marinhas da Ria, isto é, a sua geografia real, “Os Gafos da ilha de Sama” abordam em profundidade, e num enfoque inerente à própria tessitura do livro, alguns aspectos históricos de certos acontecimentos marcantes, ocorridos na vila de Aveiro durante o séc. XVI.

Hesito, e penso que não levianamente, em determinar qual o género literário do livro que ora aqui se prefacia. Romance, estudo ou romance histórico? Opto pela última alternativa, mas mesmo assim com algumas reservas. É que, a meu ver, o autor abre a sua narrativa bem à maneira do romance clássico, com estas palavras: «António de Lemos, proprietário e experimentado mestre de naus, passara uma noite de insónias. Sonhos de mau presságio incomodavam-no. Acordou excitado e levantou-se cedo mal o sol despontara».

Este excerto inicial, tudo o indicava, parecia apontar ine­quivocamente para o registo ficcional de conflitos e tensões que iriam caracterizar o virtual protagonista da diegese, palavra que Genette adopta de É. Souriau para designar «o universo do sig­nificado, o mundo possível que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história».[1]

Ora, os maus presságios e a excitação de António Lemos, não eram obra de má indisposição passageira, antes se deviam ao que ele adivinhava estar também para irromper em Aveiro, ou seja, a tragédia de um fascismo de extracto religioso que dava pelo nome de Inquisição, e que já grassava com grande intensidade na capital do reino, designadamente a partir de 1547. Afadi­gava-se, pois, e não sem motivos, o proprietário e mercador em pôr de sobreaviso o seu grande amigo Estêvão Lopes, cristão-novo que havia fugido com os pais da barbárie já instituída em Lisboa. Claro que esta fuga para vir acolher-se na vila de Aveiro parecia resolver, pelo menos na aparência e de imediato, o sério problema de quem como Estêvão Lopes se havia convertido do judaísmo à fé cristã. Só que, de um momento para o outro, as per­seguições aos cristãos-novos propagam-se a todo o país como um rastilho que havia de prender e queimar nas fogueiras do Santo Oficio tantos cidadãos inocentes. Conhecem-se episódios de vin­ganças urdidas sem fundamento contra pessoas acusadas de con­tinuarem a seguir as normas da religião que haviam abjurado.

Às tantas, porém, a narrativa investe por outros domínios, traçando-os um retracto exaustivo da vila de Aveiro, num quadro que abarca os seus aspectos defensivos e de salubridade, deveras periclitantes, e a decadência do comércio motivada pela ins­tabilidade da barra, que havia de atingir o seu auge aquando da estada do Prior do Crato na vila. E passa também à análise da própria organização social e administrativa do burgo, sobretudo dentro das muralhas, de onde tinham sido expulsos os morado­res de origem árabe, os judeus, os pobres e os mendigos. Entretanto, não deixa o autor de fazer a enumeração e a descrição das profissões e ofícios dominantes e bem assim das autoridades civis, militares e religiosas. Não escapam a esta radiografia a indicação das ruas da vila e as suas portas, as epidemias que a asso­lam e as medidas que se tomam para evitar o que parece impos­sível, ou seja, que a peste alastre cada vez mais. E tudo isto numa profusão de pormenores de quem muito se teria documentado sobre os assuntos tratados.

Porém, o que mais ressalta como pano de fundo deste «Os Gafos da ilha de Sama» é a visão que o autor nos faculta desta vila de Aveiro de meados do séc. XVI. Sobretudo, assinale-se nos domínios da economia e do comércio marítimo, quase inteiramen­te nas mãos de mercadores cristãos-novos. Nestes se incluía Estêvão Lopes, cuja amizade com António de Lemos seria reforça­da com o casamento de seus filhos Filipa e Pedro, que já se adi­vinhava desde a sua infância e convívio; e, em contraposição, a sanha persecutória que os inquisidores da igreja local movem contra as famílias de sangue “impuro”. Estêvão Lopes, por exemplo, apesar dos avisos do amigo e parceiro, vê-se envolvido na sórdida teia, sendo preso com todos os seus e julgado em Coimbra pelo tribunal do Santo Oficio, de que se saiu airosa­mente, graças aos amigos e à improcedência das acusações.

Temos assim que o que inicialmente se antevia como um romance se converte em parte num romance histórico, se nos quisermos ater à trama dos amores amenos entre Pedro Lemos e Filipa Lopes, que, do meu ponto de vista, mais não será do que um pretexto para um estudo interessante sobre a vila de Aveiro no séc. XVI, em que o esforço de investigação é sempre de enaltecer. Até porque traz até nós algumas figuras de proa desse tempo como os aveirenses Fernando de Oliveira e Aires Barbosa, a princesa Joana, sendo ainda de destacar uma alusão, pouco abonatória, aliás, ao historiador e humanista João de Barros, já que, de acordo com o autor, sempre se teria mostrado alheio aos crimes da Inquisição, contrariamente à posição do nosso primeiro gramático.

Curiosa, é a referência a Luís de Camões, que teria andado pelos arredores de Aveiro na peugada de Catarina de Ataíde, a sua Natércia, irmã da esposa de Estêvão Lopes.

A concluir, direi que este é um livro que merece a atenção dos leitores, não pelo romance que se adivinhava no início, mas pelas revelações que nos traz sobre a vila de Aveiro no séc. XVI. Principalmente pelo vigoroso libelo contra a Inquisição e os seus sequazes. Só por isso, “Os Gafos da ilha de Sama” merecem o nosso aplauso.

 Idalécio Cação


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