“Os
Gafos da Ilha de Sama”, porquê? O título deste livro singular
tem a ver com um trecho desta narrativa que a Câmara Municipal de
Aveiro acaba de dar à estampa, e que, havendo concorrido à
primeira edição do Prémio Literário Vasco Branco, fora recomendado
para publicação pelo Júri do respectivo certame.
Expliquemos
a sua origem. Gafos era a designação que se dava às pessoas
atacadas pela gafa, uma espécie de lepra mais comum entre as
populações marítimas; por sua vez, Sama era o nome atribuído
ainda hoje àquela que é mais conhecida por ilha do Rebocho,
local para onde se enviavam os portadores deste mal, que se tinha
por contagioso, isolando-os assim num verdadeiro gueto, bem
perto da então vila de Aveiro.
Quem
conheça como eu o cidadão João Lemos, o autor da obra de que
venho ocupar, não há-de estranhar a sua apetência por esta temática
ligada à laguna aveirense, o que, aliás, já tinha acontecido
também com o seu livro “Ria de Aveiro, um olhar resvés”,
publicado em 1996. Só que, enquanto este é um autêntico roteiro
dos canais, esteiros e demais dédalos que balizam e ligam entre
si as ilhas e as marinhas da Ria, isto é, a sua geografia real,
“Os Gafos da ilha de Sama” abordam em profundidade, e num
enfoque inerente à própria tessitura do livro, alguns aspectos
históricos de certos acontecimentos marcantes, ocorridos na vila
de Aveiro durante o séc. XVI.
Hesito,
e penso que não levianamente, em determinar qual o género literário
do livro que ora aqui se prefacia. Romance, estudo ou romance histórico?
Opto pela última alternativa, mas mesmo assim com algumas
reservas. É que, a meu ver, o autor abre a sua narrativa bem à
maneira do romance clássico, com estas palavras: «António de
Lemos, proprietário e experimentado mestre de naus, passara uma
noite de insónias. Sonhos de mau presságio incomodavam-no.
Acordou excitado e levantou-se cedo mal o sol despontara».
Este
excerto inicial, tudo o indicava, parecia apontar inequivocamente
para o registo ficcional de conflitos e tensões que iriam
caracterizar o virtual protagonista da diegese, palavra que
Genette adopta de É. Souriau para designar «o universo do significado,
o mundo possível que enquadra, valida e confere inteligibilidade
à história».[1]
Ora,
os maus presságios e a excitação de António Lemos, não eram
obra de má indisposição passageira, antes se deviam ao que ele
adivinhava estar também para irromper em Aveiro, ou seja, a tragédia
de um fascismo de extracto religioso que dava pelo nome de Inquisição,
e que já grassava com grande intensidade na capital do reino,
designadamente a partir de 1547. Afadigava-se, pois, e não sem
motivos, o proprietário e mercador em pôr de sobreaviso o seu
grande amigo Estêvão Lopes, cristão-novo que havia fugido com
os pais da barbárie já instituída em Lisboa. Claro que esta
fuga para vir acolher-se na vila de Aveiro parecia resolver, pelo
menos na aparência e de imediato, o sério problema de quem como
Estêvão Lopes se havia convertido do judaísmo à fé cristã. Só
que, de um momento para o outro, as perseguições aos cristãos-novos
propagam-se a todo o país como um rastilho que havia de prender e
queimar nas fogueiras do Santo Oficio tantos cidadãos inocentes.
Conhecem-se episódios de vinganças urdidas sem fundamento
contra pessoas acusadas de continuarem a seguir as normas da
religião que haviam abjurado.
Às
tantas, porém, a narrativa investe por outros domínios, traçando-os
um retracto exaustivo da vila de Aveiro, num quadro que abarca os
seus aspectos defensivos e de salubridade, deveras periclitantes,
e a decadência do comércio motivada pela instabilidade da
barra, que havia de atingir o seu auge aquando da estada do Prior
do Crato na vila. E passa também à análise da própria organização
social e administrativa do burgo, sobretudo dentro das muralhas,
de onde tinham sido expulsos os moradores de origem árabe, os
judeus, os pobres e os mendigos. Entretanto, não deixa o autor de
fazer a enumeração e a descrição das profissões e ofícios
dominantes e bem assim das autoridades civis, militares e
religiosas. Não escapam a esta radiografia a indicação das ruas
da vila e as suas portas, as epidemias que a assolam e as
medidas que se tomam para evitar o que parece impossível, ou
seja, que a peste alastre cada vez mais. E tudo isto numa profusão
de pormenores de quem muito se teria documentado sobre os assuntos
tratados.
Porém,
o que mais ressalta como pano de fundo deste «Os Gafos da ilha de
Sama» é a visão que o autor nos faculta desta vila de Aveiro de
meados do séc. XVI. Sobretudo, assinale-se nos domínios da
economia e do comércio marítimo, quase inteiramente nas mãos
de mercadores cristãos-novos. Nestes se incluía Estêvão Lopes,
cuja amizade com António de Lemos seria reforçada com o
casamento de seus filhos Filipa e Pedro, que já se adivinhava
desde a sua infância e convívio; e, em contraposição, a sanha
persecutória que os inquisidores da igreja local movem contra as
famílias de sangue “impuro”. Estêvão Lopes, por exemplo,
apesar dos avisos do amigo e parceiro, vê-se envolvido na sórdida
teia, sendo preso com todos os seus e julgado em Coimbra pelo
tribunal do Santo Oficio, de que se saiu airosamente, graças
aos amigos e à improcedência das acusações.
Temos
assim que o que inicialmente se antevia como um romance se
converte em parte num romance histórico, se nos quisermos ater à
trama dos amores amenos entre Pedro Lemos e Filipa Lopes, que, do
meu ponto de vista, mais não será do que um pretexto para um
estudo interessante sobre a vila de Aveiro no séc. XVI, em que o
esforço de investigação é sempre de enaltecer. Até porque
traz até nós algumas figuras de proa desse tempo como os
aveirenses Fernando de Oliveira e Aires Barbosa, a princesa Joana,
sendo ainda de destacar uma alusão, pouco abonatória, aliás, ao
historiador e humanista João de Barros, já que, de acordo com o
autor, sempre se teria mostrado alheio aos crimes da Inquisição,
contrariamente à posição do nosso primeiro gramático.
Curiosa,
é a referência a Luís de Camões, que teria andado pelos
arredores de Aveiro na peugada de Catarina de Ataíde, a sua Natércia,
irmã da esposa de Estêvão Lopes.
A
concluir, direi que este é um livro que merece a atenção dos
leitores, não pelo romance que se adivinhava no início, mas
pelas revelações que nos traz sobre a vila de Aveiro no séc.
XVI. Principalmente pelo vigoroso libelo contra a Inquisição e
os seus sequazes. Só por isso, “Os Gafos da ilha de Sama”
merecem o nosso aplauso.
Idalécio Cação
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