PREFÁCIO
A
Propósito de “A Ria de Aveiro - Um Olhar Resvés”
|
A
Ria ama-se ou despreza-se, não há meio termo. Odiá-la,
propriamente, nem tanto, porque então quem o fizesse perderia
de imediato a sua condição de humano para assumir-se como um
energúmeno.
Quanto
a amar-se esta água que se espalma pelo litoral aveirense, há
nomes a fixar, imperecíveis, que a pintaram de todos os
matizes, que dela nos legaram o fascínio das suas impressões,
gente daqui e de toda a parte, que nela imprimiu a alma para
sempre: pintores e jornalistas, cineastas, escritores e etnógrafos,
ecologistas, poetas e geógrafos, historiadores da barra de
Aveiro. |
O maior de todos, porém, que reunia em si todas as
sensibilidades, foi Raul Brandão, que por aqui jornadeou
embarcado, nos anos 20, pintando telas com palavras.
precursando já na retina prodigiosa a aura do cinema, fazendo
emergir da sua arte de escrita temas como a biologia, a botânica,
os recursos naturais, as armadilhas e artes de pesca, a
etnografia e o folclore, tipologias de embarcações, a
sociologia, a pintura e a educação visual, a geografia e a
história locais.
Na
verdade, as páginas consagradas à Ria no grande fresco da
costa portuguesa, “Os Pescadores”, não terão parelha em
toda a nossa literatura, tão multifacetadas elas são, tão
de filigrana no tratamento verbal se apresenta a sua visão de
artista. Perdoe-se-me uma breve incursão nesta prosa
brandoniana: “A ria é um enorme pólipo com os braços
estendidos pelo interior desde Ovar até Mira. (...) De um
lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a
água de escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça
e a regulariza. Vem depois a raiz e ajuda-o a fixar o
movimento incessante das areias transformando o charco numa
magnífica estrada, que lhe dá o estrume e o pão, o peixe e
a água da rega. Abre canais e valas. Semeia o milho, povoa a
terra alagadiça, e à custa de esforços persistentes obriga
a areia inútil a renovar constantemente a vida. (...) Na ria
o ar tem nervos. A luz hesita e cisma e esta atmosfera
comunica distinção aos homens e às mulheres, e até às
coisas mais finas na claridade carinhosa, delicada e sensível
que as rodeia. A luz aqui estremece antes de pousar".
Depois
veio a grande industrialização das terras ribeirinhas -
Cacia e Estarreja, nomeadamente -
e o lago de luz entrou em curva disfórica. E à magia de
vida, cor e luz que era a Ria de Aveiro, sucedeu a poluição
arbitrária e selvagem; e os venenos da química pesada
transformaram uma zona de eleição num esterquilínio
altamente gravoso, sobretudo
no Laranjo. Mesmo assim, persistem ainda neste ecossistema
milhares de aves aquáticas, quer sedentárias da região,
quer invernantes ou simplesmente em meta de passagem.
Se
Raul Brandão fosse vivo, rugiria de dor, ou talvez as coisas
não tivessem chegado a tanta agressão e desprezo.
Mas
outros amigos terão aqui de ser evocados: o Prof. Aristides
Hall, de respeitosa memória. que. num debate televisivo
conduzido por Miguel de Sousa lavares, assumiu estoicamente a
defesa da Ria contra os que, no mesmo debate, minoravam
despudoradamente a sua degradação, mancomunados com o
vicioso procedimento do jornalista; e também o meu amigo Álvaro
Reis, do Fapas, estrénuo paladino da fauna e da flora da
laguna, e autor desse notável vade-mécum “Ria de Aveiro -
Memórias da Natureza”; e ainda as gentes anónimas que
nascem e vivem nas suas a2uas. com os “outros / que / cavam
astros brancos, no preto sujo da Ria” (1). Destes, dos seus
mais humildes amigos, relembro aqui o barqueiro Ora-Adeus, que
falava meigamente com a Ria, e lhe beijava as águas como se
beijasse a própria mãe, e lhe chamava “meguinha” nas
horas de euforia; mas que também perdia a cabeça, erguendo
os punhos ao céu, ameaçador, quando, nas viagens do seu
mercantel, o vento amuava, obrigando-o a puxar o barco à
sirga.
Finalmente,
de um outro amigo da Ria terá de fazer-se auto de notícia,
aqui e agora, antes mesmo de enregar-se a leitura deste livro.
Por isso mesmo, eis-me à fala com o leitor no alpendre de
“A Ria de Aveiro - Um Olhar Resvés”.
João
Lemos, o seu autor, conhece a laguna como poucos, sabe dos
seus pegos e marés, das ilhas e suas enseadas, distingue as
falas de todas as aves, e imita-lhes o canto, levando-as não
raramente ao logro.
E
calha perguntar-me, talvez com algum a-propósito. Quantas
milhas sulcou o nosso autor ao leme do seu “Pato Bravo”?
Quantas navegações no cristal destas águas, tranquilamente,
ou por instinto, quando surge a cerração mais imprevista?
Estes galões não se alcançam numa carta de marear, mas
desde bem novo na companhia de mestres e veteranos. Foi assim
com João Lemos. Por isso é que ele sabe de tudo quanto é
Ria:
recôncavos
e grotas insuspeitas no baixar da maré; a transfiguração
mais completa das ilhotas, quando a canízia e o junco ficam
submersos na preia-mar; os nomes das ilhas e das cales; as
quantas espécies de caça e de peixes. Ele distingue um
“algibé” das “sobrecabeceiras”, como se também ele
tivesse andado na salina com o seu amigo Zé Simões, da Rua
do Vento. João conhece toda a geografia destas águas, a sua
magia, os seus labirintos e recifes; nomeia de cor e salteado
dezenas de marinhas -
a Nortada, a Caveira, a
Leiteireira, a Capeloa, a Gramatinha, a Moliça, a Brasalaia,
a Gravita; leva-nos por esteiros, que tanto podem chamar-se do
Parrachil e do Puxadouro, como do Amoroso e das Portas de Água.
João
quis brindar-nos -
e fez muito bem -
com um livro sobre a menina dos seus olhos, e dos nossos também.
Ele não será certamente um novo Raul Brandão, na forma e na
urdidura das palavras e da sua sintaxe; porém, sobreleva-o no
conhecimento dos cantos e recantos da Ria, nos pormenores mais
diversos, nos nomes das marinhas e dos seus donos, nas artes
de pesca e nos tipos de barcos; traz ante nós vicissitudes
desde a sua história mais longínqua até aos dias de hoje,
fala-nos do apogeu das salinas e do seu declínio, numa voz
nostálgica de quem vê perder-se para sempre estas vidraças
de luz. A essa voz, porém. João Lemos vai acrescentando facécias
de caçadores e anedotas vividas na Ria, eventos e casos que
parecem sobrenadar ainda por esteiros e canais, arrolados ao
sabor da corrente: mas também refere tragédias passadas,
tanto em vidas como na lentas agonia do meio. com o mercúrio,
o chumbo, o cádmio e o zinco criminosamente despejados na
laguna.
Este
“A Ria de Aveiro - Um Olhar Resvés” é um bom livro sobre
a Ria. Reportagem? Devassa histórica? Roteiro guiado? Para o
caso tanto faz, embora me pareça haver um pouco de tudo,
visualizando fases e metamorfoses dum universo caminhando para
a pantanização a médio prazo. se não lhe acudirmos a tempo
e horas. O livro de João Lemos, escrito muito com o coração,
refere, no entanto, implícita e explicitamente, muitos jogos
de interesses que têm afectado o ainda espelho da região
aveirense; mas o autor está ao lado daqueles que nasceram na
Ria e que a ela se dão no seu dia a dia, respirando-a, e que
perante discussões e debates de alto nível, tantas vezes
vazios de conteúdo, desabafam como o Zé Simões, companheiro
desta viagem guiada: “Eles sabem lá o que é a Ria, nós é
que sabemos, quase nascemos e morremos nela”.
(1) In “Vida “, poemas de
André Ala dos Reis.
IDALÉCIO
CAÇÃO
Março de 1996
|