Se
há literatura que me enjoa e repele, ela é sem margem para dúvidas
a chamada literatura de ficção científica, sobretudo aquela que
afasta totalmente do seu campo exploratório a experiência da
vida do autor enquanto habitante da terra, preterindo-a às hipóteses
que a ciência põe ao alcance do escritor.
Virá
a propósito perguntarmo-nos então o que é afinal a literatura
de ficção científica, ou o que se convencionou entender como
tal. Harry Shaw, no seu Dicionário de termos literários,
adianta-nos que é um “género de narração literária, cujo
enredo, tema e cenário se alicerçam, duma forma imaginativa, no
conhecimento científico e respectivas teorias e especulações
“. Por sua vez, D. Suvin, transcrito no Glossário da Crítica
Contemporânea, de Marc Angenot, diz-nos que a ficção científica
“é um género literário cujas condições necessárias e
suficientes são a presença e a interacção da distanciação e
da cognição e cujo principal processo formal é um quadro imaginário
diferente do mundo empírico actual”.
Temos
assim que, em ambos os conceitos acabados de citar, a modalidade
literária em questão assenta os seus princípios na imaginação
dos cultores do género, em que assumem papel de relevo o
conhecimento científico e a especulação, como não poderia
deixar de ser.
Contrariamente
ao que se possa imaginar, a ficção científica não surgiu
apenas com o advento das naves espaciais e das viagens interplanetárias.
Tanto quanto mo permitem os meus parcos conhecimentos da matéria
em apreço, o grande precursor deste tipo de narrativas terá sido
Júlio Verne, que todos lemos na nossa juventude. Quem não se
recorda de “Vinte Mil Léguas Submarinas “, ou de “A Volta
ao Mundo em Vinte e Quatro Horas”
ou ainda e sobretudo “Da terra à Lua”?
Não
esqueçamos, porém, que já no dealbar da nossa Era, mais
propriamente no Séc. II, o escritor grego Luciano havia escrito
sobre um herói que empreendera uma viagem à Lua. Um e outro,
creio, enquadrar-se-iam melhor naquilo a que os franceses chamam
de escritores de antecipação cientifica.
Chegados
a este ponto, vamos ao que me traz aqui a terreiro. Quando há uma
meia dúzia de anos o meu amigo João Lemos me deu a ler o
original do seu romance "2016 — Amor Cosmológico",
encorajei-o a fazer os possíveis para editar o livro. E quais
eram os argumentos que assim me levavam a proceder? Se eu não
gostava de ficção científica... é que dava-se o caso de eu
haver encontrado finalmente os condimentos que qualquer modalidade
literária deve conter, segundo o meu ponto de vista, como escopo
fundamental: os problemas do homem e a sua relação com o mundo
que o rodeia e, neste caso concreto, com outras galáxias, não
deixando aqui de os ponderar à luz das novas realidades científicas.
Foi
na perspectiva destes princípios basilares que, a propósito do
referido original, e num prefácio à sua "Monografia de Vilar",
falei então do prazer que a leitura desse inédito me suscitara,
"não como um dever de amigo, mas como leitor empenhadíssimo
de uma outra ficção científica que, do espaço cósmico, medita
sobre os problemas terrenos mais profundos, desde a paz e o amor
à fraternidade entre os homens". E concluía convicto:
"desta ficção científica gosto eu, da sua mensagem, e
muito folgarei quando vir o livro publicado".
É
pois com toda a alegria que vejo realizar-se o meu desejo de então,
que será obviamente a mesma do seu autor
Para
que o livro me tivesse seduzido especialmente desde essa leitura já
distante, um factor se me impôs logo com toda a evidência, para
além dos já mencionados anteriormente. Na verdade, o herói de
“2016 — Amor Cosmológico” não age como um autómato, que
apenas se preocupa com os botões e as alavancas do seu Módulo
por forma a atingir os objectivos preconizados no voo espacial.
De
modo algum. Ele tem coração e sentimentos e a sua condição de
humano não se encontra minimamente obliterada; ele é detentor de
um conjunto de valores de que jamais abdicará, mesmo nas horas
mais difíceis da sua missão.
Kana
Biyik, "um homem de cor, com ar ingénuo, oriundo dos Camarões"
fora o escolhido para comandar um Módulo tripulado a Marte,
empreendimento que, por comum acordo, os cientistas do I. A. U.
(Instituto de Astronomia Universal) haviam decidido levar a
efeito. No desempenho de tarefa tão ingente, o camaronês age
sempre como um ser completo que nenhuma circunstância consegue
obnubilar
.
Ele
reflecte sobre os problemas mais candentes que assolam o Universo,
relembra a sua infância e os seus companheiros distantes, tem um
espírito racionalista mas simultaneamente harmonioso que
permanece incólume em qualquer provação ou incidência mais
inesperada. E para se manter saudável e sem constrangimentos, tem
a sua Afrodite, uma boneca insuflável com quem fazia amor sempre
que a vontade natural se impunha. E de tal modo o simulacro era
perfeito que o nosso herói “tinha de confessar que nunca uma
mulher lhe produzira tamanho prazer”, o que era notável.
Também
o seu relacionamento com os extraterrestres com quem contactou na
sua maravilhosa viagem predispunha a um sentimento de serena
plenitude, num misto de paz e jucundidade, sem armas nem
preconceitos rácicos, adivinhando-se no leitor a imediata adesão
aos nobres princípios que exornam o espírito de Kana Biyik. Nada
nestes contactos deixa antever os cataclismos tantas vezes
frequentes na conceituada ficção científica do nosso tempo,
como "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, que inspirou
a famosa reportagem de rádio que havia de aterrorizar os
americanos em meados deste século.
Certamente
que não estaremos sozinhos no Universo. A vida do nosso
cosmonauta no planeta Aris representou para ele o encontro com a
felicidade suprema e muito em especial o seu relacionamento com
Blumela, isto é, a Flor que Ri.
Os
arisianos ignoravam as armas e toda a espécie de conflitos, e
quando Kana Biyik lhes perguntou como reagiriam a um ataque
provindo de outras galáxias ficaram mudos por instantes pelo
imprevisto de tal ocorrência, não se eximindo, porém, à
resposta: “Não sabemos o que é a guerra e nunca sofremos
nenhum ataque. No entanto, possuímos mecanismos à semelhança de
paredes invisíveis que existem nas casa e nos veículos. (...) São
feixes de raios cósmicos que, orientados e concentrados em
determinada área, formam um escudo invisível. Por isso é impossível
qualquer objecto penetrar no nosso espaço sem se auto-destruir”.
O convívio com
Blumela, a esbelta e jovem mulher com quem iria aprender a falar e
a escrever o arisiano, revestira-se desde o início de mútua
atracção, e de tal sorte que esse sentimento iria influenciar
decisivamente o futuro de Kana Biyik. Encontrara finalmente um
mundo perfeito e harmonioso e, tendo resolvido ficar para sempre
em A ris, reenviara o Módulo para a Terra, com a seguinte
mensagem: “Olá, amigos! Estou vivo e feliz! Encontrei o Paraíso!
Á pedido dos meus queridos anfitriões, não vos posso dizer onde
fica este Éden, este oásis do Cosmos, pois eles têm medo de vir
a ser um inferno como na Terra! Não se preocupem, não me
procurem, pois é em vão “.
A
mensagem deste livro de João Lemos está explicitada no seu próprio
título. Na verdade, Kana Biyik é o protagonista desta aventura
singular que, perseguindo intuitos necessariamente científicos,
acaba por “trair” afinal quem nele confiará, negando-se a
voltar à Terra juntamente com o Módulo. E que em Aris o amor
entre os arisianos era uma constante, e o nosso herói fora
acolhido por eles como um irmão nesse verdadeiro Paraíso. "Tudo
parecia simples neste mundo de um só idioma onde não havia
dinheiro", nem ódios, nem sentimentos de baixeza. Aqui,
ignoravam-se as terrenas invejas e as intrigas que o camaronês tão
bem conhecia no seu planeta de origem; em A ris, não havia
fronteiras e tudo era de todos. Ao ler este livro, quem não
pensará na “Cidade do Sol” de Campanella, ou na "Utopia",
de Thomas More?
Contrariamente
Kana Biyik, que na epístola aos terrestres se recusa a
fornecer-lhes as coordenadas do planeta paraíso, onde ficará
definitivamente, daqui se recomenda aos virtuais leitores deste
livro que o procurem nas livrarias e pontos de venda. Não irão
arrepender-se. É que a quimera e o sonho fazem parte integrante
do nosso imaginário. Pois não é o sonho que comanda a vida,
conforme nos adverte o poeta Gedeão?
IDALÉCIO
CAÇÃO
Capítulo
I
No
I.A.U. ou seja, Instituto de Astronomia Universal, situado por
comum acordo entre todas as nações membros do Clube do Cosmos,
no deserto de Gobi, na Mongólia, e distante para sul mais de
trezentos quilómetros da cidade de Uliastaj os cientistas de
exploração cósmica decidiram mandar um Módulo tripulado a
Marte, com passagem de observação por Fobos.
Depois
das investigações totais da superfície e da atmosfera de Marte,
utilizando satélites orbitais, aeróstatos, sondas meteorológicas
e exame da superfície marciana por aparelhos sofisticados que
fizeram análises de bioquímica e geoquímica em pormenor, depois
de resolvido o problema da gravidade zero dentro do módulo com um
sistema que nos faz lembrar o brinquedo de criança “Sempre em pé”,
a obstrução aos raios cósmicos através de duplas camadas finas
de chumbo afastadas entre si por vácuo e as vigias com vidros
reflexos dos mesmos raios, resolveu-se o problema do combustível
através de átomos de oxigénio, para atingir a velocidade da luz
ainda que por tempo reduzido, energia solar e combustível sólido
para os retrofoguetões.
Tudo
tinha sido estudado para garantir a segurança de um possível
astronauta.
Tinha
de ser um homem de rija têmpera, dotado de grande personalidade e
espírito de sacrifício. Tinha de ser voluntário e sujeitar-se
durante três anos a testes, e, passados estes, fazer ensaios
simulados de voo a bordo de um habitáculo como aquele que o
levaria a Marte e o traria de volta à Terra.
Tinha
de ter uma saúde impecável, pois ia estar sujeito a enormes
pressões físicas e psíquicas. Tinha de vencer enormes forças
centrífugas que lhe trariam vertigens, tonturas e, provavelmente,
enjoo e vómitos.
Com
o decorrer da viagem e num estado de imponderabilidade, o hábito
de caminhar e o peso sobre a coluna desaparecem e os ossos
fragilizam-se.
Tinha
também de possuir um coração excepcional como o do célebre
ciclista italiano Fausto Copi. Claro que os médicos, os físicos
e todos os outros cientistas do I.A.U. a tudo estavam atentos e o
habitáculo do Módulo seria dotado dos mais sofisticados
sistemas. Iria sentir-se como em casa, sendo o problema maior a
vencer a solidão.
Ia
ser distribuído pela imprensa mundial um memorando com as condições
exigíveis para um cosmonauta voluntário. Milhares de homens e
mulheres de todo o mundo foram dar os seus dados físicos e formação
intelectual, nas muitas agências, abertas nas capitais dos países.
Todos os dados chegaram ao L.A.U. para uma primeira triagem.
Os
dez escolhidos teriam emprego à partida, caso quisessem, nos
quadros técnicos do Instituto e seriam sujeitos a um primeiro
exame directo donde sairia o eleito para o teste final e treino
intenso que o levaria ao Cosmos.
Um
homem de cor, com ar ingénuo, oriundo dos Camarões, foi o
eleito. Era forte como um touro, tinha um coração excepcional
com a frequência cardíaca 72/130, grupo sanguíneo O e
temperatura interior de 370 C e dentes sãos, claro! Tinha muita
cultura geral e o curso superior de electrónica tirado em Paris,
na Sorbonne, para além do de Belas-Artes. Falava o dialecto da
sua terra, o francês, o inglês, o alemão e alguma coisa de
russo.
Praticara,
em competição, a natação, a vela, o remo e vários outros
desportos por pura distracção.
Tinha
34 anos, e o limite para ser cosmonauta era de 36 anos. Fez estágios
ao abrigo de convénios internacionais entre o seu país e outros
países, como por exemplo numa fábrica de computadores, no Japão,
e um curso rápido de admnistraçãosocial, na Suécia.
Presentemente,
dirigia a secção electrotécnica do caminho-de-ferro transcamaronês,
onde não se sentia realizado, pois o seu sonho sempre foi estar
ligado à técnica de exploração espacial. Aliás, na sua razoável
biblioteca predominavam, em várias línguas, livros que iam da
ficção científica, histórias de OVNIS, estudos publicados
sobre astronáutica, exploração espacial, estudos médicos e
psicológicos sobre os riscos durante o voo, estudos teóricos e
observacionais sobre o sistema solar, as viagens dos astronautas
soviéticos e americanos e até banda desenhada sobre viagens fantásticas.
Via
todos os filmes em que a viagem ao Cosmos fosse o tema. Só não
gostava daqueles filmes e histórias tipo Flash Gordon. Para ele,
as viagens espaciais tinham de ter o mínimo de credibilidade. Por
isso, os examinadores que lhe fizeram o teste determinante das
suas capacidades físicas, psíquicas e de cultura geral, ficaram
atónitos perante os conhecimentos de quase tudo o que se passava
no mundo da astronomia.
Até
nomes das pessoas envolvidas, datas de lançamentos e outras
experiências, ele sabia. Parecia uma obsessão doentia, mas no
fundo era um sonho que dentro em breve ia ser realidade.
Testes
intensíssimos deixaram-no nos primeiros tempos descontrolado,
mas, logo que foram feitos os exames finais ao seu estado físico,
começou a adaptar-se lentamente a um cubículo semelhante àquele
que o levaria a uma viagem que duraria oitocentos e quarenta e três
dias.
Nas
últimas três semanas antes do dia marcado para a partida, já não
saía ao exterior, fazendo a sua vida dentro do Módulo simulando
o voo.
Do
lado de fora, os técnicos acenavam-lhe com gestos amigos que tudo
estava a correr bem, que o seu organismo estava perfeitamente
adaptado.
Antes
da hora da partida, apenas estaria breves momentos na sala quase
hermética onde estavam todos os técnicos envolvidos no projecto,
para se sujeitarem a qualquer pergunta do astronauta e, por fim, o
director do I.A.U. fez-lhe a pergunta sacramental. “É de sua
inteira e livre vontade participar neste voo?” Kana Biyik, assim
se chamava o astronauta, respondeu “Sim, eu confio nos homens de
ciência que materializaram este sonho!”
Cá
fora, uma multidão de repórteres seguia, via circuito interno,
este diálogo simples para uma aventura que iria deixar o mundo em
suspenso.
Kana
caminhou sereno através duma manga transparente entre o Centro de
Ensaios e o interior do Módulo. Não quis ninguém da família à
despedida. Já o fizera quando saíra dos Camarões.
Quando
a enorme escotilha se fechou e os gonzos do sistema automático,
com um ruído suave e oleado, a fixaram em definitivo tornando o
interior do Módulo estanque, Kana Biyik fixou o olhar naquela única
via de acesso ao mundo exterior, e ficou como que paralisado,
ocorrendo-lhe que aquela saída jamais se abriria e voltaria a
pisar a Terra, ainda que por dentro a pudesse abrir. Foi como que
a porta duma cela sem grades se fechasse para sempre.
De
repente, e num esforço, fruto de treino aturado, varreu da cabeça
pensamentos impróprios dum astronauta amadurecido durante longos
meses de treinos, nos mais sofisticados laboratórios de ensaios técnicos
e de testes à sua da capacidade física, moral e psíquica.
Tinha
aprendido a dominar os nervos, a controlar emoções e, sobretudo,
a lidar com uma nave completa e sofisticada.
(...
... ...
...)
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