2016, Amor Cosmológico

Editado em 1998, deste livro se transcreve o prefácio de Idalécio Cação, no qual são tecidas algumas considerações acerca do conteúdo, e o início do primeiro capítulo.

Prefácio

2016 - Amor Cosmológico

Um livro a ler com urgência

Se há literatura que me enjoa e repele, ela é sem margem para dúvidas a chamada literatura de ficção científica, sobretudo aquela que afasta totalmente do seu campo exploratório a experiência da vida do autor enquanto habitante da terra, preterindo-a às hipóteses que a ciência põe ao alcance do escritor.

Virá a propósito perguntarmo-nos então o que é afinal a literatura de ficção científica, ou o que se convencionou entender como tal.

   ISBN: 972-8183-59-3

Se há literatura que me enjoa e repele, ela é sem margem para dúvidas a chamada literatura de ficção científica, sobretudo aquela que afasta totalmente do seu campo exploratório a experiência da vida do autor enquanto habitante da terra, preterindo-a às hipóteses que a ciência põe ao alcance do escritor.

Virá a propósito perguntarmo-nos então o que é afinal a literatura de ficção científica, ou o que se convencionou entender como tal. Harry Shaw, no seu Dicionário de termos literários, adianta-nos que é um “género de narração literária, cujo enredo, tema e cenário se alicerçam, duma forma imaginativa, no conhecimento científico e respectivas teorias e especulações “. Por sua vez, D. Suvin, transcrito no Glossário da Crítica Contemporânea, de Marc Angenot, diz-nos que a ficção científica “é um género literário cujas condições necessárias e suficientes são a presença e a interacção da distanciação e da cognição e cujo principal processo formal é um quadro imaginário diferente do mundo empírico actual”.

Temos assim que, em ambos os conceitos acabados de citar, a modalidade literária em questão assenta os seus princípios na imaginação dos cultores do género, em que assumem papel de relevo o conhecimento científico e a especulação, como não poderia deixar de ser.

 

Contrariamente ao que se possa imaginar, a ficção científica não surgiu apenas com o advento das naves espaciais e das viagens interplanetárias. Tanto quanto mo permitem os meus parcos conhecimentos da matéria em apreço, o grande precursor deste tipo de narrativas terá sido Júlio Verne, que todos lemos na nossa juventude. Quem não se recorda de “Vinte Mil Léguas Submarinas “, ou de “A Volta ao Mundo em Vinte e Quatro Horas”  ou ainda e sobretudo “Da terra à Lua”?

Não esqueçamos, porém, que já no dealbar da nossa Era, mais propriamente no Séc. II, o escritor grego Luciano havia escrito sobre um herói que empreendera uma viagem à Lua. Um e outro, creio, enquadrar-se-iam melhor naquilo a que os franceses chamam de escritores de antecipação cientifica.

Chegados a este ponto, vamos ao que me traz aqui a terreiro. Quando há uma meia dúzia de anos o meu amigo João Lemos me deu a ler o original do seu romance "2016 — Amor Cosmológico", encorajei-o a fazer os possíveis para editar o livro. E quais eram os argumentos que assim me levavam a proceder? Se eu não gostava de ficção científica... é que dava-se o caso de eu haver encontrado finalmente os condimentos que qualquer modalidade literária deve conter, segundo o meu ponto de vista, como escopo fundamental: os problemas do homem e a sua relação com o mundo que o rodeia e, neste caso concreto, com outras galáxias, não deixando aqui de os ponderar à luz das novas realidades científicas.

Foi na perspectiva destes princípios basilares que, a propósito do referido original, e num prefácio à sua "Monografia de Vilar", falei então do prazer que a leitura desse inédito me suscitara, "não como um dever de amigo, mas como leitor empenhadíssimo de uma outra ficção científica que, do espaço cósmico, medita sobre os problemas terrenos mais profundos, desde a paz e o amor à fraternidade entre os homens". E concluía convicto: "desta ficção científica gosto eu, da sua mensagem, e muito folgarei quando vir o livro publicado".

É pois com toda a alegria que vejo realizar-se o meu desejo de então, que será obviamente a mesma do seu autor

Para que o livro me tivesse seduzido especialmente desde essa leitura já distante, um factor se me impôs logo com toda a evidência, para além dos já mencionados anteriormente. Na verdade, o herói de “2016 — Amor Cosmológico” não age como um autómato, que apenas se preocupa com os botões e as alavancas do seu Módulo por forma a atingir os objectivos preconizados no voo espacial.

De modo algum. Ele tem coração e sentimentos e a sua condição de humano não se encontra minimamente obliterada; ele é detentor de um conjunto de valores de que jamais abdicará, mesmo nas horas mais difíceis da sua missão.

Kana Biyik, "um homem de cor, com ar ingénuo, oriundo dos Camarões" fora o escolhido para comandar um Módulo tripulado a Marte, empreendimento que, por comum acordo, os cientistas do I. A. U. (Instituto de Astronomia Universal) haviam decidido levar a efeito. No desempenho de tarefa tão ingente, o camaronês age sempre como um ser completo que nenhuma circunstância consegue obnubilar .

Ele reflecte sobre os problemas mais candentes que assolam o Universo, relembra a sua infância e os seus companheiros distantes, tem um espírito racionalista mas simultaneamente harmonioso que permanece incólume em qualquer provação ou incidência mais inesperada. E para se manter saudável e sem constrangimentos, tem a sua Afrodite, uma boneca insuflável com quem fazia amor sempre que a vontade natural se impunha. E de tal modo o simulacro era perfeito que o nosso herói “tinha de confessar que nunca uma mulher lhe produzira tamanho prazer”, o que era notável.

Também o seu relacionamento com os extraterrestres com quem contactou na sua maravilhosa viagem predispunha a um sentimento de serena plenitude, num misto de paz e jucundidade, sem armas nem preconceitos rácicos, adivinhando-se no leitor a imediata adesão aos nobres princípios que exornam o espírito de Kana Biyik. Nada nestes contactos deixa antever os cataclismos tantas vezes frequentes na conceituada ficção científica do nosso tempo, como "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, que inspirou a famosa reportagem de rádio que havia de aterrorizar os americanos em meados deste século.

Certamente que não estaremos sozinhos no Universo. A vida do nosso cosmonauta no planeta Aris representou para ele o encontro com a felicidade suprema e muito em especial o seu relacionamento com Blumela, isto é, a Flor que Ri.

Os arisianos ignoravam as armas e toda a espécie de conflitos, e quando Kana Biyik lhes perguntou como reagiriam a um ataque provindo de outras galáxias ficaram mudos por instantes pelo imprevisto de tal ocorrência, não se eximindo, porém, à resposta: “Não sabemos o que é a guerra e nunca sofremos nenhum ataque. No entanto, possuímos mecanismos à semelhança de paredes invisíveis que existem nas casa e nos veículos. (...) São feixes de raios cósmicos que, orientados e concentrados em determinada área, formam um escudo invisível. Por isso é impossível qualquer objecto penetrar no nosso espaço sem se auto-destruir”.

O convívio com Blumela, a esbelta e jovem mulher com quem iria aprender a falar e a escrever o arisiano, revestira­-se desde o início de mútua atracção, e de tal sorte que esse sentimento iria influenciar decisivamente o futuro de Kana Biyik. Encontrara finalmente um mundo perfeito e harmonioso e, tendo resolvido ficar para sempre em A ris, reenviara o Módulo para a Terra, com a seguinte mensagem: “Olá, amigos! Estou vivo e feliz! Encontrei o Paraíso! Á pedido dos meus queridos anfitriões, não vos posso dizer onde fica este Éden, este oásis do Cosmos, pois eles têm medo de vir a ser um inferno como na Terra! Não se preocupem, não me procurem, pois é em vão “.

A mensagem deste livro de João Lemos está explicitada no seu próprio título. Na verdade, Kana Biyik é o protagonista desta aventura singular que, perseguindo intuitos necessariamente científicos, acaba por “trair” afinal quem nele confiará, negando-se a voltar à Terra juntamente com o Módulo. E que em Aris o amor entre os arisianos era uma constante, e o nosso herói fora acolhido por eles como um irmão nesse verdadeiro Paraíso. "Tudo parecia simples neste mundo de um só idioma onde não havia dinheiro", nem ódios, nem sentimentos de baixeza. Aqui, ignoravam-se as terrenas invejas e as intrigas que o camaronês tão bem conhecia no seu planeta de origem; em A ris, não havia fronteiras e tudo era de todos. Ao ler este livro, quem não pensará na “Cidade do Sol” de Campanella, ou na "Utopia", de Thomas More?

Contrariamente Kana Biyik, que na epístola aos terrestres se recusa a fornecer-lhes as coordenadas do planeta paraíso, onde ficará definitivamente, daqui se recomenda aos virtuais leitores deste livro que o procurem nas livrarias e pontos de venda. Não irão arrepender-se. É que a quimera e o sonho fazem parte integrante do nosso imaginário. Pois não é o sonho que comanda a vida, conforme nos adverte o poeta Gedeão?

IDALÉCIO CAÇÃO


Capítulo I

No I.A.U. ou seja, Instituto de Astronomia Universal, situado por comum acordo entre todas as nações membros do Clube do Cosmos, no deserto de Gobi, na Mongólia, e distante para sul mais de trezentos quilómetros da cidade de Uliastaj os cientistas de exploração cósmica decidiram mandar um Módulo tripulado a Marte, com passagem de observação por Fobos.

Depois das investigações totais da superfície e da atmosfera de Marte, utilizando satélites orbitais, aeróstatos, sondas meteorológicas e exame da superfície marciana por aparelhos sofisticados que fizeram análises de bioquímica e geoquímica em pormenor, depois de resolvido o problema da gravidade zero dentro do módulo com um sistema que nos faz lembrar o brinquedo de criança “Sempre em pé”, a obstrução aos raios cósmicos através de duplas camadas finas de chumbo afastadas entre si por vácuo e as vigias com vidros reflexos dos mesmos raios, resolveu-se o problema do combustível através de átomos de oxigénio, para atingir a velocidade da luz ainda que por tempo reduzido, energia solar e combustível sólido para os retrofoguetões.

Tudo tinha sido estudado para garantir a segurança de um possível astronauta.

Tinha de ser um homem de rija têmpera, dotado de grande personalidade e espírito de sacrifício. Tinha de ser voluntário e sujeitar-se durante três anos a testes, e, passados estes, fazer ensaios simulados de voo a bordo de um habitáculo como aquele que o levaria a Marte e o traria de volta à Terra.

Tinha de ter uma saúde impecável, pois ia estar sujeito a enormes pressões físicas e psíquicas. Tinha de vencer enormes forças centrífugas que lhe trariam vertigens, tonturas e, provavelmente, enjoo e vómitos.

Com o decorrer da viagem e num estado de imponderabilidade, o hábito de caminhar e o peso sobre a coluna desaparecem e os ossos fragilizam-se.

Tinha também de possuir um coração excepcional como o do célebre ciclista italiano Fausto Copi. Claro que os médicos, os físicos e todos os outros cientistas do I.A.U. a tudo estavam atentos e o habitáculo do Módulo seria dotado dos mais sofisticados sistemas. Iria sentir-se como em casa, sendo o problema maior a vencer a solidão.

Ia ser distribuído pela imprensa mundial um memorando com as condições exigíveis para um cosmonauta voluntário. Milhares de homens e mulheres de todo o mundo foram dar os seus dados físicos e formação intelectual, nas muitas agências, abertas nas capitais dos países. Todos os dados chegaram ao L.A.U. para uma primeira triagem.

Os dez escolhidos teriam emprego à partida, caso quisessem, nos quadros técnicos do Instituto e seriam sujeitos a um primeiro exame directo donde sairia o eleito para o teste final e treino intenso que o levaria ao Cosmos.

Um homem de cor, com ar ingénuo, oriundo dos Camarões, foi o eleito. Era forte como um touro, tinha um coração excepcional com a frequência cardíaca 72/130, grupo sanguíneo O e temperatura interior de 370 C e dentes sãos, claro! Tinha muita cultura geral e o curso superior de electrónica tirado em Paris, na Sorbonne, para além do de Belas-Artes. Falava o dialecto da sua terra, o francês, o inglês, o alemão e alguma coisa de russo.

Praticara, em competição, a natação, a vela, o remo e vários outros desportos por pura distracção.

Tinha 34 anos, e o limite para ser cosmonauta era de 36 anos. Fez estágios ao abrigo de convénios internacionais entre o seu país e outros países, como por exemplo numa fábrica de computadores, no Japão, e um curso rápido de admnistração­social, na Suécia.

Presentemente, dirigia a secção electrotécnica do caminho-de-ferro transcamaronês, onde não se sentia realizado, pois o seu sonho sempre foi estar ligado à técnica de exploração espacial. Aliás, na sua razoável biblioteca predominavam, em várias línguas, livros que iam da ficção científica, histórias de OVNIS, estudos publicados sobre astronáutica, exploração espacial, estudos médicos e psicológicos sobre os riscos durante o voo, estudos teóricos e observacionais sobre o sistema solar, as viagens dos astronautas soviéticos e americanos e até banda desenhada sobre viagens fantásticas.

Via todos os filmes em que a viagem ao Cosmos fosse o tema. Só não gostava daqueles filmes e histórias tipo Flash Gordon. Para ele, as viagens espaciais tinham de ter o mínimo de credibilidade. Por isso, os examinadores que lhe fizeram o teste determinante das suas capacidades físicas, psíquicas e de cultura geral, ficaram atónitos perante os conhecimentos de quase tudo o que se passava no mundo da astronomia.

Até nomes das pessoas envolvidas, datas de lançamentos e outras experiências, ele sabia. Parecia uma obsessão doentia, mas no fundo era um sonho que dentro em breve ia ser realidade.

Testes intensíssimos deixaram-no nos primeiros tempos descontrolado, mas, logo que foram feitos os exames finais ao seu estado físico, começou a adaptar-se lentamente a um cubículo semelhante àquele que o levaria a uma viagem que duraria oitocentos e quarenta e três dias.

Nas últimas três semanas antes do dia marcado para a partida, já não saía ao exterior, fazendo a sua vida dentro do Módulo simulando o voo.

Do lado de fora, os técnicos acenavam-lhe com gestos amigos que tudo estava a correr bem, que o seu organismo estava perfeitamente adaptado.

Antes da hora da partida, apenas estaria breves momentos na sala quase hermética onde estavam todos os técnicos envolvidos no projecto, para se sujeitarem a qualquer pergunta do astronauta e, por fim, o director do I.A.U. fez-lhe a pergunta sacramental. “É de sua inteira e livre vontade participar neste voo?” Kana Biyik, assim se chamava o astronauta, respondeu “Sim, eu confio nos homens de ciência que materializaram este sonho!”

Cá fora, uma multidão de repórteres seguia, via circuito interno, este diálogo simples para uma aventura que iria deixar o mundo em suspenso.

Kana caminhou sereno através duma manga transparente entre o Centro de Ensaios e o interior do Módulo. Não quis ninguém da família à despedida. Já o fizera quando saíra dos Camarões.

Quando a enorme escotilha se fechou e os gonzos do sistema automático, com um ruído suave e oleado, a fixaram em definitivo tornando o interior do Módulo estanque, Kana Biyik fixou o olhar naquela única via de acesso ao mundo ex­terior, e ficou como que paralisado, ocorrendo-lhe que aquela saída jamais se abriria e voltaria a pisar a Terra, ainda que por dentro a pudesse abrir. Foi como que a porta duma cela sem grades se fechasse para sempre.

De repente, e num esforço, fruto de treino aturado, varreu da cabeça pensamentos impróprios dum astronauta amadurecido durante longos meses de treinos, nos mais sofisticados laboratórios de ensaios técnicos e de testes à sua da capacidade física, moral e psíquica.

Tinha aprendido a dominar os nervos, a controlar emoções e, sobretudo, a lidar com uma nave completa e sofisticada.

(...   ...   ...   ...)


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