O Moliceirinho Sabichão. Acesso à hierarquia superior.

joão pereira de lemos, O Moliceirinho Sabichão, 1ª ed., Aveiro, Ameise Editora, Lda, 2010, pp. 1 a 21


Texto integral

«Sou Moliceiro
do teu lodo fecundo
sou a Ria de Aveiro
o sal do mundo»

«rede que teço
e é no sal do suor
que eu aconteço»

«além da salina
o horizonte me ensina
que há muito mar
muito mar
p'ra lavrar!
p'ra lavrar!»

Um dia, meus jovens amigos, vão perceber este poema. Se quiserem, peçam ajuda aos vossos paizinhos, que talvez saibam explicar melhor do que eu.

Hoje é 8 de Setembro, dia do São Paio da Torreira. Este santinho é aquele de quem os pescadores mais gostam. Nasceu em Coimbra, em 26 de Junho de 925.

Quando era conhecido pelo nome de Plágio, no ano 938, os mouros torturaram-no e queimaram-no, por ele ser cristão. Na festa, o arraial estava cheio de tendas ambulantes com medalhinhas, bentos e brinquedos. Nas tasquinhas havia malgas de barro para o vinho carrascão, xarope de avenca e hortelã-pimenta. Noutras, havia bugigangas e anéis de prata para o compromisso com a namorada. Pelo meio do magote de pessoas, havia alguns ceguinhos com óculos escuros para disfarçar e um garoto pela mão apregoando pobreza e versos maldosos para as velhotas, ou / 2 / choradinhos e desgraças; jogadores de roleta e lorpas alumiados à luz do carbureto ou do petromax. Toda a gente dançava o virinha-cruzado e os aleijadinhos estendiam a mão pedindo esmola. [ Mais informação acerca do S. Paio da Torreira ]

Os burburinhos, porque a carraspana é grande, ou um larápio carteirista de mão leve que quis roubar a carteira a algum papalvo, obrigavam a GNR a intervir. Eram só cabeças rachadas de onde saíam lufadas de vinho – dizem que, antigamente, os pescadores davam um banho com vinho ao santinho, que depois bebiam para curar doenças, ou arranjarem namorada e cantavam depois:

Graças a S. Paio p'ra sempre
Louvado seja o seu esplendor
Já que hoje ouvi uma fala
Da boca do meu amor!

O paganismos destas festas aos santos nunca fizeram mal à fé, como as pregações, nunca prejudicaram o negócio, nem os folguedos estorvam a devoção. A fé de cada um não se perde com o lanche. Há muitos romeiros que vão à festa por devoção a São Paio, mas não escapam à alegria contagiante.

Chegada do Moliceiro e da Matolinha à Festa do S. Paio da Torreira. Clicar para ampliar.

E os romeiros que moram à beira dos seis mil hectares da laguna, mais conhecida por ria, vieram, um dia antes, para participarem no arraial ao nascer do dia, que / 3 / é único na região. Toda a ria é uma festa. Tão linda, cheia de barcos com as velas desfraldadas, ilhas, cabedelos, canais, esteiros, marinhas (onde se faz o sal) com nomes engraçados como: "Pajota", "Biscarroída", "Calções Verdes", "Senitra", "Raivosa", "Burranca", "Inferno", "Paraíso", "Andorinha", "Suja", "Trapalhona", "Gaga" e muitos outros. As marinhas têm um muro à volta que se chama mota e / 4 / uma entrada de água que se chama bomba. Dentro dos muros altos há uns baixinhos que dividem a marinha em sete tabuleiros e a água vai passando de uns para os outros. O sétimo e último tabuleiro é chamado de marinha nova. A água está a 25º centígrados e é onde se fabrica o sal por acção do sol e do homem. A esses rectângulos, chamam algibés.

Moliceiro - Clicar para ampliar.

Também há marinhas de junco e viveiros onde se criam peixes como o robalo, a tainha, a enguia e outros. E os montes de sal, com o formato em cone? Alguns cobertos com bajunça, por causa da chuva não derreter o sal. E os palheiros que, há muitos anos, eram em madeira e que servem para guardar o ugalho, o rapão, a pá de amanhar, a razoila, o circío e o pajão, que são algumas alfaias para os marnotos trabalharem?
 

Nos palheiros também há um ou / 5 / dois catres, para as pessoas dormirem, prateleiras para porem pequenas coisas, pois a comida é pendurada nas traves que atravessam os palheiros em sacas por causa das formigas. Fora dos palheiros costuma haver: uma pequena horta com couves, batatas, cebolas e outras hortaliças, uma figueira e uma parreira de cachos que também serve para fazer sombra. Os festivaleiros vêm, na sua maior parte, de barco. Lá estavam amarrados aos moirões os mercantéis, as marinhoas, as erveiras, as patachas, as labregas, as caçadeiras, as bateiras da chincha, as bugigangas, as moliceiras de Canelas e os matolas de Vagos.

Camarada com as cordas que ligam o xarolo (X) ao leme, guia o moliceiro qu eleva as falcas (F) para não entrar água. Clicar para ampliar.

O colorido das bandeirolas, a música, os foguetes e aquela multidão eram duma alegria contagiante! Mas notava-se que os moliceiros eram meia dúzia, sendo a maioria oferecidos a colectividades pelas Câmaras Municipais.

 / 6 / Se nos lembrarmos que, em 1889, havia 1.749 moliceiros e 3.644 camaradas; em 1935, 1.008 moliceiros e em 1988 apenas 2 moliceiros, compreendemos que, por causa do moliço deixar de ser utilizado para estrumar as terras, levou ao desaparecimento progressivo deste lindo barco. Agora, os moliceiros que se constroem são mais para lazer (o barco não é para o trabalho, mas para regatas, corridas, passeios ou concursos de pesca) dos donos e para participarem, em Agosto, na tradicional regata Torreira-Aveiro, do que para transporte de materiais.

Nas Bulhas, ali em Pardilhó, onde o mestre Toni tem o seu estaleiro, com as suas mãos sábias, construiu um pequeno moliceiro com 9,30 m de comprimento, 2 m de boca e 0,40 cm de pontal, a que deu o nome de "Moliceirinho Sabichão". O destino tem destas coisas e, pois não é que no estaleiro nas Barrocas, lá para os lados de Seixo-Mira, o mestre Loureiro, filho do mestre "Gadelha", não construiu também um barco com 7,30 m de comprimento, 1,60 m de boca e 0,90 cm de pontal a que deu o nome "Matolinha das Folsas"?

Clicar para ampliar.Um e outro mestre construíram os barcos para passear e irem a festas, como a das Folsas Novas que se realiza em Agosto e ao S. Paio da Torreira como agora estava destinado. A "Matolinha" tinha saído muito cedo do estaleiro, pois teve de vir de tractor até à Quintã e ser lançada no rio Bôco, subir o canal do Espinheiro, entre o Gramato e a ilha do Monte Farinha e, quando guinava para o Canal de / 8 / Ovar, aparece-lhe por estibordo o "Moliceirinho".

Quase se chocaram e, para espanto dos mestres-camaradas que os conduziam, foi amor à primeira vista! Encostaram-se um ao outro e, ainda que a água estivesse remansosa, sentiram cócegas ao roçarem-se. O Moliceirinho ficou tão contente que até parecia que dava saltos por cima da marola. Retesou a corda de bolinar e desatou numa tão louca velocidade que a Matolinha não o conseguia acompanhar. Como era muito mais leve que os moliceiros de trabalho, fazia-lhes desafios, passando-lhe tangentes pela frente, dava uma volta por detrás deles, mudava de escota e voltava a passar pela frente.
 
/ 9 /
Com a brincadeira, roçou numa estaca que fica em frente à Pousada da Ria. Mais calmo, voltou para junto da sua Matolinha, mas esta não quis começar logo a namorar, pois achava que ainda eram muito novos e disse-lhe:

Vamos pensar bem no assunto e para o ano, quando vieres de novo à festa, conversamos.

Para acabar, seguiu-se com este adágio:

"Mulher à vela, marido ao leme", entendes?

O Moliceirinho não desarmou e respondeu-lhe:

"Mulher sem marido, barco sem leme", mas está bem, só te peço que esperes por mim.

Conversa puxa conversa e o "Moliceirinho Sabichão" propôs à sua namorada:

O nosso encontro parece não ter sido obra do acaso e, se estamos um para o outro, vou dizer-te que não gosto de te ver assim toda de preto. Pareces uma "triste viuvinha". Vou sugerir ao humano teu dono para te encher de bandeirolas coloridas no bolinão, na amora, na ostaga, na escota, enfim, em tudo o que seja corda e até na aresta da vela. No topo do teu mastro será içada uma bandeira de Portugal. Também no teu caracol e no traseiro, um enorme ramo de flores e até nas cintas da borda uma grinalda de flores como uma noiva, no dia de casamento!

Chegados à Torreira, amarraram-se aos moirões para não serem levados pela força / 10 / da maré e ficaram a namorar, bem encostadinhos um ao outro, esperando que os camaradas e os romeiros viessem da festa. O moliceirinho começou a dizer palavras bonitas ao ouvido da Matolinha, mas esta queria que a conversa fosse coisa mais séria e disse:

Olha lá, tu que tens antepassados mais velhos do que eu e, sabendo eu que uma jangada com moliço em cima é um moliceiro, explica-me porque é que, especialmente a tua família, são considerados os mais lindos barcos de Portugal?

O Moliceirinho deu um encosto à Matolinha, pensou um pouco e respondeu:

Sabes, isto é uma história muito antiga que o meu avô ouviu do seu avô e assim sucessivamente. Ainda hoje, há discussões entre os humanos acerca da nossa origem. Uns dizem que descendemos do barco drakkar dos Vikings, lá da Suécia; outros dizem / 11 / que descendemos dos barcos Fenícios, lá do Mediterrâneo.

Lá porque encontraram em Ur, lraque, um modelo em prata dum barco com a proa e a popa levantada que usavam na Suméria, há 4.000 a. C., já o copiámos, mas esqueceram-se dum barco que parece uma gamela que existiu entre 6.590 a 6.040 a. C. Como se os nossos habitantes da borda de água não tivessem cabeça para pensar!

E tinham. Basta lembrar a construção das naus e das caravelas com que descobrimos o Brasil, a Índia, entre outros países e o nónio que Pedro Nunes (1502-1578) inventou. Basta ver a quantidade enorme de barcos diferentes e adaptados às diferentes necessidades de trabalho, nos rios e no mar, que há cá no nosso país!

Se calhar e, pelo que eles dizem, também copiámos o "rabelo" do rio Douro, a "fragata" do rio Tejo, o "calão" do Algarve e muitos mais. Se calhar foram os outros que copiaram pelos nossos barcos, pois temos muitos rios e muito mar e, dantes, as estradas eram os rios!
 
/ 12 /

Queres a melhor prova disso? Foi o facto de terem sido encontrados vários barcos muito antigos na nossa Ria. Não sei se sabes que, há quarenta anos, foi descoberto, na Barra, um barco com mais de quatrocentos anos, outro em 1992, na praia de Biarritz, com mais de 500 anos; outro, há dez anos, no canal de Mira e outro, há seis anos, no Porto de Aveiro, com igual idade e que, segundo um humano-cientista de nome Francisco Alves, a Ria de Aveiro é, no país e no estrangeiro, o local onde há a / 13 / maior e mais bem datada colecção da Época dos Descobrimentos! Até um astrolábio náutico, fabricado em 1575, foi encontrado junto da lota velha!

Estou admirada com o que tu sabes! És mesmo um moliceirinho sabichão! Já agora continua a contar tudo, que eu adoro ouvir-te.
 

Ia perdendo o fio à meada. Pois... quando começou, há dois mil anos, o fechamento com areia do cordão litoral, onde hoje é a Torreira, S. Jacinto, Costa Nova e por aí fora até ao Cabo Mondego e os fundos da ria começaram a ficar baixinhos, começou a nascer o moliço que, para que saibas, tem os nomes de sirgo, limo, fitas, corga, rabos e muitos outros. Logo os humanos descobriram que o moliço era um bom fertilizante para adubar as terras, de onde vem grande parte dos nossos alimentos.

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Capela de São João no Rossio de Aveiro e barcos mercantéis há 100 anos.
Rossio há100 anos

Para apanhar o moliço, qualquer barco servia, desde que não tivesse quilha, isto é, que fossem baixinhos. O mais antigo deve ter sido muito semelhante ao nosso primo mercantel que era pau para todo o serviço, / 14 / pois acarretava desde pedras, madeira, sal, moliço, humanos e muitas outras coisas.   (mercantel)

A Matolinha, impaciente, voltou à carga:

Tá bem, mas, espero que não fiques vaidoso. Porque és tão lindo?

O Moliceirinho pareceu corar, mas era apenas o reflexo avermelhado do sol no seu ocaso que, no seu rastro, se alongava ria fora. No entanto, talvez, por efeito de uma marola, levantou a popa e, após esse gesto, continuou a explicação acerca da sua origem.

De repente, ficou silencioso e, antes de prosseguir com a sua explicação, disse à Matolinha:

Como se comporta o teu camarada humano?

Respondeu aquela:

Não vês como ando pouco asseada? Para além disso, não preserva a natureza, pois despeja lixo nas margens e até mesmo na água. Isso prejudica tanto os próprios humanos, como a terra e a água. Mas há muitos camaradas humanos que têm barcos lá para o meu lado e cuidam dos problemas ecológicos.

Não fiques triste – atalhou o Moliceirinho – a maioria dos humanos é assim e ainda goza com os ambientalistas. Cá o meu "chefe", ainda há dias, veio com uma carroça carregada de lixo e coisas velhas e atirou-as para a nossa Ria. Teve sorte em não aparecer a Polícia Marítima que lhe aplicaria uma multa.
 
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Mestre Lavoura fazendo moldes para os moliceiros. Clicar para ampliar.

Quanto à nossa origem vamos imaginar, mas com fundamentos históricos e técnicos. Há pouco mais de cem anos, um humano, que construía os nossos antepassados, tinha um estaleiro em Pardilhó e, em conversa com um dono de barcos, entre os quais alguns dedicados à apanha do moliço iguais a tantos de outros donos e feitos noutros estaleiros, recebeu a seguinte proposta:

«Ó Mestre, eu quero um moliceiro mais bonito e diferente de todos os outros moliceiros.» O Mestre ficou entusiasmado com a ideia e respondeu: «Está bem, vou pensar nisso.»

No outro dia, olhou para os barcos que estava a construir e reparou, no enrolado da proa do "meia-lua" e da ilhava que tinham as formas mais elegantes e bonitas. Sem se preocupar para o que servia o moliceiro, mas sim na sua beleza, avançou com a ideia e logo fez uma pequena maqueta. Lembrou-se das ondas do mar e enrolou a proa e, para não parecer um pardal sem rabo, equilibrou a ré e o leme com a proa. Mostrou ao futuro dono que, embora gostasse muito, propôs umas pequenas alterações que lhe pareciam fazer o barco mais lindo e airoso. O Mestre pôs mãos à obra e construiu o primeiro moliceiro, semelhante ao que somos hoje!
 
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Claro que a história não acaba aqui. Os outros donos dos mercantéis ficaram ruídos de inveja com tal beleza e logo falaram com outros construtores da sua confiança, para fazerem moliceiros mais bonitos do que aquele. Depois houve a sã rivalidade entre os mestres e donos que queriam que o seu barco fosse mais bonito do que o do vizinho! Ainda não há muitos anos, o mestre Agostinho Tavares da Silva dizia que «é um barco feito a gosto e não por risco»... «e que o gosto é estimulado pelos donos dos barcos». Já o mestre Henrique Lavoura dizia que «quem manda fazer um barco, tem paixão por ele. Por isso, quere-o mais bonito que o dos outros».

A Matolinha estava admirada com o que o Moliceirinho sabia, mas queria saber mais e perguntou-lhe:

Olha lá, como vês, eu e os de lá da zona de Vagos não temos pinturas, somos negros como carvão e vocês têm pinturas tão lindas! Isso deve ter tido um começo e, tu que sabes tudo, também sabes como isso começou?

A recurva do Moliceirinho até pareceu que inchou. Ficou silencioso até o terretétéu, pum, pum, pum! do foguetório acabar e, com ar emproado de sabichão-mor, disse:

Sabes, os primeiros moliceiros meus antepassados, não / 17 / tinham pinturas como hoje, a não ser a da matrícula, porque a isso eram obrigados pela Capitania. Mas, como sabes, os "camaradas" que nos comandam e, como humanos que vivem junto aos rios, Ria e mares, dos quais retiram o pão nosso de cada dia, são muito religiosos.

Proa do moliceiro e ornamentos de templos e iluminuras dos sécs. III e XVII. Clicar para ampliar.Quando em perigo de naufragarem, fazem promessas a Deus, à Nossa Senhora e aos santos. Então, começaram a pintar uma cruz à proa. Como humanos tinham o seu santo de devoção e resolveram pintá-lo, como por exemplo, Santo Amaro, mas sendo maus pintores, ninguém sabia quem era o Santo.

Então escreveram o nome do santo, nascendo, assim, as legendas. A provar isto, vou-te citar algumas legendas que estão nas proas e na ré de alguns moliceiros: «Ora bamos lá cum Deus», «Bamos com St.º António», «Sinhor dos Nabegantes» e muitas outras. Não te admires com os erros de português, porque se eu te disser que em 1900 entre cem portugueses, nem trinta sabiam ler! Hoje, escreve-se assim de propósito, para conservar a tradição.

Quanto aos arranjos ornamentais ou motivos decorativos, / 18 / à volta das figuras, baseiam-se no que sucede nos altares das capelas e igrejas. Podemos dizer que "é para enfeitar o Santo".

Mas há uns desenhos retorcidos que não têm nada a ver com "Flores" – disse a Matolinha.

Já esperava por essa e, respondendo à tua insinuação, direi que, se olhares para o retorcido das colunas dos altares e desenhos que vêm nos missais de ir à missa, vês desenhos muito semelhantes que os camaradas-devotos "transportaram" para os nossos painéis. Ainda não falámos do desenho redondo que está pintado no nosso leme e que não é mais do que o emblema do humano que nos construiu.

Mas o pior é que os humanos, que gostam muito de nós, andam tristes por não nos considerarem Património da Humanidade, pois além de lindos, somos, únicos no / 19 / mundo! Olha que andam, há décadas, para o conseguir, mas há sempre entraves. Em 2009 voltaram a apresentar-se à candidatura promovida pela Fundação "New Open World Foundation" (Fundação Mundial Nova Abertura) que termina no dia 7 de Julho para que a Ria, com todos os seus tipos de barcos, seja Património da Humanidade como uma das "Sete Maravilhas do Mundo".

A Matolinha voltou à carga, dizendo:

Tou a gostar de te ouvir, mas só falaste em painéis religiosos e, então, os outros que são maldosos e gozões...

Espera lá, isso também tem explicação – retorquiu o Moliceirinho Sabichão. – Lembras-te de eu dizer que se criou uma certa rivalidade entre os donos dos barcos, por um lado, e entre os construtores, por outro, e que eram mais de dez? Ainda muita / 20 / gente se lembra dos construtores Manuel Tavares, do Agostinho, do Rato, do Felisberto, do Raimundo, do Ferreira da Costa, do Toni, do Preguiça, e talvez o maior de todos, que foi o Lavoura. E cada um era o maior de lá do sítio como as legendas dizem.

Ouve, então, o nome de algumas: "O Leão da Moda", "O Galo da Ria de Aveiro", "A Estrela do Lameiro", "Eu, sou, do Canto da Lagueira", "Eu sou de Ovar", "Na Torreira mando Eu", "A Vaidosa do Lameiro", "A Flor do Arieirinho" e "O Rei da Marinha". Depois vieram as amorosas e as maldosas, como por exemplo: "Dame um Beijo Amor" e "Esta qui mas num é pra ti". Para não serem iguais aos outros, ao longo dos anos, os humanos, envolvidos na nossa construção, foram inventando novos desenhos e legendas. Para dizer a verdade, os pintores de agora são muito perfeitos comparados com os de antigamente. Eu não gosto, e tu que dizes?

Sabes, eu como nunca tive pinturas, tanto me faz. Para mim, vocês são todos muito lindos, mas tu por seres tão sabichão és o mais lindo e gosto de estar ao teu lado, saboreando esta calma e este fim do dia, esperando os nossos humanos que espero não venham bêbedos da festa. Eu vou até / 21 / às Folsas e tu até ao Bico da Murtosa. Não sei se para o ano nos voltamos a ver, pois como sabes, mesmo que os humanos nos tratem muito bem, não duramos muito mais do que seis anos.

Que eu saiba, só o humano Ti João Malta, que tem mais de cem anos, começou aos catorze anos a ir ao moliço com um moliceiro que a mãe lhe comprou. Ia reparando-o e pintando-o, de tal maneira, que durou doze anos. Não sei se sabes que somos construídos com madeira de pinheiro que já não é tão boa como antigamente. Mas não fiques triste, pois mais vale namorar um só dia, do que ficar só toda a vida!

E lá se separaram. Ele para o Cais do Bico da Murtosa (onde todos os anos se realiza um Mercado Antigo). A Matolinha, acompanhada da restante família Matola, partiu, pensativa, para o Cais das FoIsas Novas, na esperança de que, para o ano, ia dar o nó, isto é, ia casar com o Moliceirinho!

Só pedia a todos os santos para que o pintor de Vagos, Jonny Santos, que vai para a região da Murtosa pintar moliceiros, também a pintasse a ela, de forma a ficar mais bonita.

 

 

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