A literatura nacional tece-se com os
contributos, nem sempre devidamente reconhecidos nem muito divulgados,
dos autores regionais e locais que fazem da paisagem e da herança
material e imaterial das suas terras a fonte de inspiração das suas
criações literárias e artísticas. O amor à terra de nascimento é um dos
sentimentos mais fortes do ser humano, que, por vezes, se traduz em
serviços de enobrecimento e em solidariedades várias.
O escritor João Lemos é um desses
importantes criadores que, na bela e rica paisagem aquosa de Aveiro e na
sua história, tem encontrado as ninfas inspiradoras para os seus livros
e textos, em que cultiva géneros literários variados.
Os seus contos, os seus ensaios, os seus
romances, preparados por ele com cuidado, e alguns merecidamente
distinguidos por diversas instâncias, fazem do João Lemos um escritor
regionalista de referência.
Agora, João Lemos abalança-se neste livro a
tentar preencher as lacunas do que não se conhece, acrescentando à
investigação do que se sabe pelos documentos históricos a imaginação
literária. É um livro que pretende reconstruir a vida e os percursos de
Fernão de Oliveira, nome do humanista aveirense que depois evoluiu para
Fernando Oliveira (c. 1507-c. 1582).
Há, de facto, não poucos autores de primeira
água na história da cultura portuguesa, cujas obras chegaram até nós
muito reconhecidas pela sua originalidade e pelo seu carácter pioneiro,
ou seja, como pilar fundador da nossa língua, da nossa história, da
nossa ciência e da nossa literatura. No entanto, a documentação-fonte,
que permita reconstituir a vida dos seus autores nos mais diferentes
contornos, é exígua, parcelar e deficitária. Isto acontece muito com os
criadores da nossa cultura até ao dealbar da época moderna, para os
quais era mais importante deixar obra feita e influente e menos
prioritário tornar visível o seu autor. A ideia de autor como essencial
vinculado à identidade da obra desenha-se mais nitidamente com o
antropocentrismo que a cultura da modernidade afirma. Hoje, assiste-se,
nas sociedades hipermodernas, à plena afirmação e distinção do indivíduo
sobre a comunidade, ponto de chegada do processo de emancipação do homem
moderno como protagonista principal da história, superando a medieval
visão providencialista do peregrinar humano sobre a terra, que, por
vezes, chega a degenerar num patológico egotismo.
Por isso, a cultura dos nossos dias valoriza
imenso o conhecimento do autor a par do conhecimento da obra. Causa-nos
mesmo perplexidade e move-nos uma curiosidade quase obsessiva para
conhecer o autor da obra que chegou até nós, como se tal conhecimento
fosse fundamental para a plenitude da assunção da obra em termos da sua
compreensão e valorização.
E quando não temos documentos que permitam
saber com rigor histórico a obra que chegou até nós, tentamos colmatar
esse deficit de saber pelo cultivo do género romance histórico ou de um
seu híbrido, como é o caso do livro que aqui prefaciamos.
João Lemos assume o desafio de fazer uso dos
parcos documentos de que dispomos para tecer um fio condutor contínuo,
de modo a oferecer-nos uma narrativa completa daquela que teria sido a
vida aventurosa de Fernando Oliveira. Outros já o tinham tentado, como
Teresa Ferrer dos Passos. Mas neste, como noutros casos, sobre o que não
se conhece verdadeiramente, tudo se pode imaginar. E a imaginação é o
motor da criação humana nos vários planos. Por isso, nunca é demais
imaginar uma vida que, mesmo pelo não muito que se sabe, se pressente
que tenha sido extraordinária, e tão inspiradora ainda para nós, homens
e mulheres do século XXI, que não nos conformamos com a inércia que nos
imobiliza e nos atrasa em relação a outros povos que têm a capacidade de
iniciativa e de inovação como marca distintiva.
Assim, o escritor João Lemos está de
parabéns por mais este livro que nos ajuda a compreender e a admirar um
dos mais geniais e pioneiros humanistas do século − charneira da
história portuguesa − o século de Quinhentos.
José Eduardo Franco |