Comecemos citando a própria autora que agora homenageamos, pois que a sua
história humana e literária é um singularíssimo “caso” que vale a
pena conhecer e perpetuar muito para além do tempo:
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«Uma
vida sem história. Então porquê contá-la? Não há nela nada de
excepcional, de “caso” nunca visto. Mas a vida é mesmo assim. Uma
rotina. Com horas, minutos e segundos, que caem dum relógio prodigioso,
numa sucessão de dias e noites, de sol a nascer, de sol a pôr-se, de
noite fechada, de madrugada a abrir-se – e chega ao ano, aos anos, ao século,
ao milénio. Ao tempo. Com criaturas dentro, que nasceram, viveram,
morreram...»
(Cecília Sacramento, “Palavras de Luz”)
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Corria
o ano de1918 quando Cecília Marques Maia (o Sacramento viria mais tarde)
nasceu em Cabanões, concelho de Ovar.
Neste
nosso Liceu de Aveiro, de que hoje somos descendentes como escola, fez Cecília
o Curso Secundário, tendo sido aluna de José Pereira Tavares, seu
dilecto professor, e António Salgado Júnior. Andava no penúltimo ano
quando foi eleita, em 1937, para integrar (no feminino, pela primeira vez
!) a redacção do jornal dos estudantes, “A Voz Académica”, que a
censura viria a reprimir e de que Mário Sacramento foi director. O nome
de Cecília consta do corpo redactorial do jornal do n.º 13 ao n.º 22.
Na
Universidade Clássica de Lisboa concluiu Cecília a licenciatura em
Filologia Românica com a tese “Uma Leitura da obra de Erico Veríssimo”.
Data
de 27 de Dezembro de 1944 o seu casamento com Mário Emílio de Morais
Sacramento, do qual nasceram dois filhos, Clara e Rui. Em Ílhavo viveu o
casal durante doze anos, após os quais se fixou em Aveiro, «com os
filhos a crescerem e as necessidades a agravarem-se» (p. 23 do “Diário”
de Mário Sacramento).
Ao
ensino secundário dedicou Cecília o seu compromisso profissional, sempre
em Aveiro, após uma primeira colocação na Figueira da Foz; incansável
e longa foi a sua actividade lectiva, “sempre a correr”, confessa, da
então Escola Comercial e Industrial (hoje Escola Secundária n.º1/Mário
Sacramento) para o Colégio Feminino de Nossa Senhora de Fátima e para o
Colégio Masculino D. Pedro V; e, às vezes, acumulando com lições
particulares em casa. É ainda ao “Diário” de Mário Sacramento, p.
301, que vamos buscar este registo de 14 de Agosto de 1968:
«A
Mulher – assim mesmo, saliente-se, com artigo definido e M maiúsculo! – tornou-se professora efectiva, com a nova estrutura do ensino.
Isso constitui a “reparação” de uma injustiça clamorosa: a dos
professores adjuntos, que eram para todos os efeitos... efectivos, mas
ganhavam metade destes. Está satisfeita, como é natural(...)»
A
reforma, como professora, mas não como trabalhadora intelectual,
atingiu-a aos setenta anos.
Que
dizer deste casal, pois que se torna quase impossível dissociar Cecília
e Mário? Companheiros de matrimónio e de ideais, a ela coube o amorável
recatamento, o mais modesto e silencioso – mas não menos digno ! –
acto no palco da luta que ele travou; e assim continua, ainda hoje, fiel
guardiã das suas memórias, do seu espólio, da sua herança humana.
Das
figuras históricas e literárias que passaram de forma marcante na vida
de Cecília, para além dos já mencionados professores, ela destaca
Vitorino Nemésio, Hernâni Cidade, Eugénio de Castro, Vergílio
Ferreira, Fernando Namora, José Régio, Maria Judite de Carvalho, Manuel
da Fonseca, Ferreira de Castro, Marmelo e Silva, Jacinto do Prado Coelho,
Agostinho da Silva, Zeca Afonso, Agostinho Neto, e a dupla de poetas
populares Marques Sardinha e Maria Barbuda.
Fechamos
esta breve resenha biográfica, citando a terna memória de dois amigos,
simbolizando, afinal, todos os outros: «Construtores do Futuro, que
eles queriam de Paz e Liberdade e, por isso, ambos já haviam sofrido
prisões e outras perseguições» são lembrados como «os melhores
que passaram pela Velha Casa (a casa de férias da família), um,
que era irmão de todos os homens e veio a ser, numa vida breve, o Pai dos
meus Filhos; o outro, que era irmão de todos os angolanos e que, também
numa vida breve, veio a ser o Pai de uma Pátria enorme, que aí está no
coração de África – Angola.» Trata-se, já perceberam, de Mário Sacramento e de Agostinho
Neto, assim perenemente evocados no texto “Para Além do Tempo”, do
livro “O Rasto dos Dias” (p.149).
Entremos
agora numa outra vertente da vida de Cecília Sacramento: a escritora que,
até ao momento e no espaço de apenas oito anos, publicou quatro
romances, um livro de contos e outro de memórias.
Tinha
já a linda idade de 75 anos quando deu à estampa, na Estante Editora, em
1993, “Apenas Uma Luz Inclinada”, romance que tinha pronto desde 1983.
Acolhido como «o seu primeiro e belíssimo livro», na apresentação
de um ex-aluno da autora, Joaquim Correia, surpreendeu pelo estilo moderno
de prosa poética com que aborda o eterno tema da vida e da morte, numa “polifonia
romanesca” (Mário Rocha) que entretece narração, descrição, diálogo,
monólogo, e registo diarístico.
Os
dois anos seguintes trouxeram ao público mais dois romances: “Uma Flor
para Manuela”, também pela Estante Editora, em 1994, e
“Palavras de
Luz”, em 1995,editado pela Câmara Municipal de Aveiro. O primeiro teve
apresentação de Vasco Branco que nele salientou o “panteísmo
virgem”, “as magníficas descrições elípticas”,
a
ternura e a preocupação latentes num mundo social em que a morte e a
vida nos vêm ensinar o amor. Já o romance de 1995 teve a apresentação
de Mário Castrim que nele antevê ,entre outros aspectos, mais ou menos
implícitos, traços de biografismo da autora.
Cecília
Sacramento quebrará este ritmo regular de publicação anual e dá a
lume, em 1999, numa edição da Câmara Municipal de Ílhavo, comemorativa
dos 25 anos do 25 de Abril, um livro de contos “Tempos do Tempo”;
com
apresentação de Torrão Sacramento, ex-aluno da escritora, é um
conjunto de “dezassete historiazinhas (diz ela) dedicadas aos
seus dezassete sobrinhos, filhos e filhos dos filhos dos seus irmãos”,
onde
está igualmente patente uma dimensão memorialista ficcionada, falando de
si e dos outros a várias vozes.
O
ano de 2000 marca a publicação de “O Rasto dos Dias”, “um
livro de arquivar” (C. S., p.179), com treze textos retrospectivos de
memórias e afectos, testemunhos vividos e recriados. Coube-lhe a
apresentação de Pedro Calheiros, que enfatizou na obra a incessante “busca
quotidiana do sentido das coisas e dos seres”, marcada por algumas
etapas biográficas da escritora – o contexto político de outros tempos
e as dificuldades que acarretou à vida do casal, a prisão de Mário
Sacramento, a forma desumana como Cecília é afectada (“Era Maio”
e
“Abençoada Fome”),
os afectos e os ideais (“Vi a Luz da Vida” e
“Para Além do Tempo”)
ou a experiência docente que tanto a absorveu
(“A Turma dos Rapazes Maus” e “Missão Cumprida”). História, Política,
Arte... cruzam estes textos.
Acresce
aqui referir que, se este livro teve na capa a mestria do pintor Cândido
Teles, "Palavras de Luz" deveu-a a Jeremias Bandarra, enquanto a
primeira, a segunda e a quarta obras de Cecília Sacramento mereceram a
coabitação da arte de sua irmã, a pintora Lúcia Maia, em ilustrações
ou na capa.
Finalmente,
em 2001, a Editorial Notícias, na colecção “Excelsior”, publica o
romance “Por Terra Batida”, que teve apresentação de Eugénio
Lisboa, em Aveiro, e de Pedro Calheiros, em Ovar, terra natal, de Cecília,
recorde-se. Em síntese do primeiro destes críticos, este “belo e
subtil romance” encerra o trajecto de alguém que, “viajando no interior de si mesmo, (acha, ou tenta achar) um modo de
encontrar os outros”. Nas palavras da própria obra, constitui “uma
operação de limpeza (à vida) para ficar só com o que é puro”, sendo para isso necessário criar e deixar “arder” neologismos como “a nova palavra que
a língua portuguesa vai ter: Re-esperança” (p. 158).
É
isso mesmo! “Só os poetas estão por dentro dos dias e das
noites e ouvem o silêncio das mil tessituras” (C. S. , “Apenas uma
Luz Inclinada”)
Cecília
é, sem dúvida, um deles... e assim o vem mostrando neste paciente e
generoso ofício da escrita, seu “hobby” e seu “vício”, confessa,
um projecto longamente adiado no seu íntimo pelas vicissitudes que os
tempos e os caminhos da vida lhe impuseram.
A
cronologia desta produção escrita deverá incluir, para ficar mais completa,
mas não esgotada, as seguintes referências:
1937,
no n.º 14 de “A Voz Académica”, “A Mulher Fatal de Camilo”;
1970,
apresentação da reedição, pela Inova, do livro de Mário Sacramento,
“Fernando Pessoa – Poeta da Hora Absurda” (desconhecemos se haverá
texto escrito dessa intervenção);
1974,
publicação de escassos artigos no jornal “Libertação” , fundado em
Aveiro pouco depois do 25 de Abril;
1998
(30 de Maio), “Testemunho”, no ciclo de conferências do Centenário
do Nascimento de Ferreira de Castro;
1999
(8 de Janeiro), na Homenagem a Maria Judite de Carvalho, “O peso de Uma
Vida – na Leveza de uma Escrita”;
1999
(9 de Junho), “Uma Leitura do Livro de Rosa Maria Oliveira ‘Breve
Antologia de Poetas da Liberdade’.
Um
breve ensaio da “arte poética” de Cecília Sacramento haveria de
ressaltar, necessariamente, a coesão temática, a par da solidez e da
modernidade estilística: há campos semânticos que atravessam a sua
produção literária, sempre de forma aliciante e renovada: de acordo com
Pedro Calheiros “o enleio das flores e da luz que as acorda ilumina
todas as suas obras” ; os títulos das capas, por exemplo,
desdobram-se nos textos que os glosam e, sublinha ele, “O Rasto dos
Dias” traz ecos do precedente livro de contos, “Tempos do Tempo”,
prenunciando-se já no título de 1995, “Palavras de Luz”, onde “o
tempo, esse brincalhão” (C. S. , “Tempos do Tempo”) deixa os
seus indeléveis sulcos.
Na
memória e na escrita. E na vida, já que “Escrever é meditar sobre
a Vida” (C. S.).
Foi
também o crítico, a que acima aludimos, quem rastreou a frequente inter/paratextualidade rica de sentidos que povoa a escrita desta autora, a sua “prosa
poética de grande agilidade formal” e “léxico
riquíssimo” Assim,
inscrevem-se no mosaico de ressonâncias e citações do mundo literário
de Cecília: Sophia, Eugénio de Andrade, Camões, Fernando Pessoa, Torga,
Eça, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, Saramago, Al Berto, Albano
Martins, Maria Judite de Carvalho, José Gomes Ferreira, Raul Brandão,
Clarisse Lispector, Ferreira de Castro, Fernando Namora, Rilke, Lorca,
entre outros.
Nesta
rede de laços familiares textuais, atrever-nos-íamos a colocar também
Olga Gonçalves, Maria Gabriela Lansol ou mesmo Pedro Paixão...
Estudiosos
há, ainda, que louvam à escrita de Cecília Sacramento “a
linguagem despojada e certeira, eficaz” (Eugénio Lisboa) e o
“poder expressivo das imagens” (Eunice Vouillot) Acrescentaremos,
em síntese, a subtileza, o vigor e a beleza descritiva, o sentido da
musicalidade e do ritmo, a jovialidade, o lirismo profundamente humanista
e universal, a coerência, o simbolismo e a actualidade, a discreta,
serena, terna e alegre atitude comprometida de quem sabe que “A
palavra escrita tem mais força. Sem berros. Sem detritos. Sem lágrimas e
sem soluços. É mais exacta. Mais fiel.” Ela o diz, ou melhor, ela o
escreve em “Por Terra Batida”.
Apenas
um exemplo do seu invulgar traço descritivo, resistindo, embora, e com
enorme esforço, à tentação de muitos outros:
“Azul
líquido. Em véu e em cúpula, transparente e imenso. Lago ou mar em
baixo? Concha bordada a espuma, envolvente, dum branco marfim fofo e raro.
Rendas e carícias ao longo da pele morena da praia. A água dobra-se em
volúpia sobre areia sequiosa. Rola e estende-se, depressa sorvida, desejo
contínuo, de renovo em renovo, beijos chupados por boca sedenta. A luz
amorena-se sobre os corpos de bronze. Flechas de fogo ou pétalas quentes,
as mãos se ajeitam em corpos definidos, levando em doçura arestas e
curvas. Cabelos e bocas e gestos e passos. Cada mulher em dádiva. Como
deusas em ócio. As cores redondas enfeitam os ares e rolam promessas na
areia repousada.” (C.S. , “Uma Flor para Manuela”).
Concordemos
que haveria aqui muita matéria de estudo com os nossos alunos na
abordagem da estética literária e do manuseamento da língua materna.
Leia-se, pois, e dê-se a ler Cecília Sacramento!...
Em
1999, Cecília Sacramento recebeu o troféu “Leme de Ouro” 98 para a
Literatura, conferido pela Associação Cultural e Desportiva “os Ílhavos”.
No mesmo ano, o jornal “O Ilhavense” prestou-lhe homenagem por ocasião
da III edição do Jogos Florais de Ílhavo (que ela própria ajudou a lançar)
e aquando do lançamento da obra “Tempos do Tempo”.
A
estas homenagens vem agora a Escola Secundária José Estêvão juntar o
nosso público e justo agradecimento à figura humana, cívica e literária
de Cecília Sacramento, que muitos e mais reconhecimentos irrefutavelmente
merece.
Terminamos,
pedindo emprestadas a Mário Castrim algumas palavras com que definiu uma
personagem criada por Cecília Sacramento, na qual ele entrevia uma espécie
de “alter ego” (dizemos nós) da autora; ouçam este retrato e a
grandeza humana nele sugerida. Eis Cecília na sua inteireza:
“A
recusa de estender o dedo acusador, a compreensão, uma timidez de flor
recolhida, uma certa maneira de ser frágil, sem ser quebradiça, o pudor
com que durante tantos anos fechou os seus originais na gaveta do fundo, o
calor fraternal que sempre guarda para os simples e os infelizes, o amor
que sempre deu aos trabalhos dos outros e enriqueceu os seus, a memória
dorida, talvez, mas nunca envenenada, aquele jeito de se esconder na
sombra para que outros pudessem brilhar, aquelas palavras de luz que ela
sempre foi capaz de encontrar (...)” (Mário Castrim, na apresentação
de “Palavras de Luz”)
Há
livros, textos, pinturas, obras de arte, enfim, que nos deslumbram pela
iluminação que deles emana. À Literatura Portuguesa cumpre agradecer as
cintilantes fulgurações com que Cecília Sacramento a enriqueceu.
Aveiro, 21 de
Maio de 2002
Maria Alice L.
de Pinho e Silva
(professora do 8º grupo A da E. S. J. E.)
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