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A META

Uma bicicleta de fogo recortada na parede enquanto o operário refresca a garganta no comício os pássaros pousam nela e como que lhe bebem os travões para ficar mais leve e destrava-la em direcção ao Infinito que é onde acabam todos os voos sua memória contudo recusa elevar-se além do sonho e aguarda serenamente que outros punhos os mesmos de sempre se fechem contra os seus e a conduzam após o discurso para a fábrica onde em festa então de novo aguardará que ele produza o que no discurso se contém como um programa...

Pinto da Costa     

 

 

por Herberto Helder















 

 

 

 

 

 

 

Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de Verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

 

O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o supor, aparece e desaparece
uma rosa. No dia de Verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.
De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.

 

O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.
 

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de Verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
O poeta dá à pata como os outros animais.

 

Se o sul é para trás e o norte é para o lado, é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas

 

com um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um Verão interior.
                    Herberto Helder, Poesia Toda

 

Cuidado!

atrás duma bola vem sempre uma criança!

 

PEQUENAS HISTÓRIAS AFEGÃS

AS BICICLETAS

O director da Faculdade de Medicina francesa, que dista cinco quilómetros de Cabul, quis comprar bicicletas para alguns dos seus alunos. E, no bazer:

Por quanto me vendes uma bicicleta?

Mil afeganes.

E vinte bicicletas?

Vinte e dois mil afeganes.

Então eu compro-te vinte bicicletas e tu, em vez de me fazeres um desconto, levas-me mais caro?

Se tu compras vinte e não uma é porque és rico e podes portanto pagar mais que os outros.


MÁQUINA DE HARMONIA
À memória de Daniel Filipe

Uma elegia, nunca. Sem descanso crescia
teu rosto de girassol. A lepra nunca
tocou com suas garras teu rosto, selim
da alegria, cujo voo não sabia a fome,
derrota, saque mas à carne doce e ardente
das mulheres. Como um dardo
atravessavas a multidão e escutavas
seu imenso clamor subterrâneo.
Mergulhavas velozmente na noite
e, à luz dos faróis, desentranhavas
árvores, casas, povoações adormecidas.
Subitamente um olhar relampejava
nas esquinas, uma palavra, um grito
varavam lés-a-lés a espessura
das trevas em que viajavas inventando
asas no cárcere, trombetas no silêncio.
Assim te libertavas como quem ama
ou respira. Assim crescias e te reproduzias
sem cessar. Guiavas em silêncio
tua máquina de harmonia e sem descanso
construías teu rosto, levantavas
teu exército de palavras couraçado
de chamas invencíveis.

PAPINIANO CARLOS,
in “a ave sobre a cidade” - 1973


Aspecto da Costa Nova, na década de 1930.

Excerto de “PRAIA NUA” - 1963

«Amanhã, vais ter comigo à praia, vais?

No dia seguinte, era feriado e realizava-se a festa dos pescadores da Costa Nova. A tarde estava quente quando entrei no autocarro para lá. O céu era azul, aquele azul através do qual nos parece descortinar o iodo característico. Atravessei a Gafanha por entre alas enormes de bicicletas e outros meios de transporte, em pro­cura, toda a gente, das praias e da romaria. Foi nessa viagem que conheci aquela com quem brevemente me vou casar.

Armando Pereira da Silva, Contos  

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