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Para uma Biografia de Cesário

Como poeta obscuro que foi na sua curta existência de pouco mais de trinta anos, Cesário Verde não deixou do seu nome, nem dos actos da sua vida social, nem duma obra que, além de pequena, ficou dispersa por páginas esquecidas de jornais e revistas da época, um rasto documental convenientemente elucidativo, para que se possa hoje escrever sobre ele uma biografia completa. Se não contarmos com o pouco que vale a pena seleccionar-se dentre as numerosas referências que lhe fez em seus livros e em alguns periódicos que dirigiu o escritor Silva Pinto, e se apartarmos, como coisa de valor secundário, o que saiu a lume à data da sua estreia literária e quando da sua morte, pouco mais nos ficam do que raras afirmações que, de então para cá, vêm sendo feitas por contemporâneos do autor do «Livro». Cesário não perdeu tanto como à primeira vista se possa julgar com o silêncio que se fez à sua volta. Na ausência dum conhecimento esmiuçado de motivos que poderiam ter certo interesse para uma reconstituição biográfica integral, a nossa atenção tende a concentrar-se mais na sua pessoa e na interpretação de particularidades conhecidas do seu viver quotidiano. Dessa meditação não resultará, porventura, uma biografia de tipo clássico, pelo encontro dum grande homem com um grande mundo, mas pode resultar uma história autêntica, humana, donde ressalte, nítida, a indivi­dualidade do poeta. Poderá dizer-se que deste esforço de concentração e de síntese há-de surgir mais um retrato do que uma biografia. Não sabemos, todavia, até que ponto será possível manter em absoluto esta distinção, quando se pretenda reconstituir uma vida no que ela tenha de mais íntimo e de mais puro. A melhor técnica biográfica não se restringe à enumeração de pormenores e à apreciação directa dos factos capitais duma existência, postos em necessária ordem cronológica e relacionados com um ambiente determinado e com determinado momento histórico. Esses são, com certeza, elementos de valor insofismável, mas que nos podem arrastar para uma objectivação demasiado simplista do que de essencial existe no mundo interior de cada indivíduo. Ao biógrafo não será dado, evidentemente, desprezar o seu significado, a sua sucessão e desdo­bramento, o sentido extensivo que imprime duração e tempo a uma vida; mas compete-lhe considerar para além de tudo que o homem, não obstante as manifestações divergentes que exterioriza sob a pressão das idades que atravessa e dos estímulos a que reage, é uma realidade que persiste fiel a si mesma na diversidade de sua evolução aparente. Se se pretende discorrer dentro dum plano de autenticidade e coerência, é pela prospecção intuitiva duma individualidade e pela busca do que nela há de único e de solitário que se caminha para, uma delimitação da personalidade. Atingir, sem perder a noção das realidades, esse clima de isolamento, mesmo nos temperamentos nada afectos ao recolhimento e à contemplação — o caso de Cesário — é tocar aquela «zona de gestação poética individual», como a denominou certo crítico, ponto de partida de todas as realizações humanas, mesmo das mais práticas e objectivas, e criar um campo de coerente exegese, onde ganham intenção e finalidade factos de importância aparentemente nula.

Os actos sociais da vida de Cesário Verde, considerados fora deste plano de interpretação, têm interesse reduzido. Ele teve uma vida simples. Nasceu em Lisboa, no dia 25 de Fevereiro de l855, na freguesia da Madalena, em cuja matriz foi baptizado a 2 de Junho do mesmo ano. Era filho de D. Maria da Piedade dos Santos Verde e do abastado comerciante ferragista José Anastácio Verde. A família possuía, supomos que desde 1797, uma quinta em Linda-a-Pastora, onde o poeta passou a infância na companhia de três irmãos: Júlia, Joaquim e Jorge. A acreditar no que ele próprio nos conta na poesia Nós e em declarações que colhemos oralmente de pessoa que o conheceu de menino, Cesário guardou para sempre uma profunda recordação desses tempos. Vivendo em contacto com a natureza, a sua visão do campo não se materializou em falsos bucolismos de selecta. Foi temperada pela lição positiva e realista diariamente colhida na empresa agrícola dirigida por seu pai, que tirava da herdade os produtos depois exportados para o Brasil e Inglaterra; e, sendo criado desde tenra idade entre gente simples de aldeia — homem feito, quantas vezes não recordaria a Companhia do Fura e do José Duarte, no largo da quinta de Mira-Bela e as azenhas de cana e de bugalho que a água de dentro tocava... — o vago populismo que mais tarde professa nos seus versas é sereno e compungido. Dessa época, para além da intensa sinfonia das cores naturais que ferem a retina do visual que foi em grande parte da sua obra poética, ele fixa de preferência os quadros tocados de humanidade e comoção. É já o elegíaco de «O Sentimento dum Ocidental» que está presente no rapazito loiro de olhos azuis, destro e bravo para tudo que não fosse a contemplação dos grupos de pedintes estropiados que subiam a calçada, lamuriando a esmola. Desses fugia com terror e sonhava, sugestionado pelas histórias que nos longos serões de Inverno lhe contavam as criadas Joana Neta e Luísa Galhetas, que os ladrões roubavam para azeite a carne dos meninos. Anos depois, quando eram já por si orientados os negócios da lavoura e a tarefa da exportação de frutas, os trabalhadores submetiam-se complacentes às exigências aparentemente ríspidas do homem prático e positivo que ele gostava de exteriorizar. «Patrão Joaquim é bom, patrão Joaquim é bom» — diziam os criados, quando Cesário, destacado para os vigiar, lhes mandava suspender o trabalho e lhes pedia que conversassem... Era o mesmo poeta que corria montes e vales na caça às perdizes, mas que não lhes atirava para as ver voar!... O fulcro da personalidade de Cesário Verde fundamenta-se nesta contradição entre o homem que ama a acção e o movimento, para que se sente arrastado por intuitivamente os suspeitar incompatíveis com a sua constituição débil de tísico, e o poeta que se compraz na ordem utópica e contemplativa das coisas e do mundo. Como orientador duma lavoura de finalidade comercial, ele encara a sua missão muito prosaicamente, rodeia-se dos melhores livros da especialidade, faz prosperar a máquina agrícola e empreende mesmo algumas viagens ao estrangeiro para melhorar as condições de colocação dos seus produtos. Mas, na narração que nos deixou desta faina diária, é ao poeta, mais do que ao artista das formas plásticas, claras e ridentes, que cabem os momentos mais puros da sua poesia, e é na meditação da morte, a que o leva o desaparecimento prematuro de dois irmãos, que ele os encontra. Júlia, sempre tão ternamente evocada, foi a flor precoce que cresceu e morreu rapidamente; Joaquim, pobre rapaz robusto e cheio de futuro, viu também chegar o seu termo sem querer, aflito e atónito. Cesário pressente na sorte de ambos o seu destino próximo e deixa-se invadir duma misantropia doce que o afasta do convívio dos homens. Aparece raramente e poucos são os que conquistam a sua confiança e amizade. Dentre todos — Mariano Pina, Fialho, Ramalho, Seguier, Fernando Leal, Macedo Papança, Jaime Vítor, para citar os mais conhecidos —, coube a Silva Pinto o melhor da sua afectividade. Este foi, com efeito, o mais devotado dos seus amigos. Encontraram-se no Curso Superior de Letras, que o poeta frequentou por pouco tempo. A família Verde já só vivia no campo desde o calor de Maio aos frios de Novembro. Cesário, que havia feito a sua preparação escolar em Lisboa, indo a pé, diariamente, de Linda-a-Pastora à Cruz Quebrada, onde tomava o americano para aquela cidade, habitava agora uma casa no Salitre, donde seguia todos os dias para o emprego — a loja de ferragens do pai, que estava instalada no prédio da Rua dos Fanqueiros, onde funcionam hoje os serviços do Banco Burnay. Se tem alguma história a vida do poeta na capital, há que procurá-la neste trajecto quotidiano que ele fazia sempre com o seu passo largo, à inglesa, vestindo esmeradamente fato azul de jaquetão de corte impecável e aparentando um ar britânico que lhe era grato e ia bem, de resto, ao seu tipo alto e loiro de nórdico. A hortaliceira magra, enfezadita, os calceteiros de mãos nodosas, as peixeiras que embalam nas canastras os filhos que depois naufragam nas tormentas, a actrizita que corre para o ensaio (talvez Tomásia Veloso por quem o poeta se prendeu de amores, o que lhe custou duas sovas sucessivas do atleta nadador Oliveira Grosso), o labutar triste e recolhido dos marçanos — tudo são temas palpitantes de vida que a rua, dia a dia, lhe vai sugerindo, e em presença dos quais toma uma dupla atitude de artista que se compraz na reprodução do que nas realidades imediatas há de mais intensamente vivo pela cor, pelo som, pelo movimento, e de poeta que sabe destacar do descritivo pleno de luminosidade o pormenor sombrio carregado de profunda significação humana. Nesta fase da sua evolução artística, Cesário está já de posse dos seus melhores recursos, posto que tenham ainda decorrido poucos anos sobre a sua estreia literária. Foi Eduardo Coelho quem fez publicar em folhetim do “Diário de Notícias”, de 12 de Novembro de 1873, os seus primeiros versas. Desde então até 1882, data em que, praticamente, suspendeu toda a sua actividade, porque já a doença o começava a atormentar, colaborou nos mais importantes jornais e revistas de Lisboa, Porto e Coimbra, ao lado dos melhores escritores do tempo. Esta circunstância, porém, não o compensou do desgosto de sempre se sentir incompreendido, mesmo por aqueles que mais o deviam incitar — o caso de Ramalho, por exemplo, que o critica impiedosamente nas Farpas, antes de se tornar o amigo dos longos passeios a pé à Cruz Quebrada, em despiques de resistência tanto do agrado do autor do «Livro».

Com o ano de 1884 entram os padecimentos de Cesário em fase progressiva e o especialista Sousa Martins declara-o irremediavelmente perdido. Em busca duma cura já nada provável, procura melhores ares que os de Linda-a-Pastora e vai habitar, em Caneças, uma casa no lugar de D. Maria. Acompanha-o Luísa, a fiel criada da infância. As melhoras, porém, não se acentuam e, de regresso a Lisboa, morre no Lumiar, no dia 19 de Julho de 1886, sem ver realizada a sua maior ambição de escritor — a publicação em volume dos versos que escreveu. As suas poesias deveriam ficar dispersas, até que Silva Pinto as editasse a expensas próprias, numa edição que não chegou a entrar no mercado e que é hoje, por isso, raridade bibliográfica apreciável. (1)

                                    Luís Amaro de Oliveira, obra citada na bibliografia, pp. 9-10.

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(1) Artigo saído primitivamente em “O Comércio do Porto” (Página Literária) e mais tarde republicado em «Estrada Larga», Porto Editora, próprio. 381-385.



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