Às três horas da manhã já eu me encontrava ao portão da M. M.
(Manutenção militar), ataviado com um cinturão e respectivos
carregadores, arma G3, um saco verde enorme que fazia de mochila e que
continha dentro tudo o que eu fisicamente possuía naquele momento:
esferográficas, cartas, fotos e pouco mais. Todo este material era
completado por um par de botas reluzentes e um camuflado ainda mais
brilhante, que teimava em não se adaptar ao corpo de tão novo que era e
que os “velhinhos” reconheciam ao longe como sendo de um Mike
(maçarico). Até o próprio boné de tanta goma que tinha ficava
encarrapitado na cabeça, deixando ver a pele branca da cara, pele
inconfundível de um Mike, que mesmo quinze dias de licença de
mobilização passados nas praias da Caparica não conseguiram disfarçar e
fazer passar à cor bronzeada que caracterizava um velhinho das matas de
Angola.
O M.V.L. (Movimento de Viaturas Logísticas) partiu às 4 horas da
manhã. A azáfama foi grande durante toda a noite e, provavelmente,
também o havia sido nos últimos dias.
Ultimaram-se os últimos preparativos para a partida dessa imensa
coluna de dezenas e dezenas de camiões, uns civis fretados pelo
exército, outros militares que partiam habitualmente de 15 em 15 dias,
levando o apoio logístico, rumo ao norte, pela chamada “estrada do
café”, que se internava pelos “Dembos” até à capital da guerra, “Nambuangongo”,
onde esta enorme serpente se dividia, seguindo uma coluna mais para
norte, pelo interior da densa selva até “Quipedro” e outra em direcção
ao pôr-do-sol até “Zala”, percorrendo a famigerada picada, que passava
pela temível e de má memória curva do “bico de pato”.
As viaturas iam ficando pelos respectivos aquartelamentos, onde
eram descarregadas e esperavam novamente pelo regresso da coluna que ia
engrossando de novo de volta a Luanda.
Dirigi-me ao comandante da escolta, dizendo-lhe que tinha ordens
para me apresentar em Nambuangongo, este apontando com o dedo, disse-me
que me podia ir acomodando naquela “berliet”.
Sentado ao lado do condutor encontrava-se um soldado armado até
aos dentes. Ele era só fitas de balas e granadas penduradas por todo o
corpo. Pensei para comigo: «aqui devo ir seguro».
– Bom dia. – disse-lhe eu.
O condutor mandou-me seguir para a caixa de carga, onde já se
encontravam duas mulheres da tribo “Quicongo”. Cada uma delas carregava
uma trouxa feita de pano muito colorido idêntico ao que habitualmente este
tipo de mulheres enrola na cintura até à altura dos seios.
Seguia também connosco um soldado, o completo oposto de mim, e
certamente um “velhinho”. Envergava um camuflado velho, coçado e algo
rasgado. Um forte e grande bigode preto destacava-se do rosto. Estava
deitado com a cabeça em cima de um saco igual ao meu, só que muito mais
velho e sujo. No cinturão, 4 carregadores e a arma G3 que jazia ao seu
lado. Dei-lhe os bons dias, mas nem me respondeu, fingindo talvez estar
a passar pelas brasas.
Os unimogues com a tropa da protecção começaram a tomar posição.
Juntamente, chegaram alguns “chaimites”dos “Dragões”, que se
distribuíram estrategicamente ao longo da coluna. Pelas 4 horas, aquela
imensa fila de viaturas pôs-se em movimento.
O meu companheiro de viajem abriu os olhos, mirou-me e voltou a
fechá-los. Pensei com os meus botões que já devia ter topado que eu era
um «mike».
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Itinerário percorrido
pelo MVL
Rapidamente saímos de Luanda, depois de uma breve paragem no
“controle”, assim se chamavam as entradas e saídas de Luanda, que nessa altura se
encontrava cercada por uma rede com arame farpado.
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Continuámos a rodar bem até para lá do “Caxito”, onde terminou a
estrada alcatroada e começou a picada. Os solavancos da camioneta atiravam com o meu companheiro
de um lado para o outro, o que o obrigou a sentar-se. Abriu novamente os olhos e mirou tudo à sua
volta. Pegou na G3, passou-lhe um pano, puxou a culatra duas ou três vezes, para se certificar que
estava em condições, meteu uma bala na câmara, colocou a patilha em posição de segurança e apertou-a
entre os braços contra o peito, mantendo o cano virado para a picada.
As horas passaram. Pelo meio da manhã, depois de algumas paragens
técnicas para que a coluna não se desmembrasse muito, o meu companheiro abriu a boca
pela primeira vez, dirigindo-se às mulheres que, provavelmente, não o
entendiam:
– Estão a ver estes dois grandes “embondeiros”? São conhecidos
como as portas da guerra. Daqui para a frente, todo o cuidado é pouco.
Compreendi imediatamente que a mensagem era para mim. A partir daqui fiquei a magicar naquelas palavras e
nessas duas enormes árvores. Afinal, eu estava a entrar nas portas da guerra. Estávamos a 6 de
Agosto de 1972, dia do aniversário em que fora lançada, vinte e sete anos atrás, a primeira bomba
atómica
–
a “little boy”
–
, para terminar com a guerra entre Americanos e Japoneses.
Que guerra era esta para a qual me dirigia e que até tinha
uma capital? Talvez fosse uma filha dessa guerra. É que às vezes as guerras
maiores deixam filhas mais pequenas… A minha mente estava mergulhada num turbilhão de pensamentos sem
respostas. Libertei-me deles com um salto enorme da “Berliet”. Um dos
vários buracos da picada fez-me saltar das mãos a G3 que apertava com
imensa força. Era como se andasse à deriva no alto mar e a G3 fosse a minha única bóia de salvação. Nesse momento, oiço a voz do meu cicerone, que continuava a
narrar os locais por onde íamos passando, sempre dignar-se olhar para mim,
embora soubesse que era
eu o destinatário. Não havia dúvida de que ele estava a gozar com a situação, metendo-me medo.
E estava a consegui-lo:
– Esta é a curva «mata alferes». Aqui, os turras deixaram uma
carta no meio da picada. A coluna parou para que um soldado a recolhesse
e entregasse a um oficial seu superior. No cimo d o
morro
estava um atirador furtivo, que disparou certeiramente, matando o
oficial a quem a carta tinha sido entregue.
E deste modo acabava eu de ouvir a história que dava o nome à curva
onde estávamos a passar.
Momentos depois, ouvem-se tiros na frente da coluna. O meu
cicerone volta a falar:
– Não há problema! São o raio dos “Mikes” que nos vão a proteger
que estão a fazer fogo de reconhecimento. Mas os turras são espertos. E mesmo que lá estejam emboscados, não
respondem. Por isso, quando passarmos por debaixo daquele morro, temos
que estar alerta. E continuou a explicar: Aqui nesta curva, o meu grupo de combate, que na altura fazia protecção ao M. V. L., teve
duas baixas e eu fiquei com este estilhaço no joelho. Os gajos do Hospital Militar de Luanda não o
quiseram tirar. Deixaram-mo ficar para recordação.
Continuei a ouvi-lo, ao mesmo tempo que transpirava por quantos
poros tinha. A humidade era muita. O pó levantado pelas viaturas
colava-se ao corpo. As minhas mãos estavam cobertas de suor. Mesmo
assim, procurava
manter livre de pó a zona da culatra da G3. E o meu camuflado, agora
encharcado em suor e coberto de poeira, pagava-se ao corpo e dava-me uma
sensação de desconforto.
O dia ia passando e a paisagem luxuriante e exuberante que
vislumbrava era a da selva em toda a sua grandeza e plenitude. Passámos
por zonas com características únicas e diferentes umas das outras: florestas
completamente fechadas e quase impenetráveis, em que a estreita picada parecia uma linha de
comboio a entrar num apertado túnel, onde os ramos das árvores nos batiam na cara; morros carecas, assim designados por serem
desprovidos de arvoredo e repletos de capim; zonas de capim tão alto
onde nada se conseguia ver para além da picada.
E o dia acabou e deu lugar à noite. Nestas latitudes,
o anoitecer é muito rápido e a escuridão é como breu, medonha e horrorosa para um pobre “Mike”
acabado de chegar da metrópole. Pouco depois do escurecer, houve uma paragem da
coluna de viaturas.
–
Talvez seja alguma avaria ou pior – alvitrou o meu companheiro.
Ou alguma “abatiz” ('árvore grossa cortada pelo I.N. e atravessada na picada'). Estes
motoristas são teimosos. Sabem que têm que apagar as luzes, mas não fazem caso.
Se os turras nos descobrem
nesta mata infernal, estamos feitos. Mas não há problemas. Enquanto tiver balas a mim
é que eles não me levam.
Tivemos mais algumas pequenas paragens. De repente, do meio do
nada, vislumbraram-se algumas luzes mortiças em circulo.
– Chegamos à “Beira Baixa” – esclareceu o cicerone. Eu fico por
aqui. Vocês tenham cuidado com a curva da morte. Se fosse eu, fazia-a a
pé, sempre a pisar o rodado dos camiões por causa de alguma mina.
Dito isto, o meu companheiro saltou com o saco às costas e a G3 na mão
e dirigiu-se para
o aquartelamento, protegido a toda a volta
com arame farpado. As duas mulheres saíram
no “Onzo”,
umas dezenas de quilómetros mais à frente. Acabei sozinho no estrado da “berliet”.
Apenas
o motorista e um soldado fortemente armado
na cabine da viatura. A angústia que sentia transformou-se em pânico,
fazendo-me transpirar abundantemente. E Nambuangongo que nunca mais
chegava! Enchi-me de coragem. Aproximei-me da cabine da “berliet”.
Toquei nas costas do soldado e humildemente perguntei-lhe:
– Ainda falta muito para chegarmos a Nambuangongo?
Ele olhou-me de alto a baixo e gritou para o motorista:
–
Olha pá, temos aqui um “Mike”.
O condutor sorriu e convidou-me para junto deles, já que o assento corrido
da cabine dava para o condutor e mais dois passageiros. Não me fiz
de rogado. Saltei do lugar e fui-me sentar-me junto deles.
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Aspecto de Nambuangongo, vendo-se a igreja, o depósito da água e
as instalações militares. |
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Ainda não me tinha habituado ao novo lugar,
quando o motorista me mostra para umas luzinhas muito ténues, lá
num alto, muito ténues, ainda a alguns quilómetros:
– Ali está Nambuangongo. É a Capital da Guerra. Vamos poder
descansar umas horas debaixo da viatura e, lá para o meio da manhã,
prosseguiremos para Zala, uns oitenta quilómetros mais adiante.
Para mim, chegava ao fim a minha primeira viajem com
cerca de 200 quilómetros e uma duração de mais de 20 horas, a uma
média de 10 quilómetros por hora,
pelas tenebrosas matas Angolanas. À entrada de Nambuangongo, perto do posto de rádio,
com a capela do lado esquerdo, saltei da “berliet” com o saco às costas e a G3 na mão.
Para meu grande espanto, os meus futuros colegas de
transmissões já sabiam quem eu era. Tinham recebido uma mensagem de rádio a comunicar-lhes a minha chegada para substituição
da baixa que tinham sofrido pouco tempo antes. Nunca me tinham visto,
mas reconheceram-me imediatamente no meio de outros soldados que como eu
tinham também saltado das outras viaturas. Não havia de duvidar: eu
era um «Mike» em toda a plenitude da palavra.
O momento da chegada passou. Mas o que não passou foi o nome com
que fui baptizado. Deixei de parecer aquele
“Mike” saído
de Luanda
numa madrugada, com botas engraxadas e camuflado reluzente. Mas
fiquei para sempre, durante toda a minha permanência nesta companhia, que por tantas e tantas aventuras e desventuras
passou, o Mike das transmissões.
M. ALDEIAS
manuelaldeias@netvisao.pt |